Saúde mental e a pressão na cena independente do Rap brasileiro
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A discussão sobre saúde mental tem atravessado a sociedade brasileira, e no Rap independente ela assume contornos ainda mais complexos. Mais da metade da população relata níveis elevados de ansiedade e exaustão emocional, e no universo dos artistas que vivem fora das grandes gravadoras e longe de grandes parcerias com marcas famosas, esse quadro se soma à precarização do trabalho e à lógica das plataformas digitais que transformam a visibilidade em sobrevivência.
Os MCs, rappers, produtores e DJs independentes convivem com um tipo de pressão que ultrapassa o fazer artístico. Além da criação musical, precisam administrar redes sociais, lidar com algoritmos e disputar a atenção de um público disperso. O resultado é uma rotina marcada por desgaste, uma enxurrada de ofertas de cursos que não levam a nada, ansiedade e sensação de inadequação diante das exigências do mercado e das métricas digitais.
A exposição constante nas redes é uma das principais causas de sofrimento. Cada música lançada, cada post e cada live passam a ser avaliados não por sua relevância cultural, mas por números de curtidas e compartilhamentos, uma espécie de carimbo de incompetência. Esse processo, além de cansativo, gera a sensação de fracasso para quem busca autenticidade em um ambiente dominado pela lógica do engajamento. Em meio ao caos provocado pelas plataformas, os boletos continuam chegando, o orçamento não fecha e os parentes do artista comparam sua carreira com a dos que estão em apresentações em grandes festivais. Afinal, os contratantes estão de olho no número de seguidores, mesmo sabendo que isso não reflete necessáriamente a realidade.
O rapper Thiago Madruga (Madruga TH) reflete sobre essa realidade com lucidez e crítica. “É desanimador. Não há, aparentemente, outra forma que não seja essa. As plataformas não divulgam, a contabilidade não é transparente e, no final, temos que viver de migalhas digitais, pedindo para que as pessoas escutem nas redes sociais, onde a atenção é dividida entre memes e reels. Eu cuido da minha saúde referente a isso, não tenho nenhuma pretensão de viver com música. Faço porque amo, e é uma forma de expressão que me faz bem. Mas colocar uma subjetividade sua, que sai em forma de música, no mundo é uma exposição muito cruel. Hoje, os números e o engajamento trazem uma sensação de fracasso, de que toda essa exposição é até vergonhosa. Várias vezes quis apagar tudo e já era. Quantos projetos não deixei de lançar pensando em toda essa cadeia? Mas é necessário se informar, saber que tudo isso é parte de um sistema muito maior dentro da lógica neoliberal e dos streamings como uma precarização da música.”
Para ele, o caminho passa por autonomia e colaboração. “É necessário buscar novas alternativas, além das grandes plataformas. Não digo voltar no tempo da mídia, mas criar uma nova plataforma que não trate tudo como negócio. Precisamos soltar as amarras dos artistas mainstream. Eles agem como empresas, e isso é parte da lógica neoliberal, do ultraindividualismo, que monopoliza público, festivais e plataformas. Temos que romper com isso, construir novas formas de nos relacionarmos com a arte, criando nossos próprios eventos e meios de colaboração. Artistas independentes devem fazer novas conexões e apresentar-se a novos públicos. Voltar a nos politizar e nos organizar é essencial. Que as mídias alternativas sejam mais divulgadas e financiadas entre nós, para que possam engajar o público e fortalecer quem faz um trabalho sério.”
A MC Meire D’Origem também aponta os impactos psicológicos e afetivos dessa pressão. “Na minha opinião, a pressão por engajamento afeta todas as áreas da vida da artista, não só a criação musical. No meu caso, mexe com a forma como componho, gravo em estúdio e até com a energia que levo para os shows. Mas vai além: interfere nas relações com a família e no dia a dia, porque ficamos reféns dessa busca constante por visibilidade e validação, tentando fazer com que a nossa música chegue mais longe. Este ciclo gera ansiedade e desgaste mental. Por isso, trago essa pauta constantemente na minha arte, como forma de orientar e empoderar outras pessoas, para que não caiam na cilada dos algoritmos e da lógica mercadológica que nos adoece. A arte é pra ser leve, e não o contrário disso.”
Meire acredita que a mudança depende de consciência coletiva. “Acredito muito no fortalecimento das nossas próprias redes. Isso significa romper padrões e praticar de fato o apoio mútuo. Muitas vezes recebo pedidos para compartilhar trabalhos de colegas, e até de pessoas que não conheço, que na sua grande maioria não interagem com as minhas redes. Não comentam, não compartilham, nem curtem e muitas vezes nem me seguem. Esse tipo de fortalecimento unilateral não constrói nada. É preciso consciência de que engajar o trabalho do outro é também fortalecer o seu, porque isso cria um hábito coletivo de nos impulsionarmos. Só assim o algoritmo vai entender que nosso conteúdo é relevante. Hoje, não basta ser bom artista ou ter boa música, infelizmente os números também pesam. Então, se quisermos romper com essa lógica e sobreviver de forma mais saudável, leve e coletiva, precisamos organizar nossas redes, fortalecer de verdade uns aos outros e criar um ambiente de cuidado. É aquilo: mente sã, corpo são e a gente vivo.”
O artista DMaua compartilha a mesma preocupação, mas enfatiza o impacto direto do uso excessivo das redes. “Acredito que tudo em excesso faz mal. A rede social usada de forma demasiada nos prejudica, ainda mais quando se trabalha com arte e espera um resultado imediato e de alcance maior. Vira um triturador emocional. Eu sinto que o streaming age de forma covarde, um trabalho escravo devido ao que nos dão em troca. Mas o outro lado da moeda é que o público também acessa lá, então o artista tem que colocar em mente que não passa de outra prateleira para demonstrar e vender a arte. Entendendo isso, as coisas se tornam mais claras, e a partir daí buscamos meios para ter um alcance orgânico, mesmo que pequeno, mas real. É nisso que temos que nos atentar, para não enlouquecer.”
Dmaua defende que é preciso buscar equilíbrio e consciência sobre o próprio trabalho. “Não vivemos do play de uma única plataforma. Ainda existem ouvintes no YouTube e em várias outras redes. Tem que se adaptar. E divulgar. Esses grupos são gigantes e só se importam em que trabalhemos para eles, por isso tento não deixar que façam minha mente em relação a números. Quando me pego mal da cabeça, procuro fazer algo, desconecto, sumo, vou respirar. Indico que vocês façam isso também.”
Para ele, o fortalecimento da cena também passa pela retomada de valores do Hip-Hop. “Existem várias cenas dentro do Hip-Hop. Vai muito da gente ensinar o que tem que ser feito, como gostaríamos que fosse. Nós somos o Hip-Hop! Então precisamos voltar a ter proximidade com a arte, viver mais isso. Quem plantou não pode abandonar o plantio e só criticar quem está plantando. Precisamos participar mais, criar nossos próprios ambientes e formas de agir. Isso espalha.”
A saúde mental no Rap independente revela muito sobre o funcionamento de um sistema que transforma a arte em produto e o artista em prestador de serviço para plataformas. É como se os artistas fossem entregadores com uma mochila nas costas carregando as logomarcas das grandes empresas de streaming. O debate sobre saúde mental não se restringe a uma pauta de autocuidado, mas envolve o questionamento das estruturas que adoecem a cena.
Até mesmo nós do Bocada Forte, como comunicadores dentro de uma cena independente, sentimos essa pressão e tentamos lidar com a ditadura dos algoritmos da melhor forma possível. As grandes redes e plataformas estabelecem métricas e padrões, o que acaba por restringir o nosso conteúdo, pois não nos encaixamos nessa lógica, onde é obrigatório fazer um conteúdo padronizado e manter uma presença constante nesses ambientes adoecedores.
Nosso conteúdo é restringido pelas mídias sociais, nem tudo que está em nosso portal vai para as redes por motivos como determinação do número de posts, formatos dos posts, estilos de chamadas, títulos e até pelo uso de certas palavras.
Fortalecer redes, coletivos e espaços de diálogo pode ser o primeiro passo para um ambiente mais humano, justo e sustentável, onde o Hip-Hop continue sendo expressão de liberdade, e não de exaustão.





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