Opinião | “Preto é cor, negro é raça”. Será mesmo?, por Gas-PA

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Esse texto foi publicado em 2015 no site Kilombagem
Por Gas-PA (Coletivo de Hip Hop Lutarmada)

“Preto é cor, negro é raça”. Será mesmo?

Essa frase – legítima expressão do senso comum – já estampou até camisas que ainda
podem ser vistas vestindo corpos que estariam combatendo o racismo impregnado na nossa fala cotidiana. Estariam, se não fosse por um importante detalhe: Se “preto” não é raça, “negro” muito menos.

Pra muito além da velha questão de só haver, ou não, uma raça – a humana –, o que
nos interessa agora é somente o emprego da palavra “negro” para designar mulheres ou
homens africanos e seus descendentes na diáspora. Por se tratar de uma palavra da língua
portuguesa, procuremos por seu significado no dicionário mais popular desse idioma no
Brasil, o Aurélio (1985). E lá consta: “Da cor preta, diz-se do indivíduo de raça negra, preto, sujo, encardido, sombrio, lúgubres, funesto, escravo”.

É flagrante a carga pejorativa dessa palavra usada na língua oficial do país para se
referirem a nós africanos e afrodescendentes. Mas não para por aí, porque os últimos serão os primeiros. No caso, a última palavra que aparece é a primeira, é o princípio de tudo.
Quando os portugueses invadiram essa terra que hoje chamamos Brasil, houve a
tentativa de escravizar os nativos. Por questões que não nos cabe abordar nesse momento,
esse empreendimento não vingou e o escravizado nativo foi substituído pelo africano. Mas
para se distinguir um do outro, ao se referir aos escravizados indígenas, os portugueses diziam “negros da terra”, ou seja, negros da própria terra sobre a qual trabalhavam. Os outros negros vinham de fora, de outra terra, vinham de África. Como o próprio dicionário diz, negro é sinônimo de escravo.

O comércio de escravizados prosperou, e o Brasil foi o país que mais recebeu africanos
no mundo. Durante séculos todo africano que aqui chegava, chegava na condição de escravo, logo, todo africano que aqui chegava era negro. Depois que a lei Eusébio de Queiroz proibiu a importação de africanos, a procriação nas senzalas foi uma das saídas para se tentar suprir a demanda de mão de obra negra. É nesse contexto histórico que emerge com força a figura do escravo reprodutor. Era sistema de produção em série.

Dentro desse esquema todo filho de africanos já nascia escravo, logo, era tudo negro. Para acelerar o processo para melhor e mais rápido abastecer o mercado, os próprios senhores auxiliavam na produção. Houve situações em que o homem branco, senhor não só do escravo como também de sua esposa, a obrigava a ter relações sexuais com seu negro reprodutor para que ela também pudesse gerar em seu ventre mais um escravo que, independendo da sua cor, já nascia escravo, já nascia negro (deixemos pra uma outra ocasião o debate sobre o termo “mulato”, que é o resultado do cruzamento de cavalo com mula).

Essa lógica, que no Brasil durante séculos associou africanos e seus descendentes à escravidão, foi responsável por transformar a palavra negro – que significa escravo – em sinônimo de africanos e afrodescendentes. Por isso muitos de nós (um número cada vez maior de) descendentes de escravos e escravizados no Brasil vimos negando o termo negro em favor de preto. Etimologicamente negro vem do latim niger, que vem a significar: “preto, sombrio, tenebroso, tempestuoso, infeliz, de mau agouro, enlutado, fúnebre, triste, melancólico, mau, perverso, malévolo, pérfido”. Agora vejamos o que os dicionários etimológicos dizem de preto: “perto, próximo, ‘negro’”. Curioso é que o sinônimo mais singelo pra negro é preto, e o mais depreciativo pra preto é negro. Assim deve ficar mais fácil de entender o que se quer dizer com a palavra “denegrir”.

O movimento de negritude e as palavras do inimigo

Uma das maiores expressões da ideologia da superioridade de uma raça foi o nazismo. A sua ascensão a partir da Alemanha pra outros países se deu nos anos 30 e durou até 1945 ao ser derrotada pelo exército da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Foi nesse contexto de profunda inferiorização do mundo não branco que nasceu em Paris, por volta de 1934, o Movimento de Negritude.

Uma das formas mais comuns de se agredir verbalmente os pretos que viviam na
França nesse momento histórico era xingá-los de negros. O Movimento de Negritude foi uma forma bem peculiar de se reagir a esses ataques. O que esse movimento tentou fazer foi ressignificar, esvaziar a palavra “negro” de todo o seu caráter pejorativo, para convertê-la num termo positivo, e assim neutralizar o poder ofensivo da arma mais usual do racista: a linguagem.

Francamente não sei até que ponto isso significou algum avanço na luta antirracismo na França ou em suas antigas colônias, mas me parece que só no Brasil os pretos gostam de ser chamados de negros. Tomemos como exemplo os países cujo idioma oficial é a língua mais falada do ocidente, o inglês. É flagrante tanto a autodefinição de “black”, quanto a recusa em ser chamado de “negger” (ou, na sua forma mais popular, “nigga”¹).

O problema para entendermos a questão é que quem traduz os livros, textos, ou as falas dos filmes de língua inglesa que chegam até nós, traduzem “black” como sendo “negro”, o que está erradíssimo, já que pra eles o termo “black” (preto) é justamente uma forma de resistir ao termo “negger” (negro). Assim, ao nos referirmos aos nossos irmãos pretos dos Estados Unidos ou África do Sul, por exemplo, como “negros”, estamos fazendo com eles exatamente o que os racistas de lá fazem.

E no nosso antirracismo vulgar achamos que com isso estamos contribuindo enormemente para combater o racismo no universo. Hoje principalmente nas arenas esportivas vemos o quanto é comum sermos xingados de macaco. Temo que chegue o dia em que surja o Movimento de Macaquismo, para ressignificar a palavra macaco e assumirmos tal identidade exaltando o que o termo tem de bom. Parece exagero, não é? Mas não esqueçamos da campanha “Somos todos macacos”, criada pelo oportunista Luciano Huck no caso de racismo sofrido pelo jogador Daniel Alves. Quem estava minimamente atento entendeu que ele só queria lucrar com a desgraça do racismo vendendo camisas, mas não se pode negar que a campanha teve adesão de muitos pretos espalhados pelo país.

Sabemos que não é monitorando palavras que vamos extinguir o racismo da face da
Terra. “Corrigir” quem diz “esclarecer” ao invés de “escurecer” (ou pior: “enegrecer”) é pífio demais perto das tarefas que temos pela frente até a destruição total dessa sociedade dividida em explorados e exploradores, oprimidos e opressores. Por outro lado é como muito bem disse Florestan Fernandes: “os debates terminológicos não nos interessam por si mesmo. É que o uso das palavras traduz relações de dominação”.

¹ Nigga vem sendo usado em alguns círculos da comunidade preta estadunidense como uma autor referência depreciativa aceitável. Eles se tratam por nigga da mesma forma que entre si se chamam de mudafuka, o que equivaleria ao nosso filho da puta. O que não significa que não haja resistência entre os próprios pretos ao uso desse termo. Um bom exemplo é a música “I don’t wanna be called yo nigga”, do Public Enemy, grupo que está para o RAP como Bob Marley está para o Reggae.

Esse texto foi publicado em 2015 no site Kilombagem

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