Morreu a crítica no Rap nacional?

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Por Arthur Moura*

Circula pelas redes a foto abaixo com a seguinte descrição:

Aiin Racionais traiu o movimento pq Edi Rock foi na Globo……
Quem traiu o movimento foi vc que ouviu o Homem na Estrada, Diário de Um detento, Capítulo 4 versículo 3 e votou num cara racista, xenófobo e que incita a PM a matar pobres e pretos nas periferias do Brasil!!”

Edi Rock, do Racionais, e a apresentadora Fátima Bernardes (Rede Globo). Foto: Reprodução/Google

A burlesca tentativa de isentar figuras famosas do rap de críticas contundentes funciona como mecanismo claro de blindar tais figuras impedindo o próprio pensamento, normatizando tais cenas como algo louvável e até mesmo como uma forma de resistência (o que é um absurdo).

Em outras palavras, é proibido criticar os grandes nomes da cena, pois isto é visto como uma forma de afronta contra tudo o que eles representam quando na verdade a crítica é parte constitutiva do avanço e superação de contradições sociais.

(…) o rapper precisa ser domesticado para que possa ocupar tal lugar de visibilidade. Ele deve ser inofensivo contra a hegemonia estabelecida

O que um programa como o de Fátima Bernardes pode proporcionar à emancipação dos negros, pobres e trabalhadores? Concretamente nada (além da despolitizada visibilidade pura e simples), pois do ponto de vista da emancipação humana a rede Globo de televisão é claramente contrária a todo e qualquer movimento capaz de ensejar revoltas populares contra a ordem burguesa.

Dessa forma o rapper precisa ser domesticado para que possa ocupar tal lugar de visibilidade. Ele deve ser inofensivo contra a hegemonia estabelecida. Ele torna-se um aliado de todo um conjunto de valores que aparentemente em seus discursos diz combater.

Edi Rock durante o programa. Foto: Reprodução/Google

As emissoras de televisão são as principais aliadas da classe dominante e suas classes auxiliares. Basta lembrarmos de 2013 quando de tudo fizeram para desmobilizar as massas que se revoltaram contra a ordem atual das coisas, ou simplesmente observar de que lado estão neste exato momento político do país.

Ouvindo o novo “Poetas no Topo” nos deparamos com as seguintes afirmações: “- Favelado em horário nobre passando na Globo é a maior forma de resistência cultural.” “- Eu tô na Globo e no SBT, conscientizando igual Emicida.”

Incrivelmente este discurso patético tornou-se palatável e aceito como forma de resistência o que denuncia a precária capacidade crítica dos MCs que estão “no topo”. O topo do corporativismo.

Há doze anos comecei um longo trabalho de análise crítica sobre a alienação e o processo de mercantilização e fetichização do rap o que resultou em transformações de caráter amplamente regressivo na cultura Hip Hop como um todo. São dois trabalhos que somam aproximadamente 300 páginas e mais um sem número de artigos publicados na Internet. O primeiro chama-se “Uma Liberdade Chamada Solidão” e o segundo “O Ciclo dos Rebeldes: processos de mercantilização do rap no Rio de Janeiro”. Em paralelo produzi também dois longas-metragens sobre a história do rap no Rio de Janeiro: Poetas de Rua e O Som do Tempo. Foram treze anos filmando a cena o que resultou em dezenas de horas de material bruto.

Estes trabalhos continuam sendo ignorados principalmente pela comunidade Hip Hop por claramente tocar em pontos precisos sobre este processo, pois prezei pela crítica impiedosa ainda assim sempre de forma respeitosa para com meus colegas da cena.

A não ser por um pequeno setor, de uma forma geral a comunidade e os camaradas do rap preferiram não dar vazão a estes trabalhos e muitos deles categorizam tais reflexões como inveja ou frustração como se houvesse um desejo oculto da minha parte em ocupar um determinado lugar (digamos o mainstream) que se revela na forma de “falatório”.

A crítica foi banida, pois apontar as fragilidades da prática e do discurso dos rappers é proibido, já que os referenciais tornaram-se praticamente figuras imaculadas, isentas de contradição o que impede a superação de tais contradições

A crítica há muito tempo já não existe neste meio e os principais responsáveis são os agentes da cultura, como MCs, organizadores, produtores, grupos, enfim que optaram por não romper definitivamente com as amarras do capital alinhando-se com setores dominantes. A crítica foi banida, pois apontar as fragilidades da prática e do discurso dos rappers é proibido, já que os referenciais tornaram-se praticamente figuras imaculadas, isentas de contradição o que impede a superação de tais contradições.

A completa ausência de uma consciência crítica de caráter classista no seio da cultura Hip Hop resulta em mais retrocessos que avanços. A crítica, no seu sentido lato, praticamente não existe e o rap como expressão notória da cultura Hip Hop expressa sua miséria em rimas aparentemente duras contra o sistema, mas que acariciam o monstro num claro desejo de inclusão na sociedade do espetáculo.

Assista ao doc “Poetas de Rua”

Assista ao filme “O Som do Tempo”

*Arthur Moura é cineasta,
graduado em História pela
Universidade Federal Fluminense,
mestre em Educação pela
Universidade Estadual do
Rio de Janeiro.

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