Acervo BF | Opinião – Encarando a ignorância, por Noise D

Texto publicado em 16 de março de 2007, última edição em 30 de julho de 2020.

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Por Noise D

Eu sempre acreditei que a influência da mídia de massa e do mercado mainstream, relativo ao Hip-Hop e, principalmente, à música Rap, criava nas pessoas um alto grau de desinformação e pré-conceito. Num país como o Brasil, onde a ignorância impera pela falta de acesso a educação e a cultura, ficamos estarrecidos com os exemplos de desconhecimento. Ainda mais quando este exemplo provém de um veículo de comunicação oficial e de uma “jornalista de gabarito”.

Parecia apenas mais uma manhã de sexta-feira. Ambiente leve de fim de semana se aproximando. Porém o dia que começava me reservava uma ingrata surpresa. Avisado pelo meu amigo DJ Zinco, que havia lido o jornal, me deparei com uma das maiores aberrações jornalísticas a que tive contato: num texto de crítica a Cultura Hip-Hop ainda pior do que o escrito pelo Sr. Marcelo Mirisola (AOL), em 16 de Abril de 2004, uma “jornalista” chamada Sra. Barbara Gancia – em sua coluna no caderno Cotidiano, da Folha de São Paulo – compara a música Rap, a qual chama ignorantemente de Hip-Hop, ao Axé e a música sertaneja. A crítica vai ao ministro Gilberto Gil e às políticas de incentivo aos vários trabalhos e projetos sociais que envolvem a cultura Hip-Hop apoiados pelo governo federal. Mas também vai mais além, quando cita a “dança da garrafa”. Realmente lamentável, se não irritante. Cito:

Desde quando hip-hop, rap e funk são cultura? Se essas formas de expressão merecem ser divulgadas com o uso de dinheiro público, por que não incluir na lista o axé, a música sertaneja ou, quem sabe, até cursos para ensinar a dança da garrafa?

Acredito que algumas coisas precisam ser esclarecidas para a Sra. Gancia. Em primeiro lugar Rap não é Hip-Hop, e Hip-Hop não é Funk, nem Axé, nem sertanejo, muito menos tem algo a ver com “dança da garrafa”. Por sua vez, o Funk citado pela autora não é o verdadeiro Funk, acredito, mas sim o “Funk carioca”. Tremenda confusão. Rap, cara “jornalista”, é um estilo musical. O termo Hip-Hop refere-se a uma cultura, criada pelo DJ Afrika Bambaataa, nos anos 70, no bairro do Bronx, Nova York, Estados Unidos. Essa cultura, caracterizada por quatro elementos básicos – a dança de rua, o Graffiti, o MC e DJ – é uma das únicas presente no mundo todo, ou seja, é uma cultura global, adotada por milhares de jovens, em centenas de países. E o mais bonito de tudo: em cada país, características muito próprias os distinguem, seja pelo forma como se apresenta sua música Rap, sua dança, seus graffitis ou mesmo pela forma como estes jovens encaram o mundo. Enfim, a autora é por demais simplista quando tenta comparar a cultura Hip-Hop a outros movimentos culturais.

A cultura Hip-Hop, caso você não saiba, é uma cultura de valores e princípios, Sra. Gancia. Ela foi criada com uma clara intenção de levar entretenimento a um segmento marginalizado da população americana – em sua maioria jovens pobres, negros e latinos. Num país onde as drogas e as gangues e sua violência atraíam os jovens, creio que o caminho da dança, da arte e da música, oferecidos pela cultura Hip-Hop, são muito mais atraentes e positivos, você não acha? E foi assim que a música Rap e a Dança de Rua surgiram, o Graffiti foi apropriado e a arte dos toca-discos começou a encantar crianças e jovens de todas as idades. Era a diversão, o momento de lazer que aqueles jovens não tinham sendo proporcionado.

Não se tinham grandes interesses naquela época a não ser esses. Mas, então, os anos foram se passando e a cultura Hip-Hop, através de seu braço fundador, a Universal Zulu Nation, tratou de incluir a todo esse caldeirão cultural valores e princípios que passaria a transmitir aos jovens cotidianamente. Ideais como a paz e a luta contra a violência urbana, a união entre as raças e a não discriminação, a valorização do ser humano, de Deus e da natureza foram incorporados pela cultura Hip-Hop e são defendidos até hoje por todos àqueles que com ela trabalham de forma séria e responsável. Não há nada de utópico ou lúdico nisso, Sra. Gancia. Apenas uma necessidade ardente dos jovens de ideais e uma grande vontade, daqueles que conhecem e entendem o Hip-Hop, de modificar o mundo para melhor.

Desta forma, pouco me importa se a cultura Hip-Hop nasceu nos guetos norte-americanos, como a Senhora relata superficialmente. De nada me interessa também, promover a música Rap e a “moda enlatada” desinteressada com a cultura Hip-Hop e seus valores, como é feito pelas grandes corporações, gravadoras e pela mídia oficial da qual você faz parte. Me admira a sua postura de total ignorância quanto aos aspectos aqui mostrados e pela história que se apresenta. Basta um simples clique pela Internet, em websites de busca para que a Senhora tivesse a mínima noção do que aqui estou explanando. Mas não, você preferiu deixar com que seus pré-conceitos e sua “moral elevada” viessem à tona, deixando exposto toda sua falta de instrução sobre o tema. Não irei aqui nem entrar em maiores explicações quanto ao tráfico de drogas, a vestimenta que usamos ou onde o governo deve investir o seu dinheiro. Isso seria realmente desnecessário. Uma simples reflexão de sua parte lhe daria uma noção das barbaridades a qual você se refere.

É realmente muito ridículo, pra não dizer hilário, constatar que uma “jornalista” da Folha de São Paulo embasa suas críticas, comentários e avaliações naquilo que é reproduzido pela mídia de massa, sem critérios ou profundidade. Triste presenciar uma profissional como você, que deveria demonstrar-se firme quanto a todos os aspectos, bem informada, não estando presa a conceitos manipulados e distorcidos, trabalhando num veículo como esse. Ademais, se escrever “rip-rop” é errado, dar opiniões sem qualquer discernimento é ainda mais feio.

Por fim, gostaria de sugerir a Sra. Barbara Gancia que procurasse pesquisar mais sobre aquilo que vai escrever. Quem sabe conversando com pessoas que entendam do tema ou mesmo pesquisando pela Internet em websites especializados e confiáveis. Acredito que, se a Senhora não aprendeu isso na faculdade de jornalismo, seria de grande valia para um melhor desempenho na sua profissão. Sinta-se também à vontade para me enviar questionamentos quanto a cultura Hip-Hop e à música Rap sempre que quiser escrever sobre o tema. Apesar das nossas diferenças, ficaria muito feliz em poder ajuda-la a compreender melhor o mundo em que você vive. Também aproveito, em tempo oportuno, para sugerir aos responsáveis pelo grande jornal Folha de São Paulo, que procurem selecionar melhor seus profissionais e, quem sabe, procurar alguém que possa realmente escrever sobre cultura Hip-Hop e dar uma resposta a toda essa verdadeira atrocidade literária promovida pela autora.

P.S.: Esta coluna foi devidamente encaminhada para a autora do artigo, Sra. Barbara Gancia. Envie também sua opinião! Encaminhe seu E-mail para barbara@uol.com.br ou, se preferir, envie sua opinião pra mim através do E-mail que terei o maior prazer em encaminha-lo.

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