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O que ouvimos em 2025: ‘Ectoplasma’, Galf AC & Digmanybeats

O que ouvimos em 2025: ‘Ectoplasma’, Galf AC & Digmanybeats

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Atravessado por camadas de denúncia social, crítica racial, vivência periférica e um lirismo desnorteante, o disco Ectoplasma se insere na tradição mais combativa do rap brasileiro, mas algo que me prende durante a audição do trampo é a mescla da cadência dos beats experimentais com a ausência de batidas. Seria um projeto anti-pista?

Dane-se, conheço o conceito drumless que subverte a produção no rap alternativo. Não aperto o pause. Sigo com ouvidos atentos…

Galf AC e Digmanybeats costuram relatos pessoais e coletivos num tecido denso, marcado por dores partilhadas e reflexões contundentes à beira do abismo que é a vida espelhada no hip hop. A experiência preta e periférica é apresentada sem filtros, apontando diretamente para as estruturas que naturalizam a desigualdade e a violência. “A polícia nos mata”, diz um dos versos. O recado é curto, direto, sem rodeios. É essa urgência que percorre Ectoplasma.

Oito faixas marcam e formam um corpo machucado e em movimento, feito de som, memória e uma porção considerável de ódio. Entre as linhas que narram o impacto do tráfico (“nada dá mais dinheiro que cocaína e armas”) e a brutalidade da vida nos guetos  (“Instintos aguçados, ouço o passo pelos becos, um sussurro tô ligado”), há também um gesto de afirmação.

Quando os manos dizem que “a cultura é a cura para várias quebradas”, acionam uma dimensão ancestral e coletiva, onde a arte cumpre papel central na luta por dignidade. Eles sabem que precisam acreditar nisso, mesmo com o mundão dizendo o contrário. 

A estética instrumental aqui é inseparável da ética, a poesia em cada sample é a própria política desejada e exposta nos núcleos de resistência das quebradas brasileiras. As letras apresentam um vocabulário que procura destoar da pasteurização lírica de parte da cena mainstream. Sem conversinha torta de  glamourização da miséria, sem ideia para cifras vazias em rimas de ostentação.

“Para ser feliz tem que pagar e se não tem Quem vai morrer sem dignidade, seres descartáveis”

Como na tradição dos melhores raps, a escrita é construída a partir de metáforas afiadas (“abre-se o abismo das almas perdidas”), repetições que reverberam o trauma e jogos de palavras que expõem contradições sociais e afetivas em viagens sonoras, recortadas e filtradas.

Em trechos sujos e pesados dos beats, Galf AC e Digmanybeats contam as histórias deste mundo urbano conhecido pelo drama sangrento da polícia contra o povo pobre. São os nossos jovens que são retirados da cena de maneira violenta.  Entretanto,  em tom sereno,  Ectoplasma também fala de esperança:

“Na fumaça onde naveguei, sete mares, eu labuto junto com você, não me trai, a semente deixa florescer, te degusto no Amanhecer, peço paz”

Mesmo ao reconhecer a presença e o peso dos algoritmos (“os algoritmos te julga”), Ectoplasma é um trabalho que se recusa a moldar sua arte à lógica das plataformas. Não é nenhuma novidade a tensão permanente entre autonomia e mercado, liberdade e visibilidade, a maioria dos artistas passam por isso. Desafiar a lógica dos números e dos likes, priorizando a urgência da mensagem sobre qualquer fórmula rentável tem um preço a ser pago. O hip hop será fiador?

Jair dos Santos (Cortecertu) passou a fazer parte da Equipe do Bocada Forte em 2001 como colaborador e rapidamente se tornou um dos editores e principal criador de conteúdo. É pesquisador, DJ, compositor, beatmaker e ex-instrutor da Associação Amigos da Molecada da Vila Santa Catarina (bairro da zona sul de São Paulo). Trabalhou na pesquisa de imagem e de texto no DVD "1000 trutas, 1000 tretas", do grupo Racionais MC. Foi colunista do jornal Brasil de Fato e pesquisador iconográfico para a revista Caros Amigos, no livro Hip Hop Brasil. Colaborador da Revista 451. Foi coordenador da digitalização do acervo do Banco de Dados da Folha de Paulo.