Ca.Gê.Be: “A gente é resistência. Não dá pra ficar esperando o governo”

Fotos por Gerson Castro | Arte por Bocada Forte

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Capa do álbum

“Professor, faz uma rima aí “, é dessa maneira que muitos alunos da escola Escola Estadual Professora Elza Saraiva Monteiro, no Jardim Peri, abordam Cezar Sotaque e Shirley Casa Verde, MCs do grupo Cagebê.

“Muitos nem conhecem nosso grupo, mas eles sabem que a gente canta”, diz Cezar. Segundo Shirley, algumas pessoas sabem eles são do rap por causa de suas participações e desenvolvimentos de projetos sociais e culturais no Jardim Peri, bairro da zona norte de São Paulo.

A vivência das ruas e o hip hop foram levados para o ambiente escolar e fazem parte da troca de saberes que o Cagebê registra em seu mais recente trabalho, o disco “Pretérito”, terceiro álbum do grupo. “Eu tenho orgulho de falar que sou MC. Eu chego e falo mesmo, qual o problema”, Shirley comenta sobre sua atuação como educadora e artista na rede pública de ensino.

“A gente acabou indo pra esse universo da educação por causa do rap. Não foi o contrário. O rap nos levou pra outros lugares, isso a gente fala numa música lá do CD “Vilarejo” [segundo disco do Cagebê, lançado em 2011. “Lado Beco”, primeiro álbum do grupo, foi lançado em 2006]. A gente acabou fazendo um curso superior acreditando que era possível estar dentro da escola e, de alguma maneira, ouvir estes jovens. Nossa experiência com o rap, com a rua foi mostrada para os alunos e a gente levou isso para nossas composições”, conclui Cezar.

Assista ao vídeo da música “Sargento”

O resultado pode ser ouvido nas 14 faixas de “Pretérito”. O disco conta com produções de Mortão VMG, DJTG, Semgrana e Cezar Sotaque. Luís Café e o estúdio RecLivre são responsáveis pela masterização. Rafael Mendes assina a arte da capa. O grupo ainda conta com o DJ Paulinho.

“Hoje a gente está vivendo este mundo dentro das escolas. A gente ouve os jovens, a gente fala. É uma troca de aprendizado. É claro que a gente traz também tudo isso pra música. São falas de professores e de alunos, não tem como isso não influenciar nas letras e na composição. ‘Nota zero e meio’ é uma música que fala muito disso, das inquietações dos alunos nas quebradas”, diz Cezar.

Cezar, MC formado em história, e Shirley, rapper formada em artes, trocaram uma ideia com o BF para falar sobre o novo álbum do Cagebê e, como não poderia deixar de ser, também falaram de política e educação. “A gente foi buscar o diploma. A vivência a gente já tinha”, arremata Shirley.

Shirley Casa Verde, Cézar Sotaque e DJ Paulinho

O DISCO

Para nós, alguns valores não podem ser perdidos. Como professor de história, para entender como o mundo se desenvolveu, eu preciso voltar no tempo. A ideia do CD “Pretérito” é trazer elementos que hoje, talvez, algumas pessoas possam ter esquecido, por não ter esse hábito de resgatar a história. O nosso novo disco flutua nessa linha, da composição das músicas aos arranjos, diz o MC e professor de história.

Na parte estética, nosso disco tem boom bap e muitos samples. É algo que a gente se identifica. Eu acho que o rap perdeu muito dessa coisa do sampler e do “bumbo+caixa” hoje em dia, argumenta o rapper.

CONTEÚDO

“Pretérito” tem a preocupação social em suas letras. Nossos discos anteriores também são assim, mas algumas coisas a gente só enxerga com o amadurecimento, isso é natural. Não tivemos a preocupação com a temática, pois isso já vem de nós, é espontâneo, tanto nos assuntos quanto na estética do trabalho. Shirley e eu escrevemos sobre as coisas que nos afetaram.

Assista Shirley Casa Verde cantando a música “Roda gigante”

CONTRA O TEMPO

Nosso disco é equilibrado pela essência. Não sei se as pessoas vão curtir, se vão gostar. Também não sei se este disco vai chegar em algum lugar, pois hoje existe uma outra lógica de mercado. Na questão da distribuição…Enfim, existem outras questões que não são as mesmas de dez ou quinze anos atrás, comenta Cezar.

O rapper continua: A gente não se preocupa com o que está rolando no momento da cena. O artista precisa de liberdade. O artista é a liberdade. A gente não tem que compor pensando no que está ‘pegando’.

É seguir totalmente na contramão do que a moda dita, do que o mercado produz. Isso tem um preço também. Muitas vezes esse preço é o anonimato. A gente não está preocupado com isso, fazemos a nossa arte.

Shirley reafirma o compromisso do Cagebê: Somos da geração anos 90, os elementos que trazemos nas nossas composições são da rua.

DJ Paulinho, Cézar Sotaque e Shirley Casa Verde

SHIRLEY E O FEMINISMO

Eu sempre trouxe as letras pro universo da mulher, mas esse disco está mais carregado. Muitas coisas mudaram, muitas coisas foram conquistadas pelas mulheres. Nossa luta é antiga, e falta muita coisa pra mudar ainda.

Na periferia, tem uma grande parte das minas que não buscam mudanças. Estão no contra. É complicado mudar essa parada. Discutir entre nós lá no vão do Masp é fácil, quero ver discutir onde a mulherada precisa, nas quebradas. Falta muita coisa ainda na quebrada.

RAP CONTRA A VIOLÊNCIA

Sempre foi assim. Hoje as redes mostram essa violência. Aconteceu…está na web. Hoje as mídias estão sendo obrigadas a mostrar. As mídias querem repercussão, eles passam esses vídeos porque são obrigadas, afirma Shirley.

Cezar fala do papel do rap em meio ao cotidiano de violências nas quebradas.

A morada da violência é sim o gueto. Ninguém fala nada. Como que nós do rap e do hip hop vamos ficar passivos diante uma coisa dessas. O rap é livre expressão, você tem que falar, denunciar, dizer o que pensa. Explorar os canais pra poder dizer o que estamos sentindo.

Parece que existe hoje uma orientação: Olha, chega de falar disso.

Você pode falar o que quiser. O que você não pode é deixar de falar. O nosso governo federal tem um discurso que parece que autoriza essas coisas, como se fosse legitimado: agora pode.

Não sei até onde o Cagebê vai, mas eu acho que o rap com essa textura, com essa estética e conteúdo precisa continuar existindo. E novos grupos precisam surgir a partir disso.

Assista ao vídeo da música “Nota zero e meio”

EDUCAÇÃO, DIREITA, E COLÉGIOS MILITARES

A educação é muito complexa. ela não se resume em criar colégio militar [Governo Federal prevê 216 escolas militares até 2023]. O problema é estrutural. Não existe investimento na educação. O que existe são migalhas que o governo federal e os repasses estadual e municipal já nos provam que o que fazem é muito pouco

O professor ganha muito mal. Os recursos na escola são escassos. Os governos de Lula e Dilma foram voltados para o social. Sou exemplo disso, foram as políticas públicas voltadas para a educação no nível universitário que favoreceram um monte de jovem na periferia”

Mas acho que foi um erro não terem investido na base. Não só os governos de Lula e Dilma. São governos e governos que passaram e não investiram na escola pública. Hoje, continuam não investindo, diz Cezar.

Shirley lembra que os anos 80 ainda tinham o cheiro militar: É isso, jurar bandeira etc. Tudo era muito rígido também. Como reação, muitos jovens saiam da escola. O que pode acontecer hoje é isso: muitos vão ficar fora da escola. Vão sair.

Outra coisa: hoje é quantidade e não qualidade. A escola está cheia. É um professor para 45 alunos.

Cezar complementa: Os professores estão afetados, estão doentes. Pais e mães, que não conseguem acompanhar seus filhos na vida escolar por causa de sua jornada de trabalho, também foram formados por essa escola deficiente.

É preciso contextualizar tudo isso. Esta é a grande diferença entre a esquerda e a direita: a esquerda contextualiza, a direita apenas julga.

Shirley finaliza: A gente é resistência. Não dá pra ficar esperando o governo.

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Ouça o álbum “Pretérito” na íntegra

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