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Assata Shakur morre em Cuba e deixa um legado que atravessa gerações

Assata Shakur morre em Cuba e deixa um legado que atravessa gerações

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Foto: Reprodução/Blackpast

A revolucionária Assata Shakur morreu em Havana, Cuba, nesta quinta-feira (25), aos 78 anos. A sua morte fecha um ciclo cheio de violência estatal dos EUA, exílio e militância, mas não apaga o que sua vida significa para quem faz parte da ala politizada do Hip Hop que enfrenta o racismo e a desigualdade causada pelo capitalismo. 

Nascida JoAnne Deborah Byron em 16 de julho de 1947, no Queens, Nova York, Assata assumiu o nome que a tornou conhecida enquanto percorreu as ruas do ativismo no país mais poderoso do planeta. A autobiografia que escreveu ilumina essa trajetória com detalhes cruéis e íntimos. 

Nos anos 1960, ela se envolveu em protestos contra a Guerra do Vietnã e pelas demandas dos direitos civis. Trabalhou em programas comunitários dos Panteras Negras no Harlem, bolsas de alimentação e clínicas populares, experiências que mostram a dimensão social do ativismo negro daquela época e a aposta na organização comunitária como forma de resistência.

Ao mesmo tempo, enfrentou contradições internas. O machismo dentro dos movimentos empurrou-na em direção a outras formas de luta. Foi esse percurso que a aproximou do Exército de Libertação Negra, organização que defendia respostas armadas contra as violências raciais e que a colocou no radar do FBI.

O programa Cointelpro do FBI, documentado por décadas, perseguiu lideranças negras. Assata tornou-se alvo dessa política de desestabilização. Entre 1971 e 1973 acumulou acusações por assaltos, sequestros e homicídios. Em muitos casos houve absolvições, arquivamentos ou falta de provas. Ainda assim, a máquina midiática e policial já havia forjado a imagem que interessava ao Estado.  No dia de sua morte, a extrema direita, como não poderia deixar de ser,  aproveitou partes dessas irregularidades para montar a narrativa reducionista de que Assata matou um policial e fugiu para Cuba.

O episódio que marcou definitivamente sua história ocorreu em 2 de maio de 1973, na New Jersey Turnpike, 102 dias antes da festa organizada por Cindy Campbell  que é considerada o marco inicial do Hip Hop. Um tiroteio terminou com a morte do policial Werner Foerster e com a morte do companheiro Zayd Malik Shakur. Assata foi baleada, levou cuidados de emergência e foi presa. Em seu relato, registrado no livro e nos relatos que já circulam amplamente, descreve o tratamento humilhante no hospital e as tentativas de forçar um relato que a incriminasse.

O julgamento em Nova Jérsei, que culminou na condenação de 1977, teve graves irregularidades segundo relatos documentados. Júri composto apenas por brancos, proibição da defesa para apresentar testemunhas sobre a atuação do FBI, desaparecimento de documentos e laudos médicos que contrariam a versão de que ela teria atirado. Laudos chegaram a afirmar que ferimentos impediam movimentos capazes de manusear e disparar uma arma. Ainda assim, veio a condenação.

As condições prisionais descritas por Assata são parte do documento central desta história. Confinada em celas masculinas em certo momento, algemada a uma cama, submetida a revistas íntimas, isolamento prolongado, falta de atendimento médico adequado, tortura psicológica e humilhação. Durante um processo judicial descobriu que estava grávida e relata pressões para aborto e forte vigilância no parto. A separação abrupta de sua filha, Kakuya, foi citada por ela como uma ferida permanente.

Essas vivências não a quebraram. Pelo contrário. Sua autobiografia mostra como a experiência carcerária aprofundou sua leitura crítica sobre o sistema penal e reforçou a convicção na necessidade de autodeterminação negra. Passou a entender o episódio não como exceção, mas como evidência da regra estrutural do racismo.

Em 1979, com auxílio de militantes, escapou da prisão. Em 1984, ano que marca o início da cultura Hip Hop no Brasil, Assata conseguiu asilo político em Cuba, onde ficou até sua morte. Para o governo dos EUA ela sempre foi uma fugitiva e, em 2013, no governo Barack Obama, entrou para a lista do FBI que a classificou como terrorista, a primeira mulher a receber essa designação. Para movimentos e comunidades negras ao redor do mundo, porém, ela foi e permanece referência de dignidade e resistência.

A sua voz atravessou gerações graças ao livro que escreveu. Publicada originalmente em 1988 e editada no Brasil, a autobiografia circulou em coletivos, bibliotecas de militância e nas periferias. Trechos brutais, como o relato daquelas horas no hospital e dos interrogatórios, mostram o caráter íntimo e político de sua escrita.

A morte de Assata também suscitou ampla cobertura da imprensa internacional. Jornais comentaram seu papel como símbolo da luta negra e do debate sobre justiça nos Estados Unidos. Veículos como Reuters, The Guardian e AP destacaram que sua vida polarizava opiniões entre quem a via como ativista e quem a via como criminosa buscada pelo Estado. Essas reportagens sublinham a ambivalência da figura pública que ela se tornou. 

Seu nome já tinha sido apropriado por linguagens do hip hop e por discursos da cultura de resistência. Na ala militante do rap brasileiro há uma presença latente de sua influência nas letras que denunciam violência policial, encarceramento em massa e racismo. 

A vida de Assata coloca perguntas que permanecem cruciais para o Brasil. Se o processo que a criminalizou mexe com peças fundamentais do sistema jurídico norte-americano, aqui temos paralelos óbvios: violência policial cotidiana, encarceramento em massa e racismo institucional, um espelho que reflete práticas e políticas que também estruturam o Brasil.

Há ainda o componente humano. Assata era irmã, mãe, autora, militante. Sua autobiografia traz cenas que não cabem na simplificação das manchetes dos grandes jornais brasileiros. Reduzir sua história a uma foto de procurada no cartaz do FBI é apagar as perguntas que ela deixou sobre justiça e memória. O Rap e o Hip Hop brasileiro precisam manter sua luta viva.