DJ Comum: duas décadas de beats, toca-discos e resistência no hip hop brasileiro
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Foto por: @eufeliperomao
DJ Comum construiu uma trajetória que atravessa a dança, a rima, os toca-discos e os equipamentos de gravação. Nascido e criado na zona norte de São Paulo, ele testemunhou de perto o poder da música em movimentar corpos e consciências, e transformou essa vivência em prática artística e pedagógica dentro do hip hop.
Mais de vinte anos depois, segue conciliando as funções de DJ, produtor e educador, sempre com a música preta no centro de sua atuação. Entre samplers, vinis e drum machines, dedica-se a ensinar beatmaking para novas gerações, transmitindo não apenas técnicas, mas também a compreensão de que a cultura é uma ferramenta de fortalecimento e resistência coletiva.
Nesta entrevista ao Bocada Forte, DJ Comum fala sobre sua caminhada, os dilemas de se firmar como produtor independente, a importância do DJ como guardião da pista e do som, as mudanças trazidas pelos algoritmos e os caminhos que ainda deseja trilhar. Confira:
BF – Você começou no hip hop como b.boy em 1998. Como essa experiência inicial na dança influenciou sua visão do movimento como um todo?
DJ Comum – Eu fui pego pela dança, mas acho que em primeiro lugar fui pego pela música. Nas rodas de break eu reparava que certas músicas tinham o poder de deixar a dança mais quente. Eu mesmo só entrava quando tocava o som que mais me agradava. A dança me move até hoje, mesmo não sendo um exímio dançarino. Tento sempre buscar a contundência de um ritmo que faça as pessoas dançar, entregar o corpo ao som e sentir prazer nisso. Foi assim que eu fui pego: entendendo onde o produtor quis chegar e qual emoção trouxe.
BF – Na transição de MC para produtor, o que pesou mais para você abandonar a escrita e mergulhar nos beats?
DJ Comum – Sempre fui mais ouvinte do que leitor, então sentia o peso da caneta. Quando o Detentos do Rap lançou que não era só rimar “caneta com bombeta”, percebi a responsabilidade de evoluir e naturalmente fui deixando de escrever. Os beats e o universo dos DJs me fascinavam. Eu queria entender aquele monte de cabos, pick-ups, mixers. Aquilo era e continua sendo magia. Quem tem o dom dos toca-discos deve ser sempre respeitado. É o instrumento do nosso quilombo: as MPCs, as drum machines e os toca-discos.
BF – O uso do FL Studio foi sua porta de entrada na produção. Como foi essa passagem do digital para o trabalho com máquinas, vinil e samplers?
DJ Comum – O FL Studio era um paraíso pela liberdade de criar, mas eu sempre questionava a qualidade do meu som. Sentia que faltava cor e calor. Com dinheiro de férias do CLT, comprei minha primeira MPC, a 1000, e nunca mais voltei ao FL. Hoje meu kit é formado por MPC2000XL, SP555, EMU e64, Tascam Ministudio, Fireface 800 e um Mac de 2011. Produzir numa drum machine é diferente. Recomendo máquinas que falam a nossa linguagem: SP1200, ASR10, MPC60, MPC3000, MPC2000XL, SP404 (OG e MK2), SP555, entre outras. Minha preferida é a 2000XL.
BF – Você é um dos poucos no Brasil que ensina beatmaking em MPCs, Maschines e SPs. O que significa para você transmitir esse conhecimento?
DJ Comum – Fui me dando conta aos poucos da importância. Já dei instruções para Criolo, Will Bone, Dudinha, Diego Many, Ads Induz, Paulo Dionisio e muitos outros. Ser útil a eles é ser útil a mim mesmo e à cultura. Minha missão é defender o que me trouxe até aqui. Enquanto eu viver, estarei à disposição de quem me procurar.
BF – Ao ensinar beatmaking, você nota diferenças na forma como as novas gerações entendem o processo de criar batidas em comparação com a sua época?
DJ Comum – Hoje a informação chega de muitas fontes. O desafio é saber qual referência seguir. No meu início era tudo na base da tentativa e erro. Hoje tem tutorial para tudo. Na época poucos eram receptivos a ensinar. Um grande responsável por eu mergulhar nesse universo foi o DJ Zinco. Eu existo porque primeiro existe DJ Zinco.
BF – Quais foram os maiores desafios que você enfrentou para se consolidar como produtor independente no rap brasileiro?
DJ Comum – Agradeço a pergunta porque já me consagra, mas sinto que ainda tenho muito a construir. Trabalho pacientemente há mais de 20 anos para entender essa linguagem musical que o hip hop exige. O maior desafio sempre foi equilibrar música, família, saúde e sobrevivência. Aos poucos fui ganhando credibilidade e reconhecimento. Hoje não é mais só por mim: muitas máquinas e muitos produtores nasceram através do que ensino.
BF – Você também cresceu como DJ paralelamente à produção. Como equilibra essas duas práticas?
DJ Comum – Eu quis ser DJ quando vi o KL Jay tocando. Busco sempre aprimorar as técnicas. Além dos toca-discos, toco asalato, que ajuda na coordenação. Mas a produção me ocupa mais tempo. Em épocas de shows, me dedico mais ao DJ set. Toco com Serato e TimeCode, e gosto de Hip Hop, R&B, neo soul e sons que trazem sentimento.
BF – No seu DJ set, a black music ocupa papel central. O que te move a manter essa curadoria em tempos de playlists dominadas por algoritmos?
DJ Comum – A música preta é meu amor incondicional. Manter as raízes e buscar novidades que dialogam com elas é minha missão. Evito pesquisar em streaming, prefiro ser sequestrado pelo rádio, pelas festas, pela indicação de amigos. Prefiro o filtro humano ao palpite de robô.
BF – Você já trabalhou com MCs como Kivitz e Keshada. O que busca em uma parceria musical?
DJ Comum – Respeito. Que o MC respeite minha musicalidade e entregue o máximo, assim como eu faço. Quando existe missão, intenção e propósito, a parceria vale a pena. Música tem que mudar vidas.
BF – Qual é a principal diferença entre o papel do DJ/produtor nos anos 2000 e hoje?
DJ Comum – A importância é a mesma, talvez até maior. O DJ tem experiência prática de saber o que balança a massa. Se a maioria dos DJs produzisse, a cena seria outra.
BF – O hip hop no Brasil ainda sofre com a falta de valorização de seus elementos fundadores. Como você enxerga o espaço do DJ e do beatmaker hoje?
DJ Comum – Quem não valoriza geralmente é quem está de fora. Mais investimentos em eventos públicos poderiam fomentar novos talentos e reativar quem parou. Mas, mesmo sem isso, seguimos porque amamos. Cada vez mais sinto a cultura forte e contundente.
BF – Olhando para sua trajetória de mais de duas décadas, quais caminhos ainda deseja explorar dentro da música e do hip hop?
DJ Comum – Quero continuar servindo e sendo servido pela cultura. No meu novo álbum com o Kivitz, vou realizar alguns sonhos de parcerias. Sonho em gravar com Racionais, Djonga, Marechal, BK, Criolo, Rashid, Emicida, Sintese, Sombra, Dow Raiz, Flora Matos, entre muitos outros. Dos gringos, Snoop Dogg e Medaphoar. Se eu realizar 10% já estarei feliz.
Perdi muito tempo com CLT, relacionamentos e álcool. Hoje estou inteiro para realizar. Preciso seguir evoluindo musicalmente para concretizar essas parcerias. Conta comigo, hip hop.
BF – Como você aprendeu a consertar equipamentos e samplers e quais as que você sabe consertar?
DJ Comum – Com a compra da minha primeira MPC1000, da mão do Dj Max Nos Beats(Guarulhos), o mesmo que eu gentilmente ajudei de alguma forma a pegar o FRUITY LOOPS. Não lembro como, daí a vida faz um loop! E a minha primeira MPC vem da mão dele… enfim, ela veio muito boa!!! Mas precisava consertar alguns botões. Eu ja tinha uma noção de solda, meu trabalho da época (CLT) me ajudou a ter uma noção de como soldar. Isso foi o estopim para eu ir atrás de um curso técnico influenciado forte por um amigo, Denis Carvalho. Ele me estimulou muito a fazer um vestibulinho. E eu, sem fé que iria passar, passei com uma certa folga! Isso me encorajou a estudar, mas eu trabalhava muito, ia pra aula cansado. Hoje em dia, uso o pouco que sei para reparos leves, o mais profundo dos reparos é revitalizar as telas da Mpc2000/2000xl/1000 e 2500.
BF – Quem quiser falar com o DJ Comum, pode fazer contato por onde?
DJ Comum – Eu uso o Instagram! É a porta de entrada, dai eu passo o meu Whatsapp e e-mail. Mas vou deixar o e-mail que, além de e-mail, é meu pix! Ser artista independente do boombap no nosso país é mais difícil de se destacar pela profundidade que precisamos ter, pra competir pela sintonia com outros gêneros muito fortes dentro e fora da nossa cultura.






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