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1973: o Hip-Hop nasce num mundo em transformação

1973: o Hip-Hop nasce num mundo em transformação

ESPALHA --->

“O ouro afunda no mar / madeira fica por cima / ostra nasce do lodo / gerando pérolas finas”

O refrão da música “O ouro e a madeira”, do baiano Ederaldo Gentil (1947-2012), vinha de uns dos barracos da favela ao lado da minha casa.  “Na fevela não! Ao lado do lado da favela!”, era assim que minha mãe se posicionava socialmente na quebrada, pois nossa casa, como algumas outras, foi construída com tijolos, não com madeira. Eu tinha 9 anos, não entendia bem qual a diferença, era 1980. Em frente ao nosso portão, uma ponte de madeira sobre um córrego era o portal para a escola, o bar que vendia leite e pão, e acesso para o campinho de terra. Apesar de vermos alguns bolsões de riqueza, na Vila Santa Catarina, tudo ao redor era favela.

A música que eu ouvia de longe na minha infância é o lado B de um compacto lançado em 1973 pela gravadora Chantecler, empresa fundada em 1958, que nos 70 foi comprada pela GE, controladora da Continental, e incorporada pela Warner Music Brasil no início da década de 1990.

O lado A do disco contém a música “Triste samba”. Entre canções estrangeiras e o forró, esse e outros sambas eram parte da trilha sonora de quem vivia com saneamento básico precário, presença repressiva do Estado e poucas informações sobre o que acontecia no outro lado do hemisfério.

Em 1973, de acordo com o censo da época, havia 71.840 pessoas faveladas na capital paulista. O “fenômeno” favela era considerado um conjunto com mais de 9 barracos; em 1980, passou a ser necessário 50 domicílios. Entre 1973 e 1990, a população favelada de São Paulo cresceu 1.363%, passando de 71.840 para 1.051.529 pessoas.

Num cenário com desigualdades semelhantes, em 11 de agosto de 1973, no bairro do Bronx, em Nova York, um DJ jamaicano chamado Clive Campbell, o nosso bem conhecido Kool Herc, tocou na festa de volta às aulas a pedido e organizada pela sua irmã Cindy Campbell (que teve ser valor reconhecido tardiamente), no salão comunitário do prédio 1520 da Sedgwick Avenue. Executando seus experimentos anteriores em alongar trechos instrumentais de músicas, criando os chamados “breakbeats”, Herc deu início, sem saber, a um movimento cultural que mudaria a música, a dança e a expressão urbana: o hip hop.

O nascimento dessa cultura não aconteceu isoladamente. Enquanto líderes políticos discutiam tratados e generais tomavam o poder, nas ruas do Bronx nascia um movimento que, ao contrário da repressão e da censura vistas em países como o Brasil, floresceria justamente da liberdade criativa de jovens negros e latinos. Décadas depois, em meio aos conflitos estéticos e geracionais, o hip hop se tornaria uma das expressões culturais mais influentes do planeta, apesar de todas suas contradições entre o combate ao capitalismo e a adesão ao modo de vida neoliberal.

1973 foi um ano de contrastes extremos: repressão política e efervescência cultural; crises econômicas e inovações artísticas; guerras sangrentas e avanços diplomáticos. O hip hop nasceu em um momento conturbado, o Brasil, que só conheceria melhor a cultura de rua nos anos 1980, vivia o auge da ditadura e do “milagre econômico”, enquanto no exterior se redesenhavam fronteiras políticas, econômicas e culturais. E, no Bronx, jovens deram início a uma revolução sonora que sairia de Nova York para o mundo, inclusive para o Brasil, onde, a partir da década de 1980, passou a ser um fenômeno cultural e político.

BRASIL

No Brasil, o general Emílio Garrastazu Médici governava em pleno “anos de chumbo”, período de repressão política, censura e perseguições. Em março, a morte do estudante da USP Alexandre Vanucchi Leme, sob tortura, escancarou a violência do regime. Pouco depois, a Polícia Federal enviou ordens a mais de 200 jornais proibindo qualquer menção crítica à censura. Artistas como Geraldo Vandré tiveram seus nomes banidos da imprensa, e filmes como Sacco e Vanzetti, de Giuliano Montaldo, foram retirados de cartaz pela censura federal.

“O Brasil de 1973-4 era um lugar ainda mais distante do mundo e cheio de problemas. Para começar, havia uma ditadura militar no comando do país, cuja força das armas legitimava a instituição a prender e desaparecer com quem julgasse elemento perigoso. Você poderia passar uma temporada no pau de arara, se considerado suspeito pela polícia política”, conta Miguel de Almeida no livro Primavera nos Dentes – A História dos Secos e Molhados.

Mesmo sob repressão, a vida cultural resistia. O filme brasileiro Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor, baseado na peça de Nelson Rodrigues, conquistou o Urso de Prata no Festival de Berlim. No esporte, Eder Jofre, aos 37 anos, voltou a brilhar ao conquistar o título mundial dos pesos leves.

O país também vivia transformações econômicas e estruturais. Foi assinado o acordo entre o governo mineiro e a Fiat italiana para a construção de uma fábrica em Betim (MG), investimento de cerca de 250 milhões de dólares, segundo jornais da época. A lei complementar nº 15 instituiu o Colégio Eleitoral para a escolha indireta do presidente. E, no fim do ano, Médici indicou o general Ernesto Geisel como seu sucessor, que governou entre 1974 e 1979. Geisel ficou conhecido como o homem da “abertura lenta, gradual e segura para a democracia”.

MUNDO

No cenário internacional, 1973 foi palco de eventos decisivos. Em janeiro, os Estados Unidos e o Vietnã do Norte assinaram o Acordo de Paz de Paris, encerrando oficialmente a vergonhosa intervenção norte-americana na Guerra do Vietnã. Mas a Guerra Fria continuava moldando alianças e conflitos.

No Oriente Médio, Egito e Síria atacaram Israel durante o feriado judaico do Yom Kippur, desencadeando uma guerra que durou até outubro e levou à intervenção diplomática das grandes potências. A Opep retaliou o apoio ocidental a Israel impondo um embargo de petróleo, provocando uma crise energética global.  Após anos de guerra de libertação, Guiné-Bissau proclama sua independência.

Na América do Sul, a Argentina viveu um ano político turbulento: Héctor Cámpora foi eleito presidente, renunciou meses depois e abriu caminho para a volta de Juan Domingo Perón, que foi eleito ao lado da esposa, Isabel Perón. No Chile, o Congresso declarou ilegal o governo de Salvador Allende, que morreria em setembro durante o golpe militar liderado por Augusto Pinochet. Poucos dias depois, o poeta Pablo Neruda também faleceria, cercado por suspeitas. Em 2023, após a exumação dos restos mortais do poeta, cientistas afirmaram que ele foi envenenado.

Na cultura, Marlon Brando ganhou o Oscar por O Poderoso Chefão, mas recusou-se a receber o prêmio em protesto contra a representação de indígenas no cinema. O mundo também se despediu de gigantes como o pintor Pablo Picasso, o cineasta John Ford, o filósofo Max Horkheimer e o maestro Otto Klemperer.

MORTE E VIDA

Entre as perdas, o Brasil de 73 se despede de nomes como Pixinguinha, Agostinho dos Santos, Cyro Monteiro, Evaldo Braga e Monsueto. Nos EUA, músicos da Incredible Bongo Band dão uma nova cara à uma música de 1960,  “Apache”, dos Shadows. Segundo o livro 1001 Discos, “foram as quebradas de bateria na versão da banda que, reforçadas pelo uso de duas cópias em vinil, efeito criado pelo DJ Kool Herc, anunciaram o nascimento do Hip Hop”.

Ainda em Nova York, Hilly Kristal inaugurou o Country, BlueGrass and Blues, mais conhecido como CBGB, um dos berços do punk rock.

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NOS PRÓXIMOS EPISÓDIOS…

O dia 11 de agosto de 1973 é simbólico, como me ensinou MC Who?!, é o “mito de origem”. Foi nessa data que o DJ Kool Herc, com apenas 19 anos, tocou na festa de volta às aulas a pedido e organizada pela sua irmã Cindy Campbell na Avenida Sedgwick, 1520, no bairro do Bronx, em Nova York.

O termo Hip-Hop ainda não era usado para nomear a união dos elementos, mas todos eles estavam presentes nesse dia. Herc estava comandando os toca-discos e quando possível também comandava o microfone. Reza a lenda que até quem não é de dançar, dançou.

Uma coisa é certa, Cindy Campbell foi fundamental para que essa festa acontecesse.”

Gil, editor do Bocada Forte, em artigo publicado no site.

Jair dos Santos (Cortecertu) passou a fazer parte da Equipe do Bocada Forte em 2001 como colaborador e rapidamente se tornou um dos editores e principal criador de conteúdo. É pesquisador, DJ, compositor, beatmaker e ex-instrutor da Associação Amigos da Molecada da Vila Santa Catarina (bairro da zona sul de São Paulo). Trabalhou na pesquisa de imagem e de texto no DVD "1000 trutas, 1000 tretas", do grupo Racionais MC. Foi colunista do jornal Brasil de Fato e pesquisador iconográfico para a revista Caros Amigos, no livro Hip Hop Brasil. Colaborador da Revista 451. Foi coordenador da digitalização do acervo do Banco de Dados da Folha de Paulo.