A despedida do Poeta que é a Voz da Periferia. Emmy Jota lança o último álbum da carreira e nos convida a refletir

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No dia 17 de março de 2008 o DJ Cortecertu escreveu exatamente isso sobre o álbum ‘A Flecha e o Poeta’ do grupo Voz da Periferia:

O Hip Hop pelo Hip Hop

“A juventude da periferia parece ter esquecido da poesia e da reflexão que o Rap um dia propôs, o BPM acelerado sequestrou a rima que foi feita entre riscos e malandragens, nos bairros suburbanos o Rap Nacional já não ecoa como antes. Mesmo assim, mensalmente, artistas do Rap lançam CDs e singles pela internet, a maior parte destes trabalhos é pura perda de tempo, nada novo, nada criativo. ‘A Flecha e o Poeta’, trabalho do grupo Voz da Periferia, vai contra essa corrente.

Num momento onde o formato MP3 tira a cara do artista e dilui sua obra em arquivos nos tocadores multimídia da vida, numa cena em que o ouvinte não sabe mais o que é encarte ou ficha técnica, os integrantes do Voz da Periferia levaram a sério o projeto gráfico do álbum e investiram muito na qualidade dos instrumentais.”

Assista o ‘Especial KL Música Parte II’ – Conexões 22

Parece que foi escrito hoje de tão atual. Relembrei desse texto porque o Emmy Jota (MJ), integrante do grupo Voz da Periferia e responsável pelas letras desse álbum, acaba de lançar seu disco de despedida pelo selo KL Música‘A Loucura é Bela Porque é Realidade?’. Enquanto um pseudo-rapper bate milhões de plays fazendo uma música pseudoperiférica, um legitimo representante do que de melhor é produzido na periferia, lança um álbum com 19 faixas* e se despede de uma história que começou nos anos 90. Mesmo lançando esse derradeiro trabalho pelo selo do DJ KL Jay, com participação dele e também uma participação póstuma da Dina Di, MJ não será convidado para entrevistas em podcasts, os pseudos sites e blogs especializados irão fazer o que sempre fazem, publicar apenas o release enviado pela assessoria do selo.

Ouça a faixa “Voando só” com participação de Dina Di. Essa música já havia sido lançada antes, com outro instrumental, em 2016. Essa foi uma das últimas letras escritas por Dina Di, pois ela veio a falecer antes que a música pudesse ser lançada. Inicialmente seria uma música onde rimariam Emmy Jota, Dina Di e Rael em uma produção do DJ KL Jay. A parceria entre Emmy Jota e Rael aconteceu na faixa “A Trajetória”, lançada no álbum “KL Jay na Batida Vol.02 – No Quarto Sozinho” e também no primeiro álbum do Emmy Jota (Ruas… Luas e Poesias). Para essa versão ele conseguiu resgatar algumas vozes que a Dina Di havia gravado no Atelier Studio, foram treinos que ela estava fazendo como se estivesse cantando em um coral, preste atenção no início da música. 

Faz muitos anos que temos Rap sem poesia e até nos acostumamos com isso, se tornou normal. Emmy Jota é um tipo de rapper em extinção, traz verdade e profundidade em suas letras na forma de poesia rimada. É lógico que ele não é o único, existem outros e estão na mesma condição, sem visibilidade, não fazem parte da indústria atual, indústria essa que escraviza artistas com números milionários e esmaga, exclui através de algoritmos e engajamento a legitima arte periférica. O artista que se diz ‘comunista’, mas não se apresenta e nem pisa nos bairros dormitórios da classe operária/trabalhadora, consegue mais atenção do que o artista que está ali, vivendo e sendo parte da realidade que canta.

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O grupo Voz da Periferia foi formado em 1994 no extremo sul de São Paulo (Jardim Ângela, Paranapanema, Morro do Índio, Alto da Riviera). Em 1999 participaram de uma coletânea da Kaskatas, em 2001 participaram do ‘KL Jay na Batida Vol.03’, logo em seguida um dos integrantes foi assassinado (o apelido do mano era 157, nome André Luiz). Após esse trauma eles começaram a gravação do álbum, terminaram em 2006 e só em 2008 foi lançado pelo selo deles mesmos, o Trindade Records. Nesse momento os principais integrantes eram DJ Bola e Emmy Jota, mas também faziam parte Nio, AiceMan e BonyCrise. Fiz esse breve resumo do grupo, recorrendo ao acervo do Bocada Forte, pra contextualizar e mostrar o quanto essa legitimidade periférica é importante, e olha que nem falei do trampo social do DJ Bola com o projeto A Banca.

Ouça abaixo a faixa “A lua e o vinho”, ela estava no álbum ‘A Flecha e o Poeta’. Emmy Jota gravou uma nova versão com a participação de Vilma Santos e produção de V-Rep, a versão original foi produzida por Erick 12 e tinha participação de algumas crianças nas dobras e refrões (ouça aqui).

Nesse processo de criação Emmy Jota precisou ser internado para cuidar da sua saúde mental, mas o conteúdo continuou o mesmo e a primeira faixa a ser lançada foi “Bom dia”, inspirada no despertar de um sujeito periférico em mais um dia de luta, com seus amores, dores e conflitos externos e internos. A segunda faixa a ser lançada foi a “Cosmos”, que tem a participação do DJ KL Jay. Ouça as duas abaixo e perceba o quanto a poesia desse mano é grandiosa.

A sua internação foi por conta de um quadro de esquizofrenia e por isso ele resolveu fazer essa provocação, também chamar a atenção para os cuidados com a saúde mental, convidar para a reflexão e perguntar – ‘A Loucura é Bela Porque é Realidade?’. Durante a sua internação, que durou 6 meses, ele escreveu seis faixas do álbum – “Não sei porque”, “A clínica”, “Nos cômodos da razão”, “Problemas do lodo”, “Inquietações” e “Sin city” (essa ele mesclou com alguns trechos da música “O poeta e o sábio” assista o vídeo abaixo).

Espero que ouçam e se gostarem compartilhem, é mais do que necessário valorizar a arte e os artistas periféricos, operários da música que a indústria escravocrata do streaming insiste em invisibilizar. Bora pesquisar, se informar e saber quem realmente está por trás dos milhões de plays alcançados por alguns artistas, não é só talento, trabalho e muito menos o tal do “mérito”. Sigo acreditando que o Hip Hop salva através de cada uma das suas manifestações artísticas, culturais, políticas e sociais. São essas as manifestações que tento destacar no Bocada Forte. Aquelas manifestações que não salvam, não são Hip Hop, logo não estarão aqui! Inclusive o selo KL Música é muito mais que música, não à toa Emmy Jota é um dos que rimam na faixa “Estamos vivos”!

Comecei com um trecho da matéria do DJ Cortecertu feita em 2008 e finalizo com outro trecho da mesma matéria que também cabe para essa obra, só inclui dois parênteses:

“A proposta cultural e social do Rap Nacional cobra uma postura, uma posição. A cena é de desigualdade, a batalha é dura. O grupo Voz da Periferia (Emmy Jota) mostra de que lado do muro está.

Ponto pra nós, pois os dias de guerra não chegaram ao fim. Precisamos de focos de resistência. Em meio a tanta diversão (romantização do alcoolismo), sexo casual, alienação e individualismo, a periferia mostra uma de suas vozes.”

Participações: Elisângela Ferreira, Nino Rapper, Jé Bernardo, MC Gustavine, Vilma Santos, Ingrid Ziviani, Aline Biano, Marta Soares, Thiago Gonçalves, Erica Santos e José Roberto.
Produção: Nino Rapper, DJ Dri, AiceMan, Base MC, V-Rep e DJ Will.

* A faixa “Camundongo (Interlúdio)”, é duas em uma, o pequeno interlúdio do final tem a participação do MC Gustavine e por isso o total de 19 faixas.

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Ouça o álbum completo ou CLIQUE AQUI para escolher onde ouvir

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