Década de 70: Nos EUA nascia o Hip-Hop, aqui a música popular brasileira crescia em meio à repressão, resistência e reinvenção
ESPALHA --->
A década de 1970 foi um dos períodos mais complexos da música brasileira. Marcada por um contexto de ditadura militar, censura intensa e controle dos meios de comunicação, a cena musical viveu um embate constante entre repressão, cooptação e resistência criativa. Ao mesmo tempo, foi um período fértil, que revelou novos nomes, revalorizou artistas veteranos e consolidou movimentos de produção independente.
O cenário começou a mudar ainda no final dos anos 1960, especialmente após o AI-5, em 1968, quando a censura se tornou mais rígida. O mercado fonográfico brasileiro foi rapidamente reorganizado, com as grandes gravadoras assumindo caráter multinacional e priorizando músicas estrangeiras ou produções nacionais “descomprometidas”, voltadas para o entretenimento sem crítica social.
Hoje, se as obras musicais da maioria dos artistas sofressem alguma espécie de censura ou cancelamento, singles, álbuns e EPs simplesmente seriam retirados das plataformas de streaming. No período de chumbo, LPs e compactos teriam que ser retirados das lojas e grandes comércios do país. Era apenas uma parte do prejuízo que as empresas não estavam dispostas a assumir. Isso reduziu drasticamente os espaços para compositores e intérpretes comprometidos com a realidade do país.
A penetração pesada da música estrangeira coincidiu com o enfraquecimento de uma efervescência criativa que havia marcado a década anterior. Muitos artistas foram presos, exilados ou impedidos de se apresentar. Outros, para driblar a censura, adotaram linguagens herméticas, repletas de metáforas e entrelinhas. Esse ambiente dificultou o acesso de novos compositores ao grande público, criando espaço para artistas fabricados pelas gravadoras e promovidos pela mídia alinhada ao regime. Atualmente, a vida dos artistas independentes continua difícil, com grande parte do que é produzido e que ganha destaque sendo controlado pelos algoritmos das mídias sociais e plataformas.
Apesar disso, de acordo com reportagens da época que registraram debates entre músicos, jornalistas e críticos, a década de 1970 foi responsável pela redescoberta e valorização de nomes históricos da MPB, como Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Nelson Sargento e Carlos Cachaça. Muitos gravaram seus primeiros discos já em idade avançada, documentando obras até então restritas à memória popular.
Paralelamente, surgiu uma nova geração de compositores e intérpretes, como Fátima Guedes, João Bosco, Ivan Lins, Gonzaguinha, Victor Martins e Aldir Blanc, que fizeram da música um espaço de crônica social e política. A década também foi importante para instrumentistas, que consolidaram trabalhos autorais antes considerados de difícil aceitação pelo mercado.
Em meio à invasão da música estrangeira, que teve a barreira da língua como um campo de força, o controle sobre a música brasileira não era apenas ideológico. Do ponto de vista econômico, as gravadoras passaram a concentrar recursos em poucos nomes e estilos, marginalizando grande parte da produção. Muitos artistas foram obrigados a buscar alternativas, criando o embrião da produção independente, montando estúdios próprios, editoras e circuitos alternativos de shows. Ações que, guardando as devidas proporções tecnológicas, de acesso aos equipamentos culturais e de busca por soluções contra o domínio das plataformas, continuam sendo a marca dos artistas independentes em nossos dias.
Outra mudança profunda na música e nas relações que esta arte proporciona foi a cultura dos bailes blacks, considerados por muitos mais uma face da invasão estrangeira. Na revista Quatro Cinco Um, falei sobre essa transformação que colocava novos sujeitos na cena, nos palcos e nas gravadoras ao resenhar o livro Dançando na mira da ditadura, do historiador Lucas Pedretti.
“Numa época em que o regime militar imprimia o mito da democracia racial, o questionamento à comemoração do Dia da Abolição ganhava força com o surgimento do Movimento Negro Unificado e, na quadra das escolas de samba, “o som estava diferente”. A música soul e seus adeptos recebiam críticas tanto de artistas do samba quanto dos ativistas da esquerda. Se o gênero era tratado com desconfiança por uma parcela dos artistas e militantes, para o governo a ideia do Poder Negro significava uma ameaça ao país.”
Os frequentadores dos bailes, DJs e músicos dessa nova cena seriam as referências brasileiras sobre a cultura negra, o movimento black e, nos anos 1980, a gênese do Hip Hop no Brasil. Algumas crianças que ouviam os sons e as conversas dos mais velhos formariam a primeira geração do que chamaram de onda break e do rap. Algo que trataremos nos próximos textos.
Voltando ao contexto de conflitos que envolviam a repressão e a temida perda de espaço da MPB, a criação da SOMBRÁS (Sociedade Musical Brasileira) representou um marco na organização de compositores e na defesa de direitos autorais (hoje sua herdeira é a Amar – Sombrás). Apesar das divergências internas, a entidade mostrou que, quando unidos, os músicos podiam enfrentar estruturas desiguais e conquistar melhorias no sistema de arrecadação.
O ano de 2025, com o fenômeno da inteligência artificial generativa e seu impacto irreversível , aprofunda o debate sobre direitos autorais, que também foi central nos anos 1970. Nos 70, problemas como a manipulação de planilhas de execução em rádios, a má distribuição de recursos e a interferência política nas sociedades arrecadadoras prejudicavam principalmente artistas com pouca exposição na mídia. Falando em exposição, hoje, por exemplo, um artista com menos de mil plays mensais no Spotify é simplesmente uma espécie de ruído nesse sistema.
A década também é marcada pelo surgimento do ECAD (1977) como promessa de centralização e maior controle sobre os direitos autorais, mas o órgão também foi alvo de críticas por supostamente manter práticas que favoreciam poucos.
Nos anos marcados pelas festas que seguiam a estética do que foi considerado Hip Hop nos guetos dos EUA, ao mesmo tempo, no Brasil, a televisão e o rádio, principais meios de divulgação musical, continuavam distantes da diversidade real da MPB. Para grande parte do público, o acesso à música de maior conteúdo crítico dependia de nichos, como rádios culturais e programas especializados, o que reforçava a sensação de que havia duas realidades paralelas: a da música viva nas ruas e a da música empacotada para consumo de massa. Nossa contemporaneidade também carrega essa treta entre a arte que é criada para as mídias sociais e a correria dos artistas nas ruas e núcleos culturais alternativos.
Entre os artistas, surgiram percepções divergentes sobre a década. Alguns viam com otimismo a retomada de espaços e a ampliação de opções musicais no final dos anos 1970; outros permaneciam céticos quanto à “abertura” política, interpretando-a como uma concessão controlada, insuficiente para mudar as estruturas profundas do mercado.
A resistência não foi marcada só como uma postura política, como hoje, também foi uma estratégia de sobrevivência artística. Definir limites para a relação com grandes empresas, evitar a submissão a padrões comerciais e preservar a integridade criativa foram princípios adotados por muitos músicos que atravessaram o período. Sabemos que esta definição de limites ainda é atual e algo muito importante para os artistas mais combativos.
Nos anos 1970, a resistência também implicava ampliar o conceito de cultura popular, garantindo espaço para manifestações como o choro, o samba de raiz e tradições regionais. A defesa da diversidade musical foi vista como parte de uma luta maior pela democratização cultural.
Vários músicas que sintetiizam momentos-chave da década: “Meu caro amigo” (Chico Buarque e Francis Hime) como registro da repressão; “O rancho da goiabada” (João Bosco e Aldir Blanc) como início da reação; “Os nossos filhos” (Ivan Lins e Vitor Martins) como reflexão sobre o legado; e “Explode coração” (Gonzaguinha) como símbolo do momento de abertura e afirmação. Abordarei os lançamentos de importantes discos em futuros textos aqui no BF.
No festival Phono 73, a canção “Cálice”, composta por Chico Buarque e Gilberto Gil para o evento, foi vetada pela ditadura militar, que não queria ver propagada a mensagem de protesto contida na letra. Durante a apresentação do festival, os microfones de Gil e Chico foram cortados pela censura, impedindo a execução da música ao vivo. A tetra que toma as manchetes de 2025 é outra. De acordo com a CNN, “Gilberto Gil, 83, e Chico Buarque, 81, através da Sony Publishing, notificaram a gravadora de Paz Lenchantin, 51, ex-baixista e vocalista da banda americana Pixies, por suposto plágio à melodia de ‘Cálice'”.
Apesar das dificuldades dos anos 1970, artistas veteranos e jovens deixaram como herança a ideia de que nada seria concedido espontaneamente. As conquistas vieram da persistência, da organização e da recusa em ceder princípios. Essa consciência ajudou a formar movimentos para destacar a função social do artista além do entretenimento, envolvendo o compromisso de expressar contradições, denunciar injustiças e refletir a realidade do país.
Ao final da década, embora ainda se vivesse o que alguns chamaram de “pré-história” em termos de respeito aos direitos autorais e condições contratuais, havia sinais claros de que parte dos artistas da música brasileira estava mais preparada para enfrentar os desafios da nova fase que se anunciava.
Para muitos cantores, músicos e compositores, o maior mérito da década foi chegar até 1979 íntegros, ativos e com capacidade de criar e gravar, mesmo após anos de censura, perseguição e marginalização.
Esse legado não se limitou aos discos ou às canções. Ficou também na prática da autogestão, na valorização da memória musical e na convicção de que a cultura popular brasileira só sobrevive quando seus criadores mantêm a autonomia e a dignidade.
Assim, os anos 1970 na MPB foram, simultaneamente, um tempo de sufoco e de reinvenção, de perdas e de conquistas, de silenciamentos e de vozes que não calaram, Suas canções estavam nos palcos ou nos discos de vinil, suporte que, no hemisfério norte, era manipulado em festas por jovens negros e latinos para criar outras experiências sonoras. Ao controlar discos e equipamentos, esta nova geração iniciava outro percurso musical com um objeto que representava o produto final da indústria fonográfica nas mãos do consumidor.
Um pouco atrás, um pouco à frente – Alguns dos nossos que formariam a geração hip hop
Em 1971, o rapper Japão (Viela 17) nasceu na recém fundada Ceilândia, cidade do Distrito Federal construída sob símbolo de desigualdade. O artista continua atuando no rap combatente em meio à disputa por espaço num cenário cada vez mais diversificado. O rap ganhou um novo status, agora figura entre celebridades pop. Antes, a parada era mais quente:
“No início da década de 1970, em nome da defesa do direito à propriedade, um eufemismo foi então criado pelo governo Hélio Prates da Silveira para uma ação que promovia essa política de remoção e exclusão social: Campanha de Erradicação de Invasões (CEI). A sigla acabou por dar nome a um dos principais núcleos periféricos do distrito: a Ceilândia, fundada oficialmente em março de 1974 e situada a cerca de vinte e cinco quilômetros do Plano Piloto. E era em seus arredores, numa modesta casa de três cômodos, que residiam a mãe de Zé Divaldo, Dona Lurdes, além do padrasto dele. Nelsão chegou a Ceilândia no final de 1974”, registra o jornalista e biógrafo Gilberto Yoshinaga no livro Nelson Triunfo – Do Sertão ao Hip-Hop, obra sobre o pioneiro da cultura de rua no Brasil. No mesmo ano, os Jackson Five se apresentaram em Brasília, no Ginásio Nilson Nelson.
Os anos 1970 viveram o auge do movimento dos bailes black, que reuniam no máximo mil pessoas, a maioria alcançava a casa das centenas. De acordo com o geógrafo Mauricio Moysés, também conhecido como MC Rasul88:
“Em 1973, surge a equipe de sonorização para agitar os pequenos bailes do DF, a Black Music composta por Jorge, Mario e Dejaci que juntaram suas economias para realizarem o sonho de tocar música, porém a equipe operava de forma “amadora”, com fins apenas para animar as pessoas. Os bailes ocorriam em Taguatinga nos clubes Social, Paradão e no Centro de Ensino Médio, na Asa Norte do Plano Piloto no Setor de Clubes Norte e a divulgação era feita no boca a boca”, afirma Moysés no livro Véi, Aqui o papo é Reto ..





Interaja conosco, deixe seu comentário, crítica ou opinião