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Em “Contos Reunidos”, Fábio Mandingo abriga sobreviventes num cotidiano complexo

Em “Contos Reunidos”, Fábio Mandingo abriga sobreviventes num cotidiano complexo

ESPALHA --->

A Bahia que você vê no cartão-postal não é a Bahia que Mandingo escreve. Ele não vende pôr do sol, nem mar azul. Ele mostra o sangue escorrendo na viela, o tambor ressoando na madrugada, o grito atravessado na boca de quem corre da polícia. É Salvador em ácido, Salvador em rancor.

Assim você pensa que começo meu texto, mas a parada acima foi criada pelo ChatGPT, um playboy branco que pensa que é Gil Scott-Heron criando frases como “prostitutas que dançam no fio da navalha”.

No Bocada Forte, somos adeptos do conceito slow journalism, o jornalismo mais lento, cadenciado, de escuta, análise e leitura. As dificuldades estruturais que enfrentamos praticamente  nos jogam ara esse tipo de jornalismo. Recuperamos do nosso jeito o tempo e espaço que nos tomam.

E é nessa toada que seguimos nos comunicando onde muitos ainda não notam o abutre que passa voando acima de suas cabeças. 

Durante um mês, nas manhãs de terças e quintas, após deixar minha mãe na clínica de hemodiálise, caminho até a avenida 23 de Maio e, após uns dez minutos, entro no busão Jardim Miriam rumo ao meu bairro. 

Coletivo no contrafluxo é vazio, escolho um lugar pra sentar e vou lendo “Contos Reunidos” (Ciclo Contínuo), livro que reúne todos os contos já publicados de Fábio Mandingo e também apresenta textos inéditos.

Não há como não pensar no contraste entre as cenas das páginas da obra de Mandingo e o que vejo da janela do ônibus, que passa pelo Parque Ibirapuera, enquanto um de seus personagens passa um conhecido perrengue sociorracial no final da linha de São Marcos, em Salvador.

Para os moradores de Moema, as viaturas não carregam o aspecto de carro fúnebre descrito por Fábio Mandingo, cada veículo é símbolo de segurança apenas. Dá pra imaginar essa parada?
Nascido em Santo Amaro da Purificação e criado em Salvador, o maluco é historiador, mestre em Educação, professor, capoeirista e ogã de Xangô. Conheci o mano no núcleo cultural da Ocupação São João, no centro de São Paulo, no lançamento de seu livro “Muito como um rei” (Ciclo Contínuo)

Contos-Reunidos-Fabio-Mandingo-ciclo-continuo-editorial-09-01-2025_05_31_PM-199x300 Em “Contos Reunidos”, Fábio Mandingo abriga sobreviventes num cotidiano complexo

Os estereótipos da “baianidade” que a gente repete aqui ao falar de uma Salvador distante do cartão-postal nem chegam perto da narrativa está fincada na rua, vielas precarizadas, nos becos da Liberdade, nas praças onde artesãos podem ser pais, pequenos traficantes e sábios conselheiros.

Agora, os subúrbios baianos carregam alguma semelhança com o que a janela me apresenta, os bairros nobres vão ficando para trás e o ônibus segue na avenida Cupecê, que corta e liga diferentes quebradas.

Entre cenas divergentes, alegrias e música tocada a milhão, Mandingo inscreve esses territórios na literatura, denuncia a violência policial, o racismo cotidiano e a marginalização social. Mas os territórios não são apenas cenários, são sujeitos que moldam as vivências dentro e fora dos seus domínios. 

“Contos Reunidos” dialoga diretamente com o rap e o hip hop. Os personagens de seus contos são humanos comuns das quebradas, atravessados pela precariedade e pela inventividade. Jovens em situação de rua, usuários de crack, trabalhadores informais, prostitutas, mestres de capoeira e estrangeiros que circulam pelo centro histórico. Ninguém é moldado para caber no compasso da mesmice ou saciar a sede intelectual sudestina.  As páginas de “Contos Reunidos” abrigam e aprisionam sujeitos complexos, cheios de contradições. Ai daquele que entrar pelo caminho errado.

O que falta mesmo é o povo do hip hop se ligar na escrita do mano que está desde 2011 em suas correrias literárias que também têm o rap como fonte. Fábio Mandingo conhece o rap brasileiro. O rap brasileiro conhece Mandingo?

A leitura é interrompida quando chego ao meu destino. Livro fechado. A ventania no corredor de ônibus que bagunça meu black não atinge o mundo de Fábio Mandingo. Pra quem vive o hip hop, o mano é aquele irmão mais velho que a gente espera chegar do trampo pra contar tudo que conseguimos fazer no nosso dia. O cara ouve e, às vezes, apresenta alguma coisa que encontrou no caminho e colocou na mochila.

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As sessões da mnha mãe continuam…

Jair dos Santos (Cortecertu) passou a fazer parte da Equipe do Bocada Forte em 2001 como colaborador e rapidamente se tornou um dos editores e principal criador de conteúdo. É pesquisador, DJ, compositor, beatmaker e ex-instrutor da Associação Amigos da Molecada da Vila Santa Catarina (bairro da zona sul de São Paulo). Trabalhou na pesquisa de imagem e de texto no DVD "1000 trutas, 1000 tretas", do grupo Racionais MC. Foi colunista do jornal Brasil de Fato e pesquisador iconográfico para a revista Caros Amigos, no livro Hip Hop Brasil. Colaborador da Revista 451. Foi coordenador da digitalização do acervo do Banco de Dados da Folha de Paulo.