“Não adianta dizer ‘Deus acima de tudo’ e colocar o povo abaixo da linha de miséria” (Júlio Lancellotti)
Diante de uma pandemia sem precedentes na história recente e um (des)governo desastroso, que só fez aumentarem o desemprego e a inflação, o resultado não poderia ser outro. O Brasil voltou a figurar no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) e o noticiário recente tem mostrado o desespero de famílias que mal conseguem se alimentar com carcaça de frango, sopa de osso, fragmentos de arroz ou até restos garimpados no lixo.
Esse aumento do número de miseráveis e a inoperância das autoridades políticas ante tal cenário desolador têm motivado artistas, ativistas e outras lideranças a intensificar as ações sociais a fim de tentar amenizar os efeitos dessa crise. Empatia e solidariedade, aliás, são valores que sempre nortearam as ações de muitos agentes da cultura hip-hop.
Nesta segunda parte da reportagem especial “Corres da pandemia”, dividida em três partes, o Bocada Forte apresenta algumas dessas ações sociais emergenciais. Esta série, iniciada com o rapper Japão (Viela 17), prossegue hoje com o grupo paulista Realidade Cruel.
Realidade Cruel: discurso e ação em prol da periferia
Às vésperas de completar 30 anos de trajetória, o Realidade Cruel já é um nome consolidado entre os grandes grupos da história do rap brasileiro, com oito álbuns lançados e um segundo DVD a caminho. Muito além do discurso, porém, a trupe também é conhecida por promover ações sociais diversas, sobretudo na forma de campanhas solidárias em prol da periferia – missão que se intensificou com a pandemia da Covid-19.
As ações beneficentes já faziam parte da agenda do Realidade Cruel, todos os anos, com campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos e agasalhos para famílias em situação de vulnerabilidade, além da distribuição de sopas para moradores de rua. Com o isolamento social e a consequente paralisação da classe artística, o grupo também aderiu à realização de lives, assim como outros artistas, como alternativa para levar os shows ao público – e, de quebra, prosseguir com suas ações sociais.
O grupo, atualmente formado por Thiago Mascote, Tuca Léllis, Markão II (também integrante do DMN) e DJ Bola 8, está na estrada desde 1992 e acaba de colocar nas ruas seu oitavo álbum, “A História Continua” – lançado oficialmente em show realizado no dia 11 de dezembro, em Mauá (SP), cuja gravação também será convertida no segundo DVD de sua carreira.
O projeto Gangsta Paradise, capitaneado pela Bola 8 Produções (fundada em 2010 pelo DJ Bola 8), se tornou uma das principais festas itinerantes do rap brasileiro. A música “Dia de visita”, clássico do rap brasileiro, também fez parte da trilha sonora da minissérie “Carcereiros”, exibida em janeiro deste ano pela Rede Globo. E, entre outros destaques da carreira, “Produto descartável”, música que aborda o descaso aos idosos, teve trechos utilizados na série “40 m²”, veiculada há cerca de um ano no Globo Play.
Com a pandemia, o Realidade Cruel tem feito proveito dessa popularidade presencial e virtual (535 mil seguidores no Facebook e 95 mil no Instagram) para intensificar a rede de solidariedade. Nesse período, a versão do Gangsta Paradise no formato de lives contou com participações de nomes como Facção Central, Detentos do Rap, Ordem Própria, Vira Lata Gang e DJ Pantera, entre outros, para arrecadar alimentos e cestas básicas. Além disso, todos os grupos participantes também doaram seus shows pela causa.
O Bocada Forte conversou com os integrantes do grupo para saber mais sobre essa sintonia entre discurso e ação. Como forma de não denotar individualidades e representar a força do coletivo, as respostas seguem atribuídas ao grupo como um todo.
Bocada Forte (BF): Quando e como vocês passaram a realizar essas ações sociais?
Realidade Cruel (RC): Realidade Cruel sempre fortaleceu as missões focadas em causas sociais, e esse é um legado que carregamos com muita responsabilidade e respeito. Porém, a pandemia despertou uma atenção maior devido ao aumento do número de famílias que estão passando por necessidades. Entendemos que essa é a verdadeira missão do rap: identificar as necessidades e usar os recursos que temos, visando ajudar o nosso próximo.
BF: Que dificuldades que vocês têm encontrado para a manutenção desses projetos?
RC: Estamos vivendo um momento muito delicado. Além dos conflitos no meio político, a pandemia agravou ainda mais a crise econômica. Com isso, aumentou o número de pessoas necessitadas e reduziu a quantidade de doadores, porque a situação está complicada pra todos. Toda a classe artística ficou paralisada e, sem poder trabalhar, fica complicado manter os projetos. Visto que a própria comunidade se fortalece, esse problema seria facilmente resolvido se tivesse cooperação e investimento do governo, de organizações intergovernamentais e não-governamentais, associações, sociedade civil e setor privado.
BF: Vocês contam com apoio ou patrocínio para essas ações?
RC: É muito raro, mas, dependendo da estrutura do evento, os próprios empreendedores periféricos fortalecem a ação. Por aí a gente vê que é ‘’noiz por noiz’’, a própria quebrada fortalecendo os nossos. Na maioria das vezes, tiramos dinheiro do próprio bolso e fazemos as campanhas de doações.
BF: Em quais ações o Realidade Cruel esteve envolvido e como foram realizadas?
RC: Anualmente doamos uma cota dos nossos shows justamente para fortalecer os eventos solidários dentro das comunidades. Nos últimos meses, o Realidade Cruel fortaleceu a Batalha do Bolinha, que fica localizada dentro da ocupação na Favela da Titan (ABC). Em outubro, fortalecemos uma festa do Dia das Crianças e tivemos mais um evento solidário organizado pelo Projeto Raça Neguita, Batalha da VR. São trabalhos em parceria com produtores culturais e organizadores de eventos das comunidades, pessoas extremamente importantes que buscam melhoria para suas quebradas.
BF: O que vocês gostariam de dizer para as pessoas que estão enfrentando diversas dificuldades nesse momento?
RC: Busquem ajuda! Seja você um cidadão necessitado ou um organizador de eventos. Acreditamos fortemente na necessidade de fomentar a cooperação entre nós mesmos. Vemos os esforços das próprias comunidades tentando se ajudar, então busquem apoio onde puderem. A solidariedade é semelhante a um laço, que une as pessoas como uma só.
BF: Acreditam que seja papel do rap levar às pessoas mais que informações e críticas sociais? Do discurso à ação, qual a importância dessas articulações no hip-hop?
RC: Com certeza. É importante evitar que os interesses próprios ofusquem a verdadeira missão do hip-hop, que são as causas sociais. A música é o nosso ganha -pão, sim, mas não podemos visar só o dinheiro. Se a favela chora, então a gente precisa sentir o que a favela precisa e caminhar junto com ela. E cada um tem um recurso em mãos, o seu talento pode ser usado pra fortalecer alguém. Essa matéria realizada pelo Bocada Forte por exemplo, vai atingir diversas pessoas e reforçar o quão engajados precisamos estar. A solidariedade não tem preconceitos de raça, sexo, origem, idade, nacionalidade, religião, ideias políticas ou qualquer outra distinção social. Ele atravessa todas as fronteiras para ajudar os necessitados. Seus únicos propósitos são o ser humano e sua dignidade.
Acompanhe o trabalho artístico e as ações sociais do Realidade Cruel
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