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Projeto independente leva leitura às periferias e desafia ausência do poder público

Projeto independente leva leitura às periferias e desafia ausência do poder público

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Fotos: Edson Moura

Criado em 2011 por Edson Moura, o projeto Parceiros na Literatura surge como resposta à exclusão histórica do acesso à leitura nas periferias de São Paulo. Em um cenário onde políticas públicas pouco alcançam os territórios populares, a iniciativa construiu, de forma independente, uma rede de circulação de livros que ocupa ruas, praças e manifestações culturais. Com apoio da comunidade, mas sem vínculos institucionais, o projeto se afirma como prática de resistência cultural e política, transformando a literatura em ferramenta de crítica social e formação coletiva. Nesta entrevista ao Bocada Forte, Edson fala sobre os caminhos trilhados, a relação com o rap e o samba e os desafios de manter viva uma ação que confronta a lógica de exclusão e mercantilização da cultura.

BF: O projeto nasceu em 2011, num contexto político e social específico. O que desse período influenciou a criação do Parceiros na Literatura?

Edson Moura: A influência veio do acesso limitado aos livros, foi o quê observei a época, já que espaços eram restringidos ou difícil a entrada. É o caso de algumas bibliotecas ou espaços de leitura em determinadas escolas, com isso veio a ideia de incentivo e democratização aos livros.

BF: Qual foi o primeiro impacto concreto que você percebeu quando um livro chegou às mãos de alguém em um espaço público?

Edson Moura: Eu estava em uma praça arrumando os livros em uma mesa, quando uma senhora veio até a minha pessoa e pediu se poderia levar um livro que ela achou a capa bonita, pois presentearia o netinho. Quando ela pegou o livro, parecia que havia recebido um tesouro, aquilo mexeu demais comigo. Ela ainda disse: Nunca vi tal atitude alguém levar livros até as pessoas. Ali percebi que o quê estava realizando havia muito sentido.

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BF: Como vocês escolhem os locais de atuação? Existe uma leitura prévia sobre o território ou é algo mais espontâneo?

Edson Moura: A escolha geralmente é de maneira natural e espontânea, procuramos não sermos moldados por determinados locais ou regiões, fazemos de acordo com nossos sentimentos e do jeito mais próximo aos que sentimos necessidade de quem irá ser beneficiado. Procuramos ser o mais natural possível sem perdermos quem somos.

BF: O rap e o samba aparecem como espaços de circulação do projeto. Como essa aproximação com as culturas populares transformou o próprio Parceiros na Literatura?

Edson Moura: Transformou de forma mais que positiva, pois as culturas populares nos abraçaram de uma tal forma, onde há o rap, samba e as batalhas de rima, somos convidados a estar presentes. Muitas vezes comparecemos aos eventos levando a literatura, desde que o evento seja em espaços públicos, que sejam gratuitos ou abertos à população.

BF: A doação de livros envolve também uma relação de afeto e memória. Que histórias de doadores marcaram o caminho do projeto?

Edson Moura: Uma história que marcou foi a de uma doadora do Tremembé na Zona Norte, fui retirar uma doação de livros e conversando com ela, a mesma ficou impactada com o projeto, tamanha dedicação do que fazemos. Outros momentos foi o encontro com dois nomes de peso em dias diferentes, Sérgio Vaz e Ferréz nos receberam e nos doaram diversos títulos, pra que pudéssemos compartilhar pelas quebradas, ruas e eventos. Foi de grande importância pro projeto receber de quem faz literatura, com isso vimos que a caminhada estava sendo observada e no caminho certo.

BF: Como o projeto lida com a questão da curadoria dos livros? Há títulos que vocês preferem evitar ou priorizar?

Edson Moura: Os títulos são o quê menos nos preocupamos pois pelo fato de irmos às pessoas, separamos de acordo com a faixa etária e público que iremos ao encontro. Não temos preferência de títulos, porém se tivermos acesso aos de literatura infantil ou juvenil em mãos o projeto impactaria os mais jovens, público importante demais.

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BF: Nos últimos anos, vimos uma expansão do mercado digital e a redução do espaço físico para o livro. De que forma isso impactou o trabalho de vocês nas ruas?

Edson Moura: Não sentimos o impacto, pois nosso trabalho é feito nas ruas e quebradas e com acesso à internet um pouco difícil e restrito nas comunidades, não percebi expansão do mercado digital nas quebradas, muito menos a redução do espaço físico para o livro. O que nos pedem é que montamos espaços de leitura nestes lugares.

BF: O voluntariado no Parceiros na Literatura é, em si, uma prática de educação política. Como vocês percebem a formação dessas redes de leitores e apoiadores?

Edson Moura: O que buscamos e levamos não é só uma ação solidária, pois aprendemos e buscamos a transformação social já que os apoiadores, doadores se tornam sujeitos de cultura e política. Não só distribuímos os livros, formamos pessoas. Portanto é um ato de educação pública porque criamos bibliotecas, espaços de leitura e de troca de conhecimento. Construímos junto com a comunidade sempre naturalmente a partir de nossa ida aos lugares, criando vínculo que nascem do chão das quebradas.

BF: Vocês atuam em territórios muitas vezes ignorados pelas políticas públicas. Que tipo de diálogo ou ausência de diálogo existe entre o projeto e o poder público?

Edson Moura: O diálogo inexiste com o poder público, já que nunca fomos procurados ou os procuramos. Até mesmo em casos de inscrições em editais, fomento ou algo do tipo. Nunca em 12 anos usamos ou recebemos dinheiro de algum fomento ou incentivo à literatura seja do poder público ou qualquer outra instituição política, religiosa ou partidária.

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BF: Em manifestações culturais, um livro circula de modo diferente do que em uma biblioteca ou livraria. Como vocês percebem essa circulação?

Edson Moura: Quando um livro circula em uma manifestação cultural, ele não é só um objeto, ele vira um encontro. Diferente da biblioteca ou da livraria, onde a pessoa vai até o livro, aqui o livro vai até a pessoa. Ele chega no meio do rap, poesia no calor da rua passando de mão em mão, criando afeto, histórias e pertencimento.

BF: O que mudou no perfil dos leitores que recebem os livros nesses 14 anos de atuação?

Edson Moura: Os leitores ficaram mais exigentes, querem ler mais sobre prática antirracismo, resiliência, democracia e temas que os formem em pessoas mais críticas e inquisitoras. Não querem apenas ler por ler.

BF: Pensando no futuro, quais são os maiores desafios para manter a independência e a força de um projeto que se sustenta apenas na solidariedade?

Edson Moura: Os maiores desafios são não perder quem somos e continuar à parte de políticos ou quem nos quer de maneira comercial que possa nos tirar do nosso foco. Manter a atenção e o apoio das pessoas também é um desafio pois a rede de simpatizantes do projeto precisa ser alimentada diariamente. Portanto precisamos estar ativos e mostrar a força da literatura e sua capacidade de transformação coletiva quando viva.


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