Chuva, zinco e jazz

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Foto ilustrativa. Reprodução/Google

Acordei ouvindo o barulho da chuva. Lembrava jazz. Quando era criança tinha um vizinho, Seu Claudio. Ele só escutava jazz, acho que ele só tinha um disco. Foi impossível não lembrar da infância. Dias assim abrigam em mim momentos distintos de sentir a alegria dos mais novos e lembrar do mundo que a gente vivia.

A chuva escorrendo pela parede, batendo no telhado. O som me fez voltar no tempo, ir lá longe, onde os primeiros minutos da chuva eram os melhores. Minha mãe ainda não tinha entrado em desespero e tudo lembrava poesia. As gotas na janela, o cheiro de terra molhada, o som dos pingos, as telhas de zinco.

Depois de algum tempo os pingos pareciam furar as telhas e como um martelo, batiam no chão. O cheiro de terra molhada durava quase nada, logo lama virava. Dejetos do esgoto misturados com nossos brinquedos desciam lomba abaixo, levados pela enxurrada.

O vento trincou os dois vidros lá de casa. Agora não havia o silêncio da segurança do lar, havia muita gente sem ter onde morar. Minha mãe nos abraçava, escorada no fogão. Fazia isso porque sabia que em algum momento a luz iria faltar e o breu da noite passaria a predominar o lugar.

Nessas horas a mãe rezava, fazia isto muito baixinho, quase um lamento. Acho que ela desconfiava que os Santos não conseguiam ouvi-la. Eu tinha certeza

Meu irmão, menor, tinha medo dos trovões. A mãe dizia pra ele que o trovão fazia barulho também quando não chovia. Nunca ficávamos perto das janelas. As vezes ela gritava com a gente: “- O vidro vai chamar os raios e cêis tudo vão cair durinho no chão”.

Quando a chuva estava se armando, a mãe corria pra pegar uma vela. Sempre tinha uma vela na gaveta junto com os garfos e as facas, mas o fósforo nunca tava lá ou algo que pudesse acender aquele toco de vela. Nessas horas a mãe rezava, fazia isto muito baixinho, quase um lamento. Acho que ela desconfiava que os Santos não conseguiam ouvi-la. Eu tinha certeza.

Foto ilustrativa. Reprodução/Google

Telhado de zinco faz um barulho infernal. Quando a chuva passava e a luz não ia embora a gente ainda demorava uma meia hora pra perceber que a televisão e o rádio estavam muito mais altos que o normal. Quando a mãe desligava tudo, um silencio sepulcral e uma paz interior, tomavam conta de cada centímetro da nossa casa. As vezes a gente escutava o Seu Claudio ouvindo jazz.

Nunca acreditei em rezas. Vi muitos amigos gritando, implorando em nome de Deus e rezando por suas vidas quando a polícia queria prender alguém. Perdi muitos amigos para os trovões. Minha mãe acredita em Deus. Eu acredito nela.

Hoje acordei com o barulho da chuva. Dias assim ocupam em mim momentos distintos.
Às vezes me lembra choro, abandono, medo, solidão, angústia, como uma separação, uma triste separação. Lembrei do dia que fui embora de casa. Não havia mais espaço pra mim. Cheio de energia, vontade, sonhos, desejos e loucuras. A rua seria minha nova casa. Era o que eu queria.

Meu padrasto não curtia a ideia de ter um negrinho como filho. Sempre deixava isto bem claro para seus amigos brancos

Cresci num lar estranho. Depois de um tempo, minha mãe começou a sair com um cara bem mais velho que ela. Meu padrasto não curtia a ideia de ter um negrinho como filho. Sempre deixava isto bem claro para seus amigos brancos, quando perguntado. “- E esse branquinho?”. Minha mãe teve dois filhos, com dois homens diferentes. Meu pai era um negrão, policial, em plena ditadura militar. Trabalhava no DOPS. O pai do meu meio irmão era um cara muito legal. Sempre me levava brinquedos. Um dia a mãe me disse que ele havia morrido. Levei anos pra entender o que significa uma pessoa morrer em vida, ainda mais pra minha mãe. Ela nunca mais deixava de falar daquela pessoa. Meu padrasto também era policial e amava meu irmão.

“- Esse branquinho é meu filho!”
“- E o negrinho?”
“- Esse aí, não.”

Nossa casa era de madeira e zinco. Duas peças intimistas que lembravam mais um quebra cabeças. Pedaços de madeira de várias cores e tamanhos. Era um pequeno cortiço com doze casebres. Todos no mesmo lado. Assim criava um corredor que, ao meu ver, levava ao paraíso.

Na última casa do cortiço morava a Chico, filha do sobrinho do meu padrasto. A mais linda menina do cortiço. Foi minha primeira grande paixão. Às vezes acredito que o mundo passou a existir em algum momento enquanto falava com a Chico, Francisca Martins. Quando a mãe dela falava o nome a gente não conseguia entender porque uma menina tinha um nome de gente velha! A gente chamava ela só de Chico.

Ela era inteligente e engraçada. Tinha sete anos e falava de filosofia. Nunca entendi nada, mas acho que ela gostava de mim

Depois de muitos anos, minhas lembranças de infância eram sempre através do que minha mãe contava aos domingos, quando conseguia visitá-la. A maioria das histórias não fazia sentido, mas eram engraçadas. O humor da minha mãe é muito peculiar. Puxei o humor do meu pai, tenho certeza. Queria acreditar que vivi as coisas que ela me dizia, mas não tinha como. Faltava alguém naquelas histórias… Faltava a Chico.

Passei a perceber o mundo, notar as maldades, sentir o próprio, mas foi com ela que senti aflorar sentimentos em mim. Ela era inteligente e engraçada. Tinha sete anos e falava de filosofia. Nunca entendi nada, mas acho que ela gostava de mim. A gente brincava de tudo, até de boneca. Passávamos os dias sentados na calçada. Ela me falava das coisas que gostava, eu concordava com tudo que ela gostava, e passava a gostar também. Pena que a sorte não ficou do meu lado quando mais precisei dela.

Chovia muito. Era um sábado. A mãe não deixou eu brincar com a Chico. Passei horas na janela pra ver se ela passaria pra ir no armazém comprar alguma coisa pra mãe dela. Naquele dia não quis café, não almocei. Algo ruim estava acontecendo, eu podia sentir. Foi aí que meu padrasto entrou em casa. Lembro como se estivesse acontecendo agora. Tava vendo o Pica Pau com meu irmão…

Ele entrou ofegante, conversou com minha mãe ao pé do ouvido. Meu padrasto era um cara estranho. Dizia que trabalhava pro governo, mas tava sempre se mudando. Minha mãe reclamava pra esposa do Seu Claudio e a gente ficava ouvindo sem entender nada. Então ele disse que as coisas tinham melhorado. Minha mãe concordou com tudo que ele disse. Ele sorriu. Isso animou minha mãe e meu irmão, mas eu não conseguia entender. Ele nos olhou e disse:

“- Vamos embora daqui!”

Eu gritei: “- Não!”

Fui ignorado. Pensei na Chico…

Eles tinham seus motivos pra ir embora. Eu tinha os meus pra ficar.

Nos mudamos naquela madrugada. Chovia muito. Não pude dizer adeus pra Chico…

Hoje choveu. Então fechei os olhos e deixei a chuva me molhar. Os primeiros pingos de chuva sempre foram os melhores… Lavavam meu rosto, escondiam o meu choro e o meu desespero lembrava poesia.

2 COMENTÁRIOS

  1. Já faz um tempo que resolvi deixar de dizer que não tenho tempo para fazer as coisas que gosto. O tempo é definitivamente relativo. Hoje então decidi me dar o prazer de sentar sem pressa, fazer um café e apreciar os textos deste amigo tão especial. Sob o sol quente desta manhã de sábado senti a chuva, ouvi o trovão… belo texto meu amigo.

  2. Que textos maravilhosos, grata por disponibilizar estas ricas jóias conosco.
    Parabéns César forte abraço!

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