Opinião | Afete-se

0
320

Afeto…

“Afeto é a disposição de alguém por alguma coisa, seja positiva ou negativa.
É a partir do afeto construído que se demonstram emoções ou sentimentos. Pode se ter afeto por algo, uma pessoa, um objeto, uma ideia, ou um lugar.
Afeto é também o objeto da afeição, como em ‘meus afetos são meu cachorro e minha família’.

Tem sua origem na palavra latina affectus, que significa disposição, estar inclinado a. A raiz vem de afficere, que corresponde a afetar e significa fazer algo a alguém, influir sobre.

Demonstração de afeto é a forma como se expressa um carinho. É explicitar o afeto sentido através de um gesto, que pode ser um cafuné na cabeça, um beijinho na testa, um abraço, entre tantos outros.”

Logo que cheguei em Brasília, no início de 2019, procurei lugares para me sentir acolhida. Estava longe da família, dos amigos, da minha essência.

Um dia estava navegando na internet e vi um post de uma peça no Setor Comercial Sul (Canteiro Central). ‘A empregada das sufragistas’. No post dizia que era encenada por mulheres negras e isso já aumentou meu interesse. A peça traz a história de três mulheres negras em diferentes épocas e lugares. Uma jovem, sonhadora e cheia de vida, uma matriarca africana com muita sabedoria e uma empregada de uma líder sufragista.

Sem muito spoiler porque tenho em mim e oro às Deusas que esse espetáculo voe o mundo, por isso registro aqui apenas que chorei durante toda a peça e que ao final fui acolhida pelas atrizes com abraços calorosos e cheios de amor. Amor que toca a alma e olhares que dizem – “nossas histórias se misturam e se completam, tanto na dor como no amor”.

Ainda nessa busca de pertencer, procuro lugares, olhares, abraços, sorrisos e companhias que me tragam esse calor da alma que jamais quero perder e que chamo de A F E T O.

Afeto é sentir-se e a partir das conexões consigo mesmo entender que outras conexões acontecerão. É entender que todos nós nos afetamos, e pensar ‘como estou afetando a mim e ao outro?’

Somos doutrinados e doutrinamos na cultura da conquista material, do ter ao invés do ser, do trabalho duro “Deus ajuda quem cedo madruga”, e isso se reflete em vários aspectos da nossa vida. Hoje percebo o quanto esse pensar fere e causa traumas inimagináveis em nós e em quem nos rodeia, pois Ser e Ter devem nos completar e não nos partir.

Precisamos entender que nossas experiências formam nosso subconsciente e se refletem no futuro. De forma simples, quando eu acordo e não me sinto bem pelos dias anteriores há que se refletir no que deu errado e no quanto tenho impregnado em mim um passado doloroso de um vazio e abandono de si que é insuportável e cruel. A vida é muito mais que simplesmente levantar, trabalhar, entregar qualquer coisa que seja e não sentir a brisa do dia, não ouvir o cantar do pássaros, o sol aquecendo o corpo, as batidas do coração, ou quem está ao lado e percebe-se especialmente diferente naquele dia por algo que lhe aconteceu.

Afeto é sentir-se e a partir das conexões consigo mesmo entender que outras conexões acontecerão. É entender que todos nós nos afetamos, e pensar “como estou afetando a mim e ao outro?”

Fui a shows, festivais, festas, bares, encontros, rituais, terapias, li artigos atuais e antigos, assisti filmes, séries (cito nas referências do texto) e o que mais me tocou na maior parte do material foi que procuramos afeto no outro, no que está fora e não temos autonomia ou certeza, porque é o outro.

Estamos criando expectativas de afeto através do outro e isso é uma loucura, porque não temos qualquer assertividade sobre expectativas ou roteiros fantasiosos que não surjam da perspectiva do Eu, do que sinto, penso ou falo.

Se considerarmos que estamos contaminados pelos vieses do senso comum, piorou. Haja terapeuta, minha gente!

Pensar que vivemos num modelo social hierárquico, capitalista, machista, racista e tantas coisas mais, nos leva a entender que afeto é poder sobre o outro e não troca.

O significado de afeto gravado em nós é tipo “moeda de troca”.

As relações de poder são erroneamente confundidas com relações de afeto, do tipo mais simples como responder aquela mensagem horas depois porque no dia anterior o destinatário não conseguiu responder com a rapidez desejada, até as mais graves como agressões, assassinatos passionais, feminicídio, hoje romantizados e disfarçados de prova de amor

Sim, distorcemos o significado de afeto, amor e respeito porque estamos doentes. Contaminados pela necessidade de olhar o “modus operandis” do outro, sem olhar para si por conta da dor que é reconhecer-se o único responsável pela sua desconstrução, reconstrução e construção emocional.

Li uma vez, que as crianças quando estão com o pais fazem birra e manhas por se sentirem seguras. Isso mesmo, se sentem seguras pois, o fato de estar em ambiente controlado (creches, escolas, casa de terceiros) e ter que seguir regras os levam a uma grande tensão, por isso os comportamentos indesejáveis ao se aproximarem dos pais, porque aliviam essas tensões quando se sentem acolhidos, quando são afetados.

‘Engole o choro’, frase que ouvimos repetidamente e nem refletimos que o choro é uma das expressões mais acolhedoras de si mesma. Choro é abraço na alma, é acalanto, é banho de amor para lavar o que se está sentindo

Bell Hooks, no texto “Vivendo de amor”, cita algo parecido com relação a população negra em especial no período escravagista:

“(…) aprenderam a seguir seus impulsos somente em situações de grande necessidade e esperar por um momento ‘seguro’ quando seria possível expressar seus sentimentos. 

Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral, era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade. Um escravo que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, talvez não conseguisse sobreviver.”

Tão atual.

Sempre fui popular na escola, jogadora de handebol, cantava rap, era boa de papo, a conselheira, o abraço acolhedor, enfim, a moça forte do sorriso no rosto e gingado nos pés. Quando entendi o quanto esses adjetivos e rótulos roubavam minha humanidade já tinha passado por várias situações de uso do afeto pela sobrevivência, ludibriando o que de fato sentia naqueles momentos.

“Engole o choro”, frase que ouvimos repetidamente e nem refletimos que o choro é uma das expressões mais acolhedoras de si mesma. Choro é abraço na alma, é acalanto, é banho de amor para lavar o que se está sentindo.

Ainda citando Bell Hooks…

Muitas de nós, mulheres negras, aprendemos a negar nossas necessidades mais íntimas, enquanto desenvolvíamos nossa capacidade de confrontar a vida pública. É por isso que constantemente parecemos ter sucesso no trabalho, mas não na vida privada… Quando vemos uma mulher negra aparentemente segura de si, de seu trabalho, é bem provável que se formos visitá-la sem avisar, com exceção da sala, todo o resto da casa estará uma bagunça, como se tivesse passado um furacão. Creio que esse caos representa um reflexo do seu interior, da falta de cuidado consigo própria. A partir do momento que acreditamos, de preferência desde criança, que nossa saúde emocional importa, poderemos suprir nossas outras necessidades”

Outro momento que me tocou profundamente durante essas andanças na busca do afetar-me e afetar-se foi um festival chamado Yalodê (dona do grande poder feminino), que rolou em Brasília a 1ª edição e trouxe ao palco só mulheres negras. Foi uma chuva de amor e afeto ver tantas protagonistas negras compartilhando o palco com sua arte, exuberância, cores e sorrisos.

Afeto que cura é generosamente dividir a sua própria história na busca de pares que estão se sentindo no caminho apenas como indivíduos comuns, mas que basta levantar o olhar para ver que a caminhada está cheia de gente com o mesmo propósito que é somar no amor. Não é renunciar ao que se é, não é o abandono de si, afeto que cura é apropriar-se da sua única propriedade que é VOCÊ.

Hoje, me recolho no quarto, acendo um incenso, uma vela, tomo um copo d’água e repouso sobre a minha cama, com o coração cheio de amor e a certeza de que afetar-se e afetar para o bem é ter coragem de olhar pra si e também de olhar para o outro e buscando um afeto  de fato saudável, curado, vivo.

Digo a mim mesma, A F E T E – S E prioritariamente com as diversas Lucienes existentes em um mesmo corpo.

Não se abandone, não se prive, AME-SE…

Um homem não te define… Sua casa não te define… Sua carne não te define… Você é seu próprio lar”. Música “Triste, Louca ou Má”.

Por Luciénè Cortes

Lugares que me inspiraram a escrever esse texto:
Festival Yalodê

Interaja conosco, deixe seu comentário, crítica ou opinião

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.