O protesto do La Invaxión (Parte 2)

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Renan Inquérito (à esquerda, ao fundo) conversa com seus companheiros cubanos.

Do interior de Cuba, grupo dribla falta de internet e aparatos eletrônicos com boa música

Por Jéssica BalbinoEspecial de Havana, Cuba.

O boca a boca e a arma mais poderosa de difusão
Usar a internet em cuba, para estrangeiros, é algo que custa em média R$ 30 a hora. A conexão lembra a época em que o 3G ainda não existia e tudo se fazia pelo telefone, a famosa “conexão discada” e acessar sites simples como Google ou Facebook é uma batalha a quem está acostumado com a instaneidade.

Agora imagine baixar um arquivo em MP3, carregar um vídeo no youbute ou acessar perfis no soundcloud. Pois é. Quase impossível. Difundir a música feita em Cuba pela internet é utopia e só acontece com o auxílio de quem vive fora da ilha sob o comando de Raul Castro.

Nos táxis e bicitáxis é comum ouvir os raps Cubanos, especialmente no interior, fora de Havana. Por lá, qualquer dispositivo de som entoa versos do famoso grupo “Los Aldeanos”, que já tem 15 CDs gravados e uma trajetória de mais de uma década e também do La Invaxión, nas ‘calles’ onde o grupo vive e é reconhecido. Nos celulares – vindos quase todos do exterior – as músicas também são compartilhadas.

Aliás, reconhecimento é a palavra que marca o cotidiano dos integrantes do grupo. Por onde passam, são tratados como familiares. Em cada casa, venda, bar ou estabelecimento comercial, recebem abraços, sorrisos e apertos de mãos dos que dividem o dia a dia. O boca a boca é arma mais poderosa para a difusão do rap cubano.

“Não existem rádios em Cuba pra tocar nosso som. Ele é tocado nas rádios dos carros, das bicicletas, das casas”, comenta Cepero.

Vivendo no Uruguai, Mala Bizta é o responsável pela edição dos videoclipes, pelos perfis nas redes sociais e por fazer o som do La Invaxión chegar a outros países da América Latina, como o Brasil, além de disponibilizar o trabalho no youtube. Antes dele, o grupo só era conhecido em território cubano e graças aos festivais de hip-hop, que acontecem com bastante frequência, especialmente nas cidades do interior.

Foi, inclusive, em um festival que Black Soul teve o primeiro contato com a música. Isso em show das cantoras “Las Krudas Cubensi”, que atualmente vivem nos Estados Unidos, mas que antes disso, cantaram sua oposição ao patriarcado dentro da ilha. “Eu conheci o hip-hop nos festivais. Desde então ouço rap e procuro saber mais. Mas, aqui também pegam algumas rádios norte-americanas, onde é possível ouvir o que está rolando lá fora”, diz Black Soul.

Videoclipe, Havana e sonhos transformados em imagens
A permanência do grupo em Havana deu-se para a gravação do videoclipe “Uma só voz”, com o brasileiro Inquérito, durante a visita em Cuba. Parte de um projeto que envolve o hip hop latino americano (que posteriormente será reportado no Bocada Forte), o Inquérito passou ‘7 dias em Havana’, em uma imersão com o hip hop caribenho.

Na casa do diretor do videoclipe, Mandefro – filho de mãe cubana e pai etíope – em um dos bairros mais nobres da capital, o Miramar, próximo a embaixada da Venezuela e a Avenida das Américas, os amigos dividiram o quarto, a comida e bons momentos em volta do laptop, ouvindo raps Cubanos, música brasileira – com um carinho especial pelo samba e pela bossa nova – as risadas do cachorro chamado “Mundo” e a comida carinhosamente feita pela tia de Mandefro, Bárbara Pagán, mais conhecida como Babi.

Eu sou formado em psicologia, mas trabalhar em Cuba é um desafio. Com os vídeos, encontrei uma forma de fazer algo que gosto, transformar sonhos em imagens e sustentar minha filha”, relatou Mandefro, que não esconde as origens africanas, seja pelas expressões, seja por lembrar delas o tempo todo, ou pelos adornos na casa.

Madrugada adentro, com uma janta tipicamente cubana preparada para os rappers e os amigos brasileiros, Mandefro, Babi, Cepero e Black Soul comentam sobre a vida em Cuba e o regime é, novamente, tema da conversa.

Houve um tempo, quando Cuba rompeu com a União Soviética, em que não havia comida. Mas não como hoje, quando a comida é pouca ou cara. Não havia o que comer em Cuba. As pessoas cozinhavam azulejos para fazer sopa. Era terrível”, disse Babi, antes de mostrar a caderneta em que os cubanos pegam as comidas ‘distribuídas’ pelo Governo das tendas e supermercados. Em seguida, foi completada por Mandrefro.

O regime impõe tudo, inclusive o quanto vamos comer. As pessoas não se rebelam por falta de consciência. Quando há eleições para delegados – o equivalente a prefeitos no Brasil – eu não voto, mesmo sendo obrigatório”, rebelou-se Mandefro.

Para todos, o regime precisa de mudanças. E com urgência. A arte, para eles, é o caminho mais curto.

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Ensino superior, salário e rap
Com computadores a preços de carros e carros a preços de imóveis, se comparados com o Brasil, produzir um beat para o grupo é um desafio além do imaginável para Black Soul, que, por não conhecer outro método, encara como natural ter os timbres em um pendrive e carrega-lo para onde vai, para, ao encontrar um computador, poder fazer as bases do próprio grupo.

Formados em estudos sócios-culturais, tanto ele como Cepero trabalham em projetos governamentais e diretamente com arte-educação, no entanto, sobreviver dá mais que “trabalho”. Black Soul investe na criação de porcos, ou cerdos, como se diz em Havana, e no quintal da casa onde vive com uma tia, primos e familiares, possui onze.

A rotina é dividida entre dar aulas de arte para crianças com deficiência, cuidar dos porcos e fazer música. Autodidata, aprendeu sozinho como produzir os beats, como pintar quadros e como falar inglês, que ele acrescenta ao espanhol para se comunicar com estrangeiros e para pesquisar mais sobre hip hop, ainda que em um país onde a internet é escassa e o acesso praticamente inexistente. “Eu? Autodidata? Que nada. Só curioso pra aprender”, comenta Black Soul. E a curiosidade talvez seja parte do talento. Afinal, produzir beats sem computador, ter um grupo famoso sem internet e cantar as mazelas de um país comunista não é algo que qualquer cubano faça.

A diáspora africana é latente e encontrou no espanhol, rimas fáceis e ágeis. Assim, o rap cubano dialoga diretamente com o restante da América Latina – exceto com o Brasil, onde se fala o português – e com os conflitos de cor e raça. Além disso, o engenhoso jogo de palavras na língua hispânica encontra abrigo facilmente na mistura das batidas rápidas com o ritmo caribenho.

Já Cepero atua em dois trabalhos, o que lhe garante o equivalente a R$ 120 por mês e o acesso esporádico à internet. Na parede da sala, a família exibe orgulhosa certificados de formação e prêmios com o grupo La Invaxión dividem espaço com uma “venda” da família, onde são comercializados desde os famosos lanches cubanos de presento e queijo, refrescos até preservativos e comprimidos analgésicos.

Neste mesmo local, ele divide o cotidiano com os familiares e as músicas concorrem com a voz da dupla brasileira Zezé Di Camargo e Luciano, com suas versões sertanejas em espanhol, famosas por serem temas de novelas exibidas também em Cuba. As garrafas de run cubano também são presentes no cotidiano dos rappers. Tomar um trago, como eles dizem, é algo recorrente, desde o período da manhã até a noite. Contudo, o rap fala mais alto. Todo sacrifício fica pequeno quando fazer música é o objetivo.

Agência Cubana de Rap
Extraoficialmente, dá-se conta de que existam centenas de grupos de rap em Cuba, contudo, poucos são ‘oficializados’ pela Agência Cubana de Rap – órgão institucionalizado, ligado ao governo pelo Instituto Cubano de Música – já que são considerados críticos demais ou antirrevolucionários. Em outras palavras, o rap é aceito em Cuba desde que seja ‘controlado’ pelo Governo.

Por isso, grupos como o La Invaxión não são parte. “Não somos filiados. A agência tem um papel importante de diálogo, mas ela é pouco artística e muito política”, destacam.

Porém, quem vive em Cuba encontra nas rimas cadenciadas do Caribe a possível esperança de um país que mistura-se entre o novo e o velho, entre poucos prédios restaurados e construções desmoronando, entre a falta de perspectiva e os olhos vivos de quem enxerga, na arte, o caminho até mesmo para a frustração de um país sucateado por uma ditadura.

Mas uma coisa é clara: seja no Brasil ou em Cuba, o hip hop é uma linguagem única e universal, mas, é preciso conhece-la. Da nossa parte, foram apenas 4 dias com os rappers Cubanos, que valeram por anos de estudo: o rap vale como passaporte e invisibiliza fronteiras.

[+] Leia a primeira parte da reportagem especial feita pela jornalista Jéssica Balbino

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