Acervo BF | ‘Somos poucas, mas temos que ser valentes’ – Entrevista com Nega Gizza

Publicado pela primeira vez em 12 de outubro de 2002, última edição em 01.10.2020

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Enquanto o “irmão” declara guerra ela vem na humildade, mas lutando do mesmo lado e na mesma guerra. Essa é a Nega Gizza ou a “Nega do Sinal”, apelido que ganhou quando vendia refrigerante nos sinais de trânsito – “só que Nega do Sinal é foda, né mano?” – explica Gizza que preservou o Nega e acrescentou o 2º apelido, que vem de Gisele.

Ela é “irmã” do rapper MV Bill, irmão de coração, de acordo com ela a irmã que ele escolheu e vice-versa.

Não coloquei a palavra irmã ou irmão entre aspas por duvidar ou não concordar, pois da mesma forma que Gizza é irmã do Mensageiro da Verdade eu faço parte da “família” Bocada-Forte, e não são simples aspas que vão desatar laços tão fortes, não é verdade? Bom, esse não é o assunto principal da entrevista leia e confira a opinião de Gisele Gomes sobre as mulheres no Rap, a expressão “grupo de Rap feminino”“Eu odeio esse nome, se não existe grupo masculino, porque existir grupo feminino?” – questiona Gizza. Ela ainda fala sobre as expectativas para o prêmio Hutus, sua trajetória no Rap e muito mais.

Bocada-Forte: Quando começou sua trajetória no Rap?

Gizza: Não sei direito, às vezes eu acho até que nem começou. Fico pensando o seguinte: Como é o começo e como é o final? Sei lá Gil, sei lá. Eu fazia rádio comunitária quando tinha 15 anos e você sabe que nas comunitárias a gente toca Rap pra caramba, né? Daí eu acredito que foi o inicio. Eu tinha um irmão que era amigo do Bill, era mais que isso, era irmão dele. O nome do meu irmão era Neném, ele era fanático por Rap. Uma vez ele trouxe uma fita cassete do Bill, a música era “Marquinho cabeção”. E eu comecei a tocar numa rádio da Baixada Fluminense, mas o dono da rádio reclamava porque era em fita cassete e eu tocava escondido dele. O Rap é um vício igual aos outros vícios, quando você percebe já está tomado pelo veneno. Eu cantava na igreja e gostava de charme, até que fui apresentada pelo meu irmão ao Bill e comecei a prestar mais atenção naquele cara. Era muito engraçado porque eu ia nos bailes de charme e o Bill estava lá vendendo fita cassete, parecia um maluco. Passei a admirá-lo por isso, pela coragem e pela falta de vergonha. Depois passei a ir visitar meu irmão na comunidade dele, e a nossa amizade passou a ser mais responsa. O Bill se amarrou no meu som e me conseguiu um trabalho na Zâmbia Fonográfica, no escritório do Rio de Janeiro. Quer dizer, eu passei a trabalhar com Rap mais de perto. Passei a respirar Rap mais ainda do que já respirava. Passei a vender Rap no escritório e passei a tocar Rap na rádio e fui me apaixonando. Quando percebi eu já era uma adepta do movimento.

Assista o documentário, ‘Na Humildade – 15 Anos Depois’

Bocada-Forte: Fale sobre o disco. Participações, título, capa, fotos e produção.

Gizza:
O disco foi trabalhoso porque eu nunca tinha entrado num estúdio, eu fazia shows com o Bill, mas não sabia a técnica de cantar num estúdio, eu ficava nervosa e às vezes tinha que parar de cantar. Mas eu tinha a sorte de ser produzida pelos camaradas que tinham muita experiência e me davam tranquilidade para continuar rimando. Eu queria chamar para o disco muitas meninas que curto o som, como a Rose, a Dina, a Refém, o Gueto, Anfetaminas. Mas sabe como é né? não dá pra colocar todo mundo, daí eu chamei a Ieda que é pioneira da parada e a K-milla que é família e que mandam a vera. O Título era “Irmã Gizza, na Humildade” lembra? É que era assim que o Bill me chamava, “Irmã Gizza”, mas eu achei que eu ia parecer freira e preferi que o nome fosse mesmo “Nega Gizza, na Humildade”, que acho um nome bacana e é a minha cara. Na pureza, na humildade mesmo. A capa eu achei foda, foi uma seção de fotos feita pela parceirinha Tatiana Altberg e o acabamento foi pela outra amiga Verônica Dórey. Elas são voluntárias do nosso projeto de favela (Cufa). Eu achei tudo certo. Sem riquezas, na humildade mesmo.

Bocada-Forte: Todas as letras foram feitas por você?

Contra capa do CD, digitalizada do nosso acervo

Gizza: Não. Eu escrevia bastante coisas, mas não sabia organizar nada. O Bill, o K2, O Dudu de Morro agudo, que dirigem aulas de rima na Cufa, me deram vários toques de como fazer rimas, o que era um compasso, essas paradas assim. Daí eu comecei a transformar as coisas que eu escrevia em Rap, em rima. Muitas vezes eu chegava no estúdio e o Luciano e o Zé ficavam putos comigo porque eu não sabia direito o que eu queria fazer. Eles ficavam uma fera, ainda mais quando eu começava a trocar tudo e a letra se transformava em outra música.

Por exemplo: Quando a Ieda chegou no estúdio, ela não sabia como era a levada e a melodia, aí ela se trancou num quarto e escreveu tudo na hora, então eu tive que escrever tudo na hora também, porque as coisas que ela escreveu não tinham muito a ver com o que eu queria fazer inicialmente. Mas ficou responsa também. Aí dividimos a autoria da música. Eu canto duas músicas do Bill, “A verdade que liberta” e “Inconstante”. Essa música eu ficava em casa treinando com ele, quando ele estava escrevendo ela. Daí quando a música caiu do disco dele, porque não tinha mais espaço, eu pedi para colocar no meu. A Música “Prostituta” eu fiz a base de pesquisa, eu li vários livros e muitas frases que tem na letra foram tiradas do que li nos livros e não da minha cabeça. Será que isso é ruim irmão? Já comecei a escrever para o próximo disco e espero amadurecer até lá.

Assista ao vídeo da música “Depressão”

Bocada-Forte: Dum-Dum Records é um selo seu?

Gizza:
Eu recebi e tenho recebido algumas propostas de gravadoras. Quando o Celso Athayde gravou o Bill, eles dois resolveram abrir um selo juntos, e o nome foi o Bill que inventou. No final das contas eles foram para a Zâmbia e deixaram o nome pra lá. Agora eu resolvi não ir pra nenhuma gravadora e montar o meu selo, aí como eu não tinha grana, convidei o Bill para ser meu sócio e ele topou, daí ele pegou o nome de volta com o Celso e abrimos o selo, mas abrimos também uma editora e uma produtora de vídeo que é a Dum Dum Filmes, que foi a produtora que produziu o meu vídeo, e que a Cátia Lund dirigiu com o Libero Saporetti. Coisa de doida…

Bocada-Forte: Na música “Larga o bicho” você canta: “o rap não é perfeito / assumo meu preconceito”. Que preconceito é esse?

Gizza:
É como eu disse irmãozinho, a música foi feita no estúdio e hoje é que estou pensando direito nas coisas que essa música diz. Mas eu tenho preconceito mesmo, tenho vários, saber e reconhecer isso é uma vantagem. Vou te dar um exemplo: existem umas gravadoras tentando inventar uns Funkeiros falidos por aí, aqueles caras que ficavam na televisão pagando comédia e que agora quebraram a cara no Funk. Eles estão agora tentando gravar Rap e meter uma marrinha de “consciente”, é pra ter preconceito ou não? Depois eles vão fazer rock, axé e qualquer coisa que dê a eles uma rapadura irmão. O preconceito está em todos nós, muitas vezes nem sabemos.

Bocada-Forte: Qual o grau de parentesco entre você e o M.V Bill?

Gizza: O Bill é meu irmão, só isso. A diferença é que ele é o o irmão que eu escolhi, e eu sou a irmã que ele escolheu. Quem cantava no disco do Bill era a Camila, mas quem cantava no show era eu, todo mundo achava que eu era ela, era uma grande confusão. Eu dizia que eu não era a Camila e a galera não acreditava, achava que eu tava com marra, era foda. Mas passou, a K-milla está preparando o seu disco, que vai ser foda, eu acredito. Mas é isso, O Bill é irmão de sangue da K-milla e os dois são meus irmãos de coração. Mas isso pra mim nem é assunto irmão. Eu quero ser reconhecida pelo o que faço de bom, ou quero ser criticada pelo que faço de ruim.

Bocada-Forte: Por que Nega Gizza?

Gizza:
Meu nome de batismo é Gisele Gomes, me chamam de Nega desde pequena, Nega é um apelido que ganhei quando vendia refrigerante nos sinais de trânsito, era chamada de “Nega do Sinal”. Só que Nega do sinal é foda né mano? Foda! Coloquei “Gizza” de Gisele e ficou Nega Gizza, tá ruim? Não né!

Bocada-Forte: O que acha dos grupos de Rap feminino, são poucos? Qual você destaca?

Foto do encarte do disco, digitalizada do nosso acervo

Gizza: Eu odeio esse nome, se não existe grupo masculino, porque existir grupo feminino? Eu acho que só é valido numa premiação, por que garante a nossa presença lá. Mas assim que a gente crescer é bom que tirem esse nome. Bem, os grupos femininos existem há muito tempo, mas nunca ganharam força, nunca ganharam expressão. Eu fui outro dia em São Paulo na festa da “Minas” e ví um montão de guria com um puta talento. Mas quem vai investir nelas? É foda irmão. Você vai nas festas, só dá cueca. As mulheres tem que se posicionar e ter coragem de arriscar.

Eu lancei meu selo e sei que posso me foder, mas foda-se, vou fazer. Vejo um monte de guria reclamando da outra com medo de ser ultrapassada na parada. Se o Rap explodir, vai todo mundo ganhar com isso irmão. Somos poucas, mas temos que ser valentes. Eu curto vários grupos, curto Anfetaminas, Gueto, Ieda, Visão, acho a K-milla fodaça, ela tem uma levada doida. Achei que o melhor show do Hutus do ano passado foi das Anfetaminas, e pouca gente disse isso. Será que foi preconceito? Ou passou batidão mesmo.

Bocada-Forte: Por ser “irmã” de um rapper conhecido, você acaba sendo reconhecida como “a irmã do M.V Bil”. Até onde isso prejudica ou ajuda a sua carreira?

Gizza: Eu não sei porque você coloca aspas no irmã. Eu acho que para ser irmão basta você querer ser, basta ser considerado. Se eu achar que meu padrasto é meu pai e ele achar que sou filha dele? Será que temos que registrar em cartório. A respeito do Bill, daqui a pouco vocês nem vão falar mais disso. Só no começo que é assim. Se meu som for ruim, vocês vão me massacrar, se for bom vocês vão me respeitar. Agora é o seguinte: Melhor ser comparada com o Bill que é neurótico no bagulho, do que ser comparado a um comédia. Tenho meu jeito de cantar, de rimar. Tenho minha própria levada. Não nego que tudo que sei, eu aprendi com ele. Mas isso é normal né? A gente aprende com os outros mesmo.

Bocada-Forte: No ano passado você ganhou o prêmio Hutus de melhor demo. Espera ganhar algum prêmio ou ser pelo menos indicada a alguma categoria?

Gizza:
Eu trabalhei no Hutus em 2000. Pude ver que é limpo e honesto. O Hutus é nossa copa do mundo, eu acho. Eu também tenho sonho, em primeiro lugar eu torço para ser lembrada em melhor grupo feminino, revelação e clipe. Mas não depende mais de mim. Tomara que o trabalho tenha agradado. É importante lembrar que está em julgamento os melhores do ano 2001-2002. E não os melhores da história do Rap. Eu acredito que tenho boas chances este ano sim, e torço pelo reconhecimento, é pra isso que se trabalha né!!

Assista ao vídeo da música “Prostituta”

Bocada-Forte: Deixe seus contatos e agradecimentos:

Gizza:
Eu tenho muita gente pra agradecer, mas eu tenho que agradecer em especial ao Dudu Marote que foi um parceiro louco, louco. E as gurias que fizeram história no rap e que estão correndo esses anos todos como a Rose, Ieda, Dina e outras. Se não fosse por malucas como vocês talvez muitas outras, como eu, nem estariam falando nada aqui agora. Respeito todas as aliadas, mas tem muitas outras meninas por aí que não são famosas, mas que estão na luta a muito tempo também, e que merecem o nosso sincero respeito. Um grande Beijo da Nega Gizza na Humildade.

Contato de shows: 0xx(21) 3902.0029 / 3350.9642
Vendas: Hutus 0xx(21) 2450.5125 / Zâmbia 0xx(11) 6236.3071

Errata – Retificação referente a resenha do disco do MV Bill (LEIA AQUI): Escrevi na matéria indicada que as datas do Prêmio Hutus pareceram ter sido mudadas para que o disco do rapper carioca participasse da premiação. De acordo com Celso Athaíde (empresário do Rapper e organizador da premiação), o disco foi lançado dia 22 de agosto. Portanto está dentro do prazo, que continua sendo de 05 de agosto de 2001 à 05 de setembro de 2002. Após entrar em contato com a organização, descobrimos que houve um erro de digitação e alguns jurados receberam o documento com a seguinte data: 05 de agosto de 2001 à 28 de setembro de 2002. Peço aos leitores que entendam e fica valendo a 1º data citada nessa observação, que é a mesma dos anos anteriores.

Ouça o álbum ‘Na Humildade’ – Leia a resenha do disco

 

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