Opinião | A gira antimanicomial de Emicida

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por Áurea Carolina*

A amizade pode curar o coração e a mente. No fim das contas, a gente perambula pela existência em busca de amor, e a amizade é essa manifestação de amor que é praticamente um seguro de vida, aquela reserva de amparo e bem-querer. Mais feliz é quem conhece o poder da amizade.

Na passagem pelo Rio de Janeiro da turnê AmarElo – A gira final, do nosso irmão Emicida, eu me vi dentro de uma celebração sustentada pela força grandiosa e delicada da amizade. Amizade é dádiva, reciprocidade, admiração, partilha, solidariedade: um ombro pra chorar depois do fim do mundo.

O show foi bem no 18 de maio, que (não) por coincidência é também Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Tomada por comoção, senti que testemunhava um tempo-espaço capaz de aplacar qualquer sofrimento. Ao meu redor, a multidão me era familiar, e a energia de geral sorrindo, chorando, em profunda sintonia me revelou que éramos feitos da mesma matéria, do mesmo amor e da mesma fúria de Emicida.

Aliás, dele e de sua família na arte: mãe e irmão de sangue, irmãs e irmãos de fé, artistas que se unem à sua criação, aliados e sócios, trabalhadores da cultura que operam o seu negócio, fãs e toda a gente que se conecta com esse universo em permanente expansão. O palco era o entrosamento da banda, a produção impecável, a beleza das luzes e projeções que nos acolhiam num templo de vitrais coloridos. E mesmo na estranheza de uma arena com nome de patrocinador, a magia tomou conta do lugar.

Como é lindo ver parte da história do Hip-Hop nacional através da trajetória de Emicida. O jovem de São Paulo que se jogou nas batalhas de MCs e brotou no Rio de Janeiro sem dinheiro em 2006 reverencia a cena de rimadores que marcou o Brasil e convida Marechal ao palco naquela noite memorável. Marechal, velho combatente, ídolo de Emicida, ícone de uma geração, canta “Guerra” e “Favela vive” de muleta. A escolha diz da alma, das dores, do real amargo. Impossível não lembrar de Marcelo Yuka.

A sequência inusitada veio com um emocionado MC Cabelinho e seu discurso meio forçado de agradecimento a Emicida por abrir caminhos para os novos MCs. Marechal quebrou mato no peito para MC Cabelinho voar com seu ego inflado. Ok, ok, tudo isso cabe na gira: a encruzilhada é feita de contradições e ambiguidades, e Emicida como ninguém canta os dilemas do Rap na indústria cultural e da própria eminência parda no rolê. É muita generosidade.

Mas o Rio de Janeiro é também por onde passa o neosamba, a vertente original de Emicida, e já tinha brilhado no palco o sorriso de Miguelzinho do Cavaco em uma participação luminosa com direito a invocação de Cartola. Coisa bela, coração diante da grande arte.

A gira segue não linear, pois é sobre começo, meio e começo, como lembrou a braba Marcele Oliveira ao trazer a sabedoria de Nego Bispo para cerimoniar a entrada de Emicida. Marcele, ativista climática, cheia de luz e carisma, chamou geral numa reflexão sobre a calamidade no Rio Grande do Sul. Antes dela, a DJ Afrolai mandava um set de poder feminino e dizia com doçura que era seu retorno ao trabalho depois de se tornar mãe. Pena que eu perdi o show d’Os Garotin, tenho certeza que foi incrível.

Os encontros culminam no trio Drik Barbosa, Emicida e Rashid no poder de “Mandume”, e uma sessão de improviso que honra a memória e o legado de vivos e mortos nos faz entender, como bem disse Rashid, que o Rap sempre foi uma conversa. Salve Sabotage, Dina Di e toda a linhagem que nos possibilitou conquistar esse agora. Salve os 25 anos de Bocada Forte, que desbravou a internet em prol da nossa cultura! Obrigada por publicarem este meu relato.

A política de Emicida é conversar com a singularidade e a coletividade. Ele reforça: ano de eleições municipais, as enchentes no Rio Grande do Sul são um problema de todos nós, nossa responsabilidade é cada vez maior. Chamamento à ação por amor, como na oração de “Principia” do pastor Henrique Vieira, que também fez a difícil escolha de ocupar a política institucional. Marechal fez questão de honrar Marielle Franco, Marighella e Leci Brandão. Na pista, eu abraço a vereadora do Rio Tainá de Paula, defensora de tantas lutas, e só consigo dizer “te amo”.

O fim da noite é pura diversão para o maestro Emicida, e geral vai na sua pilha de cantar “Passarinhos” num flash mob maluco. É o bonde da loucura passando na sua rua, tipo “Liberdade Ainda que Tantã!”, de BH, e “Tá Pirando, Pirado, Pirou!”, do Rio, blocos icônicos de usuários e trabalhadores da saúde mental. Afinal, aqui somos libre! E Emicida, senhor de idade, dá suas risadas de criança, milionário do sonho no colo dos seus verdadeiros amigos.

*Áurea Carolina é uma feminista negra, mãe, liderança da sociedade civil brasileira e ex-parlamentar cujo mandato se tornou referência de inovação democrática. Foi cantora de Rap e colunista do Bocada Forte em meados dos anos 2000.

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