Muito mais valioso, na minha opinião, o respeito na vila que mora! Como diz o Thaide: “- Aonde eu chegar, sou sempre bem chegado”. O respeito nas ruas do bairro, o respeito dos que chegaram antes na caminhada. Respeito é realmente importante.
Mas tenho certeza que, assim como Martin Luther King, muitos que estão lendo essa coluna também já tiveram um sonho… O sonho de viver bem, de ter um canto, de poder dar um futuro melhor pra nossa mãe, para nossos filhos.
Logo que iniciei minha caminhada, também tive uma vontade enorme de ser bem sucedido. Queria ter uma vida melhor, queria acordar de manhã e tomar uma café de cinema, com a mesa farta, casa bonita e uma linda vista pro mar, mas tudo que tinha naquele momento era café preto e pão de ontem no barraco de duas peças que a gente morava. Minha realidade era igualzinha a de muitos leitores e justamente por isso vou contar uma história de alienação e delírio pra vocês.
Quando eu era pequeno, minha família morava na região metropolitana da capital. O bairro era novo, não havia saneamento básico, as ruas eram de terra, quando chovia carro não passava. Não tinha ônibus e pra ir pra escola a gente precisava andar oito quilômetros todos os dias. Um bairro esquecido, sem opções. Então a gente arrumava o que fazer: jogava bola, tomava banho de sanga, jogava pedra no telhado dos vizinhos, roubava fruta do pé, jogava taco, pescava e brigava.
Tinha uns amigos do meu primo que gostavam de dançar. Eles tinham um disco dos Jackson Five, “Victory”. Acho que foi o último disco deles juntos. Quase ninguém tinha um toca-discos, meu padrasto conseguiu um que era gigante, um móvel inteiro. Aí os guris iam lá pra casa e a gente ficava ensaiando uns passos. Eles eram mais velhos e já sabiam dançar, acho que eu não era bom, porque minha participação diminuía a cada ensaio.
Um dia minha mãe voltou mais cedo do trabalho e nos pegou ensaiando na sala. Primeiro reclamou que a casa estava suja, depois fez os guris arrumarem a sala. Conversou com a gente, explicou que dançar era coisa de artista, que ela tinha visto uma vez no circo, lá em Palmeiras das Missões, e que artista era muito rico. Os guris ficaram felizes com o que a mãe falou. Senti que o Marquinhos, um deles, tava até emocionado. Eles tomaram uma xícara de café preto e comeram pão com banha e açúcar. Deram tchau e foram embora. Minha mãe ficou pensativa. Olhei pra ela e, sem que eu falasse nada, ela me disse: “- Não vai que não é a tua, Antonio”.
A gente cuspia tanto na esquina que a mãe dizia que a gente parecia pato. Nunca entendi a comparação. Era apenas uma roda de amigos sonhando com um futuro, mas sem saber o dia de amanhã
Anos mais tarde, já com dezessete anos de idade, resolvi sair de casa e ganhar meu espaço. Agora, minha mãe morava em outra cidade da região metropolitana. Fomos morar na Vila Cerne (famosa Vila Guampa). Neste lugar enterrei mais amigos que do que celebrei aniversários. As vezes a gente ficava de “bolinho” na esquina, embaixo de um poste de luz, cuspindo e mentindo sonhos que a gente tinha para o futuro. A gente cuspia tanto na esquina que a mãe dizia que a gente parecia pato. Nunca entendi a comparação. Era apenas uma roda de amigos sonhando com um futuro, mas sem saber o dia de amanhã. A maioria nunca tinha dado uma banda no centro de Porto Alegre. Isso fazia uma puta diferença.
Um dia um amigo apareceu com um skate e ali nossa vida mudou. Agora a gente ouvia Rap, hard core, punk rock e andava de skate. Não demorou pra montar a primeira banda. A gente tocava de Sepultura a Thaide, mas nada acontecia. Eu que dei a porra do nome pra banda: Havoc. Tinha uma fita VHS que rolava nos Correios e a gente ficava vendo. Nosso primeiro show foi num clube de mães. Elas não gostaram nenhum pouco da música “Orgasmatron”, do Sepultura, mas curtiram Thaide.
No nosso primeiro show em Porto Alegre o cartaz era feito com lápis de cor. Um amigo me perguntou no dia do show: “- Foi teu filho que fez?” Eu disse que sim. A banda acabou, mas logo surgiu outra. Musicalmente era muito melhor. Urro. Nomes de banda sempre foram um problema. A Urro foi um presente. Músicas e músicos maravilhosos. Cresci muito como pessoa, mas, pra variar, me empolguei. Passei a acreditar que sim, era possível.
Minha mãe observava tudo a distância. Sempre muito preocupada comigo, rezava para os seus orixás pra que nada de ruim me acontecesse. Um dia, numa festa de batuque, minha mãe perguntou a uma entidade sobre o meu futuro.
A entidade solta uma baforada de charuto e responde: “- Seu fio não vai ser tão ‘farmoso’ quanto ele quer, mas vai te o lugarzinho dele ao sol”.
O tempo passou, a Urro estava no seu auge. Tocávamos na rádio Ipanema e em todos os bares que tinham show: Estação Zero, Garagem Hermética, Opinião… Fora os botecos que abriam e fechavam toda semana.
Quando meu filho do meio fez um aninho, fiz a festa de aniversário e reuni os amigos mais chegados e a família. Minha mãe chegou com meu irmão caçula e depois dos parabéns, ela me chamou no canto da sala. Conversamos um tempo, falamos de amor, de felicidade, de trabalho e lá pelas tantas ela me perguntou com um ar muito desconfiada:
“- Filho, diz uma coisa pra mãe: tu queria ser famoso que nem quem?”
Não pensei duas vezes pra responder: “- Quero ser famoso que nem o Michael Jackson!” Minha mãe suspirou e sorriu aliviada. Ela sabia que a minha vida seria sem massagem.