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O que ouvimos em 2025: ‘Antes do In Memoriam’, NA Emcee

O que ouvimos em 2025: ‘Antes do In Memoriam’, NA Emcee

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Nascido em São Paulo e criado no bairro do Ipiranga, zona sul da capital, o rapper NA Emcee tem algo em comum com o BF, está no rap e no hip hop desde 1999. Entre 2005 e 2016, sua caminhada começou no grupo Controlversos (2005), com o qual lançou dois álbuns (Terra de Gigantes e Alguns Céus Distantes de Casa). Sua carreira estreou em 2016, com o disco Produto Interno, Peso Bruto, e desde então tem se mantido ativo com colaborações e lançamentos.

O segundo semestre de 2025 marca mais um capítulo dessa história com o lançamento do EP Antes do In Memoriam. A obra aborda o esvaziamento das relações humanas, o impacto da tecnologia na vida cotidiana e a invisibilidade de muitos artistas ainda em atividade. O projeto fala sobre a valorização da arte e dos artistas enquanto estão vivos, antes que seus nomes entrem nas listas póstumas de reconhecimento tardio.

Com produção dividida entre nomes como WE NOS BEATZ, Rodrigues Natural Style, P.e.z.a.o.til aka Arquitteto e Evandro Sousa, o EP conta ainda com participações de O.D, DJ Claytão. Gravado entre o fim de 2024 e 2025, o disco é resultado de um processo cuidadoso e reflexivo.

Nesta entrevista ao Bocada Forte, NA fala sobre o conceito do EP, sua vivência no underground, o papel do rap num tempo de superficialidade e a urgência de reconhecer a importância de se estar presente na arte, sem esquecer dos corres da vida. 

6b44a0c5-7a66-4ebe-b64f-a79893dc7511-scaled O que ouvimos em 2025: 'Antes do In Memoriam', NA Emcee

BF: O título do EP já carrega um peso reflexivo. Qual foi o estalo que te levou a pensar esse conceito de “Antes do In Memoriam”? Foi algo pessoal ou mais coletivo?
NA Emcee: Foi um estalo tanto pessoal quanto coletivo. O título nasce da vivência de estar no “underground”, assim como tantos outros artistas que seguem produzindo com consistência, mas sem o devido reconhecimento. Muitas vezes, somos descredibilizados até por quem está ao nosso redor, que vê nossa trajetória de perto, mas mede valor apenas por alcance ou números.
O EP propõe essa reflexão: por que tantos só são valorizados depois que se vão? Ele é um apelo para que artistas e suas obras sejam reconhecidos em vida. Mas vai além também, convidando quem escuta a olhar com mais atenção para as relações humanas e para aquilo que é simples, cotidiano, mas que costuma passar despercebido diante do caos urbano e da lógica acelerada que nos engole.

BF: Você traz uma crítica forte à forma como a arte e os artistas só ganham reconhecimento após a morte. Como esse desabafo se traduz nas faixas do EP?
NA Emcee: O desabafo está presente em cada faixa do EP, que é atravessado por uma crítica à forma como temos valorizado mais as coisas inanimadas do que as próprias pessoas. Trago reflexões sobre o esvaziamento das relações humanas, o impacto da tecnologia nessas conexões, o ritmo acelerado da vida e a dificuldade que temos em reconhecer o valor do outro em vida.
Falo também sobre a responsabilidade de um MC ao portar um microfone, sobre o poder transformador da palavra e da cultura Hip-Hop, e sobre o tempo: o passado como fonte de aprendizado, o presente como oportunidade de recomeço e o futuro como espaço de fé, mesmo diante das incertezas.

BF: O EP fala sobre o caos urbano e o impacto das tecnologias nas relações humanas. Na sua visão, qual é o papel da arte, e principalmente do rap, nesse cenário de superficialidade e imediatismo?
NA Emcee: Vivemos em um tempo em que tudo é veloz, descartável e mediado por telas. Por isso, ao meu ver, tanto o rap quanto outras formas de expressão artística têm o dever de instigar a reflexão, provocar, reconectar as pessoas com o que é real, além de entreter e adaptar-se à realidade sem perder a essência.
O rap, por sua natureza de resistência e como narrativa da realidade, é uma ferramenta potente nesse processo. Ele tem a capacidade de dar voz a quem não é ouvido, de traduzir o caos em reflexão e transformar vivências em mensagens que atravessam e despertam.

BF: Essa proposta de escuta atenta vai na contramão da lógica do algoritmo. Como você enxerga o desafio de se fazer música profunda em tempos de consumo rápido?
NA Emcee: Eu simplesmente faço, é meu jeito de compor. Claro que, por conta desse consumo rápido e desenfreado, acabo optando por lançar singles e EPs em vez de discos. Na real, meu único álbum completo até agora foi lançado em 2016, Produto Interno, Peso Bruto.
A gente precisa entender que as gerações mudam e, com elas, a forma de ver e consumir o mundo também. Não faz sentido gastar minha energia em conflito com isso. Pelo contrário, acredito que também podemos aprender com as novas gerações. Mas o que eu não posso fazer é abrir mão da minha essência, que está diretamente ligada à minha educação e à cultura à qual faço parte. Não posso ignorar a minha caminhada, tudo o que vivi, aprendi e continuo aprendendo com o Hip Hop. Muito menos me permitir ser superficial só pra me enquadrar no que o algoritmo exige.

BF: O trabalho conta com colaborações importantes, como O.D, Evandro Sousa, DJ Claytão, entre outros. Como foi o processo de conexão com essas pessoas e como cada uma contribuiu para a identidade do EP?
NA Emcee: Trabalhar com esses artistas foi incrível! Antes de ir ao estúdio, entrei em contato com produtores de peso como WE NOS BEATZ, Rodrigues Natural Style, P.e.z.a.o.til aka Arquitteto e Evandro Sousa. Cada um deles agregou muito valor e identidade ao EP, trazendo seu estilo único e particular na hora de produzir.
Passei um tempo procurando por estúdios até que, por meio de um amigo em comum chamado Fanti, conheci o O.D, da produtora O Topo, que me recebeu muito bem! As faixas deste EP venho gravando desde o final de 2024. Já quase no fim do processo de gravação, convidei o DJ Claytão para participar da faixa “One Mic”. Ele atendeu ao convite rapidamente e fez um trabalho maravilhoso. É um processo que exige muito trabalho, mas que me dá prazer. Arrisco dizer que a parte que mais curto é justamente o processo de criação e o tempo de estúdio.

BF: “Antes do In Memoriam” parece ser um chamado à valorização da presença. O que, pra você, significa estar presente na arte e na vida hoje?
NA Emcee: Pra mim, estar presente na arte e na vida hoje é um ato de resistência!
Na arte, estar presente é colocar verdade no que se faz, é ser honesto com sua caminhada, com a sua história e com o que você acredita, sem se perder nas exigências do algoritmo ou nas comparações.
Na vida, é valorizar as conexões reais, os afetos, as trocas sinceras. É ouvir de verdade, olhar nos olhos, desacelerar quando possível. O EP nasce justamente desse incômodo, de ver tanta gente sendo ignorada em vida, só sendo lembrada depois. Então, Antes do In Memoriam é esse grito, para que a gente esteja mais inteiro agora, e reconheça o valor das pessoas enquanto elas ainda estão aqui.

BF: Você acredita que a cena atual do rap tem dado espaço suficiente para propostas mais reflexivas como a sua? Ou ainda há uma barreira cultural a ser rompida?
NA Emcee: Acredito que sim! Basta ouvir as obras de Djonga, Neto (Síntese), Kamau, Rashid, Emicida, Amiri, Stefanie, Racionais MC’s, que já marcam presença até no campo acadêmico, Zudizilla, entre outros.
É claro que ainda existem barreiras a serem rompidas. O rap ainda enfrenta muito preconceito e carrega estereótipos negativos, mesmo com todos os avanços e conquistas que tivemos até aqui. Mas é inegável o quanto o gênero vem se consolidando como uma expressão artística e intelectual potente.

BF: Muitos artistas independentes vivem à margem justamente por não se encaixarem em fórmulas prontas. Como você lida com isso e o que te motiva a continuar criando mesmo diante da desvalorização?
NA Emcee: Penso que, quando a arte é feita com verdade, ela mantém seu público, mesmo que não seja um grande número. A fórmula é simples: trabalhar com dedicação e ser real. Seguir na contramão é apenas a consequência de quem somos e do compromisso que temos com a nossa essência.
Minha motivação vem do amor e da gratidão que tenho pela cultura Hip-Hop. É claro que existem momentos de desânimo, mas, nessas horas, conto com o apoio de alguns amigos e da minha família, que me colocam pra cima e me incentivam a seguir em frente. Isso faz toda a diferença pra eu não parar.

BF: Existe alguma faixa no EP que você considera mais emblemática dentro dessa ideia de valorização em vida? Se sim, o que ela representa pra você?
NA Emcee: Existe, sim, uma faixa emblemática que norteou todo o trabalho, inclusive, ela dá título ao EP Antes do In Memoriam. Essa track é especialmente representativa porque foi a partir dela que criei todo o conceito do projeto. Ela me fez repensar muitas coisas, tanto na arte quanto na vida.

BF: O que você espera que quem ouça esse trampo leve consigo depois da última faixa? É mais sobre consciência, resistência ou reconexão?
NA Emcee: Eu espero que quem ouvir este trabalho, possa refletir sobre o tema, considerando cada faixa do projeto.
Esse EP é sobre consciência, resistência e reconexão. Consciência para refletir sobre o tempo, as relações humanas e a valorização dos artistas ainda em vida. Resistência na escolha de permanecer fiel à essência, mesmo diante da pressão do mercado e do algoritmo. E reconexão no convite para olhar com mais atenção para o outro, para si mesmo e para o que realmente importa. Se, no fim do EP, a pessoa se sentir tocada de alguma forma, já valeu a pena. Porque mais do que só ouvir, a ideia é sentir.

 

Jair dos Santos (Cortecertu) passou a fazer parte da Equipe do Bocada Forte em 2001 como colaborador e rapidamente se tornou um dos editores e principal criador de conteúdo. É pesquisador, DJ, compositor, beatmaker e ex-instrutor da Associação Amigos da Molecada da Vila Santa Catarina (bairro da zona sul de São Paulo). Trabalhou na pesquisa de imagem e de texto no DVD "1000 trutas, 1000 tretas", do grupo Racionais MC. Foi colunista do jornal Brasil de Fato e pesquisador iconográfico para a revista Caros Amigos, no livro Hip Hop Brasil. Colaborador da Revista 451. Foi coordenador da digitalização do acervo do Banco de Dados da Folha de Paulo.