1973: A geração pré-Hip Hop crescendo com e sem amarras
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Phono 1: Na quadra da escola
Assim como a legitimidade no Rap e no Hip Hop é discutida de forma intensa por quem convive com as rápidas transformações nas tecnologias de informação e no surgimento de novos equipamentos que proporcionam a criação de diferentes gêneros e discursos na cultura de rua em nossos dias, na década de 1970, uma geração de jovens crescia distante dos tabus e embates que rolavam entre os artistas do samba e da MPB, que reagiam à forte presença da música estrangeira no Brasil. Os sons que vinham de fora já faziam parte da formação musical e festeira da galera.
Em 1977, no jornal Cidade de Santos (30.04.1977), Natal da Portela (Natalino José do Nascimento) deixou uma profecia que continua a ecoar. Para ele, as escolas de samba estavam em processo de esvaziamento cultural, substituindo a vivência comunitária por um modelo empresarial de espetáculo. Seu depoimento ao Museu da Imagem e Som da Guanabara alertava que, em poucos anos, o samba perderia autenticidade diante do luxo e da competição que passavam a dominar o Carnaval. O jornal também aborda o som diferenciado que alguns jovens estavam curtindo nas quadras.
Dois anos antes, em 1975, José Ramos Tinhorão reforçava a crítica ao denunciar a “desnacionalização” das escolas de samba e da música popular. Segundo ele, o samba se transformava em “desfile de luxo e ilusões”, comandado por cenógrafos e interesses externos, afastando-se das comunidades que o criaram. A invasão de artistas profissionais e milionários mostrava que o samba já não pertencia ao povo.
Phono 2: Brasil Estrangeiro
“O disco de música estrangeira chega no mercado brasileiro pelo mesmo preço de um disco produzido no Brasil, quando, na realidade, um disco produzido no Brasil é muito mais caro porque, para se produzir um disco aqui, paga-se o cantor, o horário de estúdio, os músicos, o arranjador, os técnicos”, também registrava Tinhorão na entrevista “Meu Brasil estrangeiro”, publicada na revista O Cruzeiro (15.01.1975). O crítico musical cita a concorrência desigual que inunda as lojas e rádios brasileiras com músicas de fora do país.
Esse debate se estendia à América Latina. Pesquisa da Associated Press (AP), publicada na Folha de S.Paulo em 30 de março de 1974, mostrava que em países como Argentina, Chile, México e Colômbia a música estrangeira também suplantava ritmos locais, como o tango e a cumbia. Mesmo com a força de figuras icônicas como Carlos Gardel ou Raphael, a juventude se inclinava cada vez mais para os sons vindos dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Ao mesmo tempo, do outro lado do continente, surgia em Nova York uma nova forma de expressão cultural. Nos bairros do Bronx, Harlem e Brooklyn, jovens negros e latinos, também marginalizados, davam origem ao Hip Hop. As block parties organizadas por DJs como Kool Herc, no início dos anos 70, criaram um espaço de resistência, improviso e coletividade — muito próximo do que as rodas de samba significaram décadas antes no Rio de Janeiro.
Enquanto no Brasil a quadra da Portela abrigava o que chamavam de “Black-Soul-Rio”, movimento criticado por sambistas tradicionais como Candeia e Clementina de Jesus, no Bronx (EUA), jovens sem acesso ao mercado fonográfico criavam seus próprios espaços, inaugurando, posteriormente, o Rap como uma forma de narrar realidades invisíveis para os políticos que só se interessavam em acelerar o projeto de gentrificação. Em ambos os casos, a juventude negra respondia a um cenário de exclusão, mas em contextos distintos: no Brasil, a luta era entre a preservação da tradição e as outras formas de diversão e expressão; nos EUA, a parada era pela invenção de uma nova linguagem.
Tinhorão alertava que a importação de artistas e compositores profissionais roubava das comunidades brasileiras a chance de ocupar o mercado cultural. Em Nova York, a invenção do MC e do DJ era justamente a recusa desse modelo: qualquer um poderia rimar, improvisar, manipular discos e criar novas músicas a partir do que já existia. Era a democratização radical da cultura, com as festas gratuitas em parques públicos, voltadas para a comunidade.
Aqui, para Tinhorão, a música estrangeira poderia ser uma ameaça à segurança nacional. O crítico e jornalista, como muitos outros profissionais da comunicação da época, não percebeu que a identificação dos jovens negros brasileiros com o poder do funk e do soul estadunidenses criava uma geração que estava conectada à cultura black e ao orgulho negro. Alheios ou não à discussão sobre a soberania da música popular brasileira, esses jovens lotavam os bailes.
Nos Estados Unidos, a apropriação de elementos do funk, da disco e do soul por meio da manipulação de vinis alimentava a criação de algo local, enraizado na experiência do gueto, isso também foi interpretado como ameaça para as elites brancas norte-americanas . Em nosso país, com o passar dos anos, os bailes ultrapassaram as paredes das quadras das escolas de samba. Viraram realidade para as crianças que ouviam ao longe os sons da novidade musical, que já não era apenas estrangeira pelas vizinhanças. A banda Black Rio (1976), entre outras, é um grande exemplo. Nos anos 1980, parte dessas “crianças” que dançavam ao som de um funk com muitos elementos eletrônicos formariam a primeira geração do Hip Hop brasileiro.
Numa relação inversa, o Movimento Black Power Brasileiro e o Hip Hop compartilhavam a mesma energia de afirmação negra: enquanto o primeiro era visto como estrangeirismo dentro das quadras de samba, o segundo era a forma encontrada por jovens para resistir ao sistema que os marginalizava. No Brasil, a música era de fora, mas também era interpretada como nossa. O amantes da black music fizeram o que quiseram com ela…
Vindo de um país que exportava cultura de massa, nos anos 1990, os jovens marginalizados conseguiram transformar essa cultura em arma política, que depois lutou contra interferências da elite, mas também sofreu várias mudanças no discurso para sobreviver nos domínios da indústria fonográfica.
Line 1: Entre bailes e balas na ditadura brasileira
Antes de agosto de 1973, ano zero do Hip Hop mundial, o estudante Eudaldo Gomes da Silva foi uma das vítimas do chamado Massacre da Chácara São Bento, em Pernambuco, quando, entre os dias 8 e 9 de janeiro de 1973, foi morto ao lado de outros cinco militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). A operação foi conduzida pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS/SP, com a colaboração do ex-cabo José Anselmo dos Santos (Cabo Anselmo), então infiltrado na organização.
Line 2: A imprensa alinhada
No dia 11 de janeiro de 1973, o jornal Folha de S.Paulo publicou a versão oficial das forças de segurança da ditadura vigente, tratando os militantes como terroristas:
Resumo da matéria: A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), embora desarticulada no Brasil, tentou realizar um congresso nacional em Paulista, Pernambuco. As forças de segurança, já informadas, cercaram a área e, após tiroteio, invadiram o local, encontrando terroristas mortos (Eudaldo Gomes da Silva, Pauline Reichstul, Soledad Barrett Viedma, José Manuel da Silva e Jarbas Pereira Marques) e outros gravemente feridos que morreram posteriormente. Dois terroristas fugiram. No dia seguinte, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, possivelmente um dos fugitivos e recém-chegado de Cuba, foi morto em tiroteio ao reagir à prisão. A operação resultou na prisão de vários membros da VPR, incluindo um estrangeiro, e na apreensão de documentos, armas, munição, mimeógrafos e equipamentos. A VPR, apesar dos reveses, continuava a estimular a propaganda subversiva e ações esporádicas.





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