Paulo Freire, Racionais e o povo no centro da discussão
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Vem da direita e da extrema-direita (que nega ser extrema) a análise que sustenta que o pensamento de Paulo Freire, ao enfatizar a conscientização e a emancipação, teria promovido uma “doutrinação” ideológica e afastado o ensino de uma educação baseada em conteúdos objetivos e práticos. Uma abordagem que questiona o pensamento crítico e a politização das estruturas de conhecimento reflete uma visão simplista, que mete o loco, ignora as raízes e contextos da educação popular em países historicamente desiguais.
Sabemos que nossa cultura de rua não está no centro de tudo, mas é a partir dela que o Bocada Forte dialoga, sempre precisamos repetir essa parada. Antes do surgimento do Hip-Hop e do Rap, Freire já se posicionava como um educador político, contrário ao status quo, defendendo a interação crítica e pedagógica entre partidos políticos e movimentos populares, rejeitando a ideia de neutralidade na educação.
Hoje, com esse papinho de “nem de direita, nem de esquerda”, muitos acreditam na possível neutralidade do Rap, basta dar uma conferida nos comentários das paginas dedicadas ao genero nas midias sociais para entender tal construção. Dos mais novos na cena aos veteranos, parte significativa do Hip-Hop não cai nessa conversa. Em entrevista ao Brasil de Fato, GOG não teve dúvidas,o rapper afirmou que o Hip-Hop é um movimento cultural de esquerda.
Assim como a origem e os princípios do Hip-Hop são distorcidos, no campo da educação, a caracterização de Paulo Freire como um “doutrinador” ignora a essência do seu trabalho: ele propôs um método de alfabetização para as populações marginalizadas, desenvolvendo uma pedagogia que era ao mesmo tempo inclusiva e transformadora. Essa pedagogia causa repulsa em quem considera a neutralidade como um valor absoluto.
No entanto, ao propor que o aprendizado é dialógico e que alunos devem ter consciência crítica sobre sua realidade, Freire buscava transformar uma sociedade que já operava sob um sistema elitista. Aqui, o que chamam de “doutrinação marxista” é, na realidade, uma aproximação natural entre a pedagogia e o desejo de justiça social. Freire visava preparar cidadãos capazes de refletir sobre as desigualdades, além de capacitar populações historicamente oprimidas a reconhecer sua posição e, quem sabe, transformá-la.
Voltemos ao Rap. Nos anos 1990, parte dos integrantes do canto falado traziam um discurso contundente sobre questões raciais e sociais, tendo os Racionais como principal destaque. Tudo que era tratado como forma de alienação das pessoas pobres, pretas e periféricas estava na mira dos rappers, inclusive as atitudes dos seus iguais que seguiam a vida nos bailes e, por uma série de motivos, sem nenhum interesse político.
Entretanto, após o sucesso EP ‘Escolha seu Caminho’ entre a comunidade do Rap, Mano Brown percebeu uma falha na comunicação entre seu grupo e a maioria dos jovens das quebradas. Em 2022, no podcast ‘Mano a Mano’, numa conversa com Marquinhos Sensação, Thiaguinho e Salgadinho, Brown fala sobre uma importante mudança nos Racionais.
“‘Eleni’, do Katinguelê, tava tocando na rádio forte e o povão chorava. O que eu reparava: quando o Racionais tava achando que tava apavorando com ‘Negro Limitado’, ‘Voz Ativa’, aquelas musicas pancadas e meio Public Enemy, e a gente cheio de orgulho, eu notava que a música batia nos cara e voltava, não fixava, tá ligado.
Eu notava isso. Os que tinham que ouvir mesmo, tava nem aí com o que ele estava ouvindo, tava bloqueado. Eu vi, a gente não precisa mentir para nós mesmos. A gente fazia a música tentando atingir os nossos, mas os nossos não tava nem aí para essas ideias minha.
E aí eu falei pro Kléber [DJ KL Jay]: Pô, cara, não dá não, os cara chora quando ouve “Eleni” ´[…] o povo já tá ferido e a gente vai machucar os outros com essas músicas do Racionais. A gente teve que fazer o projeto “Eleni”, entendeu?
Eu falei: a música que os cara chora é Eleni, tá ligado? O Brasil é isso, xará, não adianta querer ser o Bronx, o Brasil é diferente. Ou nós mergulha na alma do brasileiro ou sem chance pro Rap no Brasil, não vai virar.
[…] E aí você foi para onde?
‘A toda comunidade pobre da Zona Sul’ [música ‘Fim de semana no parque’]. Aí a gente começou a falar o nome de quebrada e tal, de beco. Aí trouxe o povo para dentro.”
O disco ‘Raio-X Brasil’, dos Racionais, ajudou a moldar nosso Rap da década de 1990. Com um olhar voltado aos moradores das periferias, o Rap brasileiro construiu o diálogo necessário para a discussão sobre a realidade social e racial no país. O povão estava no Rap e o Rap passou a estar no cotidiano do povão.
“Trazer o povo para dentro” foi o que Paulo Freire sempre fez. A crítica da direita (e da extrema direita que não se diz extrema) ao seu trabalho ignora que seu reconhecimento internacional, bem como a ampla adoção de suas metodologias em diversos contextos educacionais, se deve precisamente ao impacto positivo que ele causou, especialmente em contextos de alfabetização para jovens e adultos em situações de exclusão.
Olavistas e bolsonaristas sugerem que o pensamento de Freire desencadeou uma “ignorância das massas”, atribuem a queda na qualidade educacional a uma política de esquerda sem questionar as políticas públicas reais e concretas de décadas passadas (e de hoje), em que os investimentos em educação, cultura e cidadania foram sistematicamente cortados.
Papo reto, a negligência e falta de prioridade dada ao setor educacional pelo próprio Estado são muito mais responsáveis pelos resultados frustrantes do que uma suposta “dominância marxista”.
Ao desprezar o compromisso de Freire com as camadas mais pobres, seus críticos se afastam da complexidade do cenário educacional e, acima de tudo, da importância de uma educação que busque a transformação social e o questionamento das desigualdades – valores que, do ponto de vista do Hip-Hop, continuam urgentes e relevantes.
Phono 1: mesmo sabendo que o discurso do Rap atualmente sofre influência do modo de vida neoliberal, os ativistas do Hip-Hop precisam entender o brasileiro periférico do agora. Muitos estão envolvidos nessa luta.
Phono 2: o impacto da inteligência artificial e das mídias digitais, a falta de respeito a professores e estudantes, incluindo a baixa remuneração dos profissionais da educação, além da má estrutura física de muitas escolas continuam sendo problemas crescentes em nossa sociedade.
Entre os nossos, o trabalho de Paulo Freire e Racionais ainda são um farol.
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