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Opera Mundi: Guilherme Boulos – Para onde vai a esquerda?

Opera Mundi: Guilherme Boulos – Para onde vai a esquerda?

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Guilherme Boulos, uma das principais lideranças da esquerda brasileira contemporânea, lançou recentemente o livro Para onde vai a esquerda?, em que propõe uma reflexão sobre o momento político atual, os desafios da esquerda frente ao avanço da extrema-direita e as possibilidades de construção de um novo horizonte político-social no país. Em entrevista ao jornalista Breno Altman no canal Opera Mundi, Boulos defendeu que, embora a esquerda tenha acumulado vitórias eleitorais, permanece na defensiva ideológica e cultural, enquanto a extrema-direita avança como força antisistêmica mobilizadora.

Segundo Boulos, vivemos uma era marcada por rupturas e instabilidades: o colapso da ordem liberal construída no pós-Guerra Fria, a emergência de potências como China e Rússia desafiando a hegemonia ocidental, e a profunda crise da democracia liberal e do capitalismo, que concentram riqueza e disseminam pobreza. Nesse contexto, a extrema-direita ocupa o papel de canalizadora do mal-estar social, apresentando um discurso populista que desloca o sentido de “sistema” para instituições democráticas e culturais, como universidades, Supremo Tribunal Federal e movimentos sociais.

Boulos identifica que a esquerda falhou em captar o sentimento de insatisfação social e perdeu espaço na “guerra de valores” e na disputa cultural promovida pela extrema-direita. Ele argumenta que a classe trabalhadora brasileira sofreu transformações profundas, especialmente após os anos 1990, com o avanço do neoliberalismo, a precarização das relações de trabalho e o esvaziamento do sindicalismo. Esse novo cenário exige da esquerda uma reinvenção de sua prática política, voltada para um “trabalho de base repaginado” e para a presença ativa nas redes digitais.

A luta da esquerda, para Boulos, não pode se dar apenas no campo institucional. Ela precisa se expressar como uma força com projeto, valores e capacidade de mobilização social. Ele afirma que não basta apenas denunciar o capitalismo ou bradar palavras de ordem revolucionárias: é preciso construir alternativas concretas e fazer disputas reais nos territórios e nas consciências. “O buraco é mais embaixo”, sintetiza, referindo-se à complexidade da tarefa de disputar o povo com um projeto que seja ao mesmo tempo anticapitalista e enraizado na realidade atual.

Nesse ponto, o papel do hip hop torna-se fundamental. Assim como as igrejas evangélicas pentecostais aprenderam a se comunicar com as populações das periferias e disputar valores no cotidiano, o hip hop, enquanto cultura enraizada nas quebradas, marcada pela denúncia social e pelo desejo de transformação, pode e deve ser um dos pilares dessa disputa cultural. O rap, os DJs, os b-boys e os grafiteiros já constroem desde os anos 1980 uma pedagogia popular das ruas, traduzindo em rima, dança, ritmo e imagem a realidade e as aspirações do povo preto, pobre e periférico.

Para Boulos, a esquerda precisa aprender com essas expressões culturais. Ele cita, por exemplo, uma pesquisa feita durante a campanha municipal de 2024 em São Paulo: moradores da periferia identificavam-no como o político que mais defendia os pobres, mas, contraditoriamente, afirmavam “não serem pobres” e por isso votavam em candidatos de direita. O fenômeno revela como a batalha é simbólica e subjetiva: trata-se da construção de identidade, pertencimento e aspiração. E o hip hop está há décadas na linha de frente dessa construção, mesmo sendo frequentemente negligenciado pelas estruturas formais da esquerda.

Outro ponto abordado por Boulos é a necessidade de uma política anticapitalista com os pés no chão: uma esquerda que tenha “mão no celular e pé no barro”. Ou seja, que combine a disputa digital com a organização comunitária e a luta de rua. Isso também está presente no hip hop: nos eventos de batalhas de rima, nas festas independentes de bairro, nas rodas de conversa promovidas por coletivos culturais, nas oficinas de formação política e artística feitas por MCs e educadores. O hip hop é, portanto, uma escola prática de resistência e construção de alternativas.

Boulos critica dois atalhos recorrentes da esquerda: o centrista, que abandona bandeiras históricas para tentar agradar o centro político; e o sectário, que recusa mediações e insiste numa pureza ideológica desconectada da luta concreta. Ele defende um caminho mais difícil, porém mais frutífero: um projeto popular, solidário, democrático e socialista, que compreenda as contradições da realidade e aposte na construção de vínculos comunitários e de valores coletivos.

Por fim, Boulos chama atenção para a importância da mobilização popular como instrumento central da estratégia de enfrentamento à extrema-direita. “Nenhuma batalha política se ganha a frio”, afirmou. O hip hop, ao manter acesa a chama da indignação, da consciência racial, da justiça social e da afirmação das quebradas, é parte dessa mobilização. E como sempre foi, segue sendo trincheira de luta.