Opinião | O Hip-Hop precisa resgatar a ‘ostentação do conhecimento’

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O veterano do Rap tinha se manifestado de forma respeitosa e repleta de argumentos sólidos em que debatia uma ideia, um conceito, sem fazer qualquer ataque pessoal. Logo abaixo, no entanto, o comentário de um jovem, na casa dos 20 anos, foi: “Esse pessoal da velha guarda do rap é um bando de tiozão chato, recalcado e cagador de regra”.

Parei para pensar nesse conflito de gerações, algo que tem ficado muito evidente nas últimas altercações e desentendimentos ocorridos entre rappers e outros agentes da cultura Hip-Hop. Lembro-me de que, até final dos anos 1990, muito se falava no embate entre Velha Escola e Nova Escola, porém em um âmbito mais estético-artístico. A treta, agora, é geracional, relacionada a “quilometragem” e idade.

Não sou favorável a nenhum tipo de “carteirada” e considero muito arrogante e pretensiosa a atitude de quem exige respeito apenas porque nasceu antes, chegou primeiro ou tem “x” anos de estrada. Afinal, nada impede que um adolescente seja muito mais sábio e sensato do que um ancião. Por outro lado, acredito que todo jovem ou iniciante em algo deva, no mínimo, conhecer a caminhada dos pioneiros, respeitar e dar atenção ao que apregoam os mais velhos e experientes, mesmo que seja para discordar deles depois – desde que com argumentação e fundamentação racional.

Na realidade, o choque de gerações atual expõe não apenas distintas formas de ver o mundo, mas distintos mundos em que a rapidez e a radicalidade das transformações recentes fizeram com que se perdesse a noção de continuidade, perpetuação. Quem nasceu ou cresceu nas últimas duas décadas pode não conseguir dimensionar o turbilhão revolucionário que tem sido esse período, sobretudo em função do veloz advento tecnológico. Quem nasceu com os olhos na internet e assimilou o virtual como sua realidade predominante dificilmente entenderá certos valores que moviam a sociedade quando a web ainda engatinhava e chegava a poucos estratos sociais.

Amigos eram os que visitavam nossa casa, e não meros avatares desconhecidos, quiçá envernizados ou ‘fakes’, em redes sociais. Contatos eram feitos por telefonemas e cartas, escritas a mão e enviadas pelos correios. Música era algo palpável, que tinha cheiro, cores, encarte e ficha técnica, e não meros arquivos efêmeros e descartáveis da atualidade. Em ritmo mais lento, no “mundo analógico” tudo era mais difícil – e, por isso, cada detalhe tinha mais significado em nossas vidas.

Especificamente no seio da cultura Hip-Hop, junto com a virada tecnológica houve uma mudança muito significativa no campo dos valores.

No final da década de 1980, os frequentadores da estação São Bento do metrô, berço do Hip-Hop paulistano, criaram uma “competição” saudável por informações. Quem conseguia qualquer material sobre a cultura, fosse um recorte de jornal ou revista, fosse a gravação de um vídeo (em fita VHS) com alguns segundos de um movimento de breaking, levava-o aos encontros para compartilhar tal material com os demais frequentadores da São Bento. Alguns organizavam tudo em pastas, montando verdadeiros álbuns de puro conhecimento.

Já no início dos anos 1990, algumas leituras se tornaram praticamente obrigatórias, como os livros ‘Negras Raízes’ e ‘Autobiografia de Malcolm X’, ambos assinados por Alex Haley. Grupos organizados estudavam História, debatiam políticas culturais públicas e formas inteligentes de enfrentamento à repressão policial. De um desses coletivos, o Projeto Rappers, ligado ao Instituto Geledés, nasceu a ‘Pode Crê!’, primeira revista brasileira especializada em Hip-Hop. Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro, Rainha Nzinga, Black Panthers Party (Partido dos Panteras Negras), Martin Luther King Jr., Marcus Garvey, Kwame Nkrumah, Nelson Mandela e inúmeras outras referências de resistência e luta política ou racial eram material quase obrigatório para quem quisesse escrever um Rap. Tinha-se a noção de que estudar História é a melhor maneira de não permitir que erros do passado se repitam. Quanto mais consciência e bagagem cultural um MC detinha, mais respeito ele conquistava junto a seus pares e ao público. A ostentação da época era o conhecimento.

O tempo passou, novas gerações surgiram e, em algum momento pós virada de milênio, não se sabe por que, houve a descontinuidade e uma consequente ruptura de valores. Veio a incompreensível e vazia onda da ostentação material. O poder que antes era visto nos livros passou a ser atribuído à posse de cordões de ouro (ou imitações baratas), plaquês de R$ 100 e carrões nos videoclipes (mesmo que alugados ou emprestados). Alguns “rappers” da atualidade se limitam a falar sobre consumo de drogas, putaria (em muitos casos, com total desrespeito às mulheres) e fazer dinheiro, contar dinheiro. Não há outra temática. Preocupação social zero, nenhuma reflexão política, nenhum conteúdo que não seja alienado e alienador.

Vivemos atualmente um dos momentos mais conturbados de nossa história política recente, com um mandatário autoritário, truculento, desumano e cujos predicados intelectuais são inferiores aos de uma ameba. E é extremamente decepcionante que muitos jovens pobres, muitos deles com pele escura, estejam alheios a essa ameaça ou, pior ainda, se manifestem a favor dela.

Muitos jovens periféricos, talvez porque não peguem mais em livros, temem um “comunismo” que não existe (ainda que não saibam o real significado da palavra) e ainda apoiam Jair Bolsonaro, mesmo depois de quatro anos de corrupção, descasos inúmeros, destilamento de ódio, genocídio, desmonte da educação, negação à ciência, envenenamento dos alimentos, aparelhamento de instituições, ameaças à democracia e agressões ao meio ambiente e a minorias (pretos, pobres, indígenas, LGBTQIA+ e outros grupos), entre diversas outras atrocidades. Esses jovens são como o “frango da Sadia”, aquela ave que é feliz por promover uma empresa que mata aves.

Todo cidadão tem a obrigação de se posicionar ante este conturbado momento político. Espero que o hip-hop resgate os valores dos anos 1980/90 e reflita, conscientize, indique caminhos. O que está em jogo não é só o nosso futuro, mas o nosso presente. E os jovens terão papel fundamental no caminho a ser seguido diante desta bifurcação entre civilidade e barbárie, vida e morte, esperança e desalento. Aceito ser chamado de “tiozão chato”, desde que optem pelo lado certo da História.

3 COMENTÁRIOS

  1. faleceram dj jamaika e agora dun dun e nao vi nada no site sobre essas referencias do rap….os jovens de hoje ja nao buscam saber sobre pionerismo. fica pior se não fala de quem fez parte da caminhada na cultura hip-hop brasil.

    • Você está correto. Publicamos apenas em algumas de nossas redes sociais sobre a morte dos dois, gostaríamos muito de publicar matérias e muito mais sobre todas as personalidades da Cultura Hip Hop. Sempre que possível fazemos isso e não apenas quando elas se vão. Infelizmente o nosso trabalho é independente, sem apoios ou patrocínios fixos, mas seguimos na luta. Obrigado por comentar Rodrigo e continue com a gente!

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