Você não precisa ser um super-herói

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#Rap #Carreira | Cada vez mais nós nos interessamos (e nos inspiramos) em histórias de heróis e heroínas. Sejam super-heróis ou até mesmo pessoas que consideramos heroicas, nós temos um fetiche por esse tipo de narrativa. A pergunta que quero tentar responder é: heróis são boas referências para as nossas vidas? Aliás, são boas referências para nossos corres no rap e no Hip Hop?

Os heróis e porque gostamos tanto deles

Nós consumimos heróis. Isso não é só uma brisa filosófico (que vai começar algumas linhas abaixo) – nós literalmente gastamos dinheiro e/ou movimentamos dinheiro através do consumo de marcas de super-heróis. Basta saber que a Disney comprou a Marvel por US$4 bilhões e que, todos os filmes da Marvel juntos já renderam US$ 15 bilhões (US$630 milhões apenas com Vingadores: Guerra Infinita parte 1). Se pararmos para pensar em produtos licenciados pela marca (camisetas, bonecos de ação, quadrinhos, brinquedos, etc) e os produtos desenvolvidos em parceria (como as séries dos Defensores em parceria com a Netflix )e que, além da Marvel, existem diversas marcas que produzem conteúdos geek/nerd (englobando também os games), a cifra desse mercado parece infinita. Mas resumindo: nós consumimos heróis – e consumimos muito!

Pensando criticamente, tanto a Marvel (criadora dos Vingadores, do Quarteto Fantástico e dos X-Men) quanto a DC (criadora de títulos consagrados como a Liga da Justiça, Constantine, Jovens Titãs) são criações da década de 1930 nos EUA. Exatamente no momento entre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda (1939-1945), os EUA viviam um período de grande depressão nacional causada pela crise de 1929. Como forma de enfrentar a crise o então presidente americano Roosevelt criou um novo plano econômico de caráter conservador. Na cultura, o reflexo da crise veio através de produções com temáticas tristes e estéticas introspectivas, como o fortalecimento do Blues.

E é exatamente aqui que aconteceu a grande sacada da Marvel e da DC! Após quase uma década de desemprego, crise econômica e às vésperas de uma nova Guerra e de uma série de mortes, a narrativa do herói funcionava. Porque, se a depressão tem como uma das causas a falta de expectativa no futuro e muitas vezes em si mesmo, ver alguém que passa por uma série de dificuldades e as supera com esforço pessoal é uma narrativa inspiradora. Assim, as que são hoje duas das maiores empresas de quadrinhos do mundo, logo perceberam o potencial mercadológico das narrativas de heróis que ultrapassaram o mundo dos quadrinhos e viraram valiosas franquias de filmes e até mesmo apps.

Título lançado pela Marvel nos anos 1940

Mas afinal o que é a narrativa do herói? Pensando nessa pergunta o antropólogo Joseph Campbell apresentou em 1949 o conceito de monomito. Lançado no livro “O Herói de Mil Faces”, Campbell analisa narrativas de heróis – das clássicas às religosas, passando pelas contemporâneas de sua época. Assim, o autor apresente um modelo narrativo de 12 etapas que está presente em todas elas.

De início o herói é alguém como nós, presente em nosso mundo, com tarefas cotidianas. Porém, um desafio ou uma aventura é apresentada ao herói. O herói se recusa ou demora a aceitar o desafio – muitas vezes por medo. Então um mentor ou uma ajuda sobrenatural aparece no enredo preparando o herói para a aventura. O herói assim abandona o mundo comum e entra em um mundo especial ou mágico. Enfrentando uma série de testes, ele encontra aliados, enfrenta inimigos e entende as “regras” do mundo especial ou mágico. E o herói passa a ter sucesso em sua aventura. Porém, surge a maior crise de sua aventura, uma situação difícil ou traumática, de vida ou morte. O herói toma forças, enfrenta a crise e ganha uma recompensa especial. Vencido o desafio, o herói deve retornar para casa. Nesse regresso, encontra uma nova crise onde usa tudo que aprendeu e obtém sucesso mais uma vez. Ao final da narrativa, o herói volta para casa com a recompensa e a usa para ajudar as pessoas ao seu redor.

Essa é basicamente a narrativa de Batman, Super Homem, Thor, Pantera Negra e, porque não, Jesus, Osíries, Buda, Prometeu, Ogum e diversas divindades. Alías, cá entre nós, porque não incluir também nessa lista: 2 Pac, Mano Brown, Emicida e uma série de MC’s que inspiram nossos corres? Porque não incluir também referências políticas como Nelson Mandela, Malcom X, Marthin Luther King, Che Guevara, Marighella? (Obs: essas aproximações dizem respeito à estrutura da narrativa, não à importância ou não de cada uma). Ainda que os detalhes e especificidades de cada uma dessas referências mude, a estruturação da história – principalmente os processos pelos quais os heróis passam – são análogos em diversos pontos.

Mas porque nós gostamos tanto de histórias de heróis se elas são tão previsíveis e, em certa medida, repetitivas? Identificação e “modelagem”.

Identificação nada mais é do que a capacidade de nos vermos refletidos em algo. Para o psicólogo Carl Gustav Jung nós nos vemos nos heróis porque todos nós, seres humanos, temos uma tendência natural a desenvolver uma representação mental (arquétipo) dele. Para Jung, o herói que existe na mente de todos nós é aquele personagem que supera desafios, enfrenta obstáculos e, mesmo que pense em desistir, acaba lutando até o final para alcançar seus objetivos. Por isso muitas vezes associamos a heroísmo histórias de superação ou de alguém em sofrimento.

E com “modelagem”, quero dizer sobre narrativas que servem de modelo para nós. Se em certas situações não sabemos como agir, passamos a refletir sobre histórias que nos inspiram e, em certa medida, tentamos copiar.

Capas do “Rap em Quadrinhos” criada por Wagner Loud e Gil Santos

Tudo isso é muito interessante, mas o que tem a ver?

Tem a ver com o fato de, cada vez mais presentes, tomarmos como referência. Em momento algum isso é algo ruim! Contanto que alguns cuidados sejam tomados, de forma crítica no processo, eu gostaria de discutir especificamente dois deles: os sacrifícios e os erros.

O primeiro cuidado diz respeito aos sacrifícios. Se o herói sempre alcança o prêmio, ele o conquista através de sacrifícios. Seja esse prêmio conhecimento, expressão, justiça social ou até mesmo dinheiro e uma carreira artística, nada disso acontece do dia para a noite. São diversas histórias onde o herói precisa abrir mão de coisas importantes para conseguir alcançar seu prêmio.

Em Pantera Negra (filme), T’Challa precisa abrir mão da segurança de Wakanda para permitir a distribuição de tecnologias para as pessoas em vulnerabilidade em todo o mundo – abrindo as portas de seu reino para o mundo, abre também as possibilidades de conflitos e invasões (o que se concretiza em Vingadores: Guerra Infinita parte 1). Em Deadpool 2 (filme), Wade Wilson precisa passar por uma experiência de quase morte para ter aquilo que, apesar de negar, sempre desejou – uma família. E, para manter no universo cinematográfico da Marvel, em Homem-Aranha 3 (filme) o Peter Parker abre mão de uma série de coisas – inclusive da relação com a mulher que tanto amava, Mary Jane – para conseguir salvar a si mesmo e sua cidade. Os exemplos continuam, mas eu também gostaria de destacar principalmente as segundas temporadas de Luke Cage, Jessica Jones e Punho de Ferro onde os prêmios, mas também os sacrifícios, são explícitos.

A grande reflexão que proponho aqui é: até que ponto é necessário se sacrificar tanto assim para alcançar aquilo que se deseja? É óbvio que (quase) nada cai do céu e que é preciso se movimentar no sentido de fazer seu corre acontecer. Seja um corre pessoal, religioso, social ou profissional – inclusive no rap e no hip hop.

Acontece que ao mesmo tempo em que as narrativas de heróis criam para nós um modelo a ser seguido, esse modelo por mais atrativo que seja não é o único modelo válido. Nós não precisamos ser heróis ou heroínas, pelo menos não o tempo todo. É possível investir em opções mais adaptadas a nós, ao nosso cotidiano e, principalmente, que respeitem nossa saúde física e psicológica. Não é necessário se colocar a prova e se sacrificar a todo o momento. Ainda que não seja possível zerar o sacrifício (afinal de contas, onde estaria a graça nisso?), é possível tomar ações mais refletidas, críticas e conscientes onde a gente consiga tirar o melhor custo-benefício de nossas ações.

O segundo cuidado diz respeito aos erros. Em muitas situações, principalmente quando nossa vida está na merda, não é apenas questão de glamour – nós precisamos fazer o corre virar para sobreviver financeiramente no mês. Ainda assim, precisamos ser tolerantes com erros. Não apenas com erros dos outros, mas os nossos próprios. Todo processo de aprendizagem e de domínio de um conhecimento ou habilidade tem um pouco de “tentativa e erro”, ou seja: nós erramos bastante e a cada erro, passamos a ter mais conhecimento para acertar.

Em nossa cultura, bastante influenciada pelo modelo self mademan americano, parece que só temos uma chance de fazer tudo dar certo, uma oportunidade apenas de conseguirmos aquilo que sempre queríamos. Se por um lado, nós realmente precisamos estar abertos para arriscarmos em novas oportunidades, por outro nem tudo é tão a ferro e fogo assim. Se você não acredita em mim, acredite no Michael Jordan que, em uma reflexão famosa, disse:

Errei mais de 9000 cestas e perdi quase 300 jogos. Em 26 diferentes finais de partida fui encarregado de jogar a bola que venceria o jogo… e falhei. Eu tenho uma história repleta de fracassos em minha vida. E é exatamente por isso que sou um sucesso”.

Arte criada pela Marvel onde Homem-Aranha e DeadPool aparecem como na capa de “Paind In Full” de Eric B e Hakin

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