Opinião: O Rap e a Mídia | Por Arthur Moura

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POR ARTHUR MOURA*

Os meios de comunicação de massa produzem intensas disputas por trazer todo um espectro de poder útil nesse caso às premissas do capital e do Estado e de suas políticas de controle. São por isso investidos de toda uma construção política que por não conseguirem separar-se da realidade material dá a esse um caráter fetichista e obtuso relacionando-se com a realidade de forma utilitária e tecnicista. As TVs e os jornais promovem sem qualquer pudor a construção sistemática da negatividade da cultura negra e a afirma como válida somente quando esta assume sua condição máxima de mercadoria. Isso faz com que se construa a imagem do negro dócil, agradecido por partilhar de determinadas redes de poder. Em última instância esta comunicação serve à sociedade do espetáculo onde seu reflexo finaliza-se em sua própria imagem.

Entendemos por comunicação fator primário que proporcionará a possibilidade de gerar mudanças concretas na sociedade. A comunicação é o que no dia a dia estabelece relações, gerando conflitos e possíveis resoluções. Tomar para si a importância de desenvolver sua materialidade assim como manter em diálogo o desenvolvimento constante de suas bases teóricas nos ajuda a não cairmos em equívocos por buscar antever através de acúmulos, estratégias e debates que nos sejam úteis no processo revolucionário. Aquele que pratica a comunicação, inclusive o capitalista, e não encontra no seu próprio bojo apoio nem conexão de trocas, estará facilmente entregue a um processo de criação monótono ou ao rápido desaparecimento.

A Internet é a mídia por excelência dos independentes. Na rede, os artistas se criam, forjam-se não totalmente alienados do processo televisivo pois vêem neste seu último estágio. Entendem o poder da televisão e a buscam consequentemente. A televisão é uma espécie de pódio guardado na maioria das vezes para aqueles que tiveram maior aceitação por parte do público e naturalmente um maior investimento da indústria cultural. Esse processo é resultado das boas estatísticas e alcance virtual, mas também dos shows que o grupo ou MC realiza, em suma, do seu poder de venda e influência. Por isso é tão importante as estratégias de venda desenvolvidas ao longo do tempo pelos principais nomes da cena que consequentemente se espraiou para os demais segmentos forçando-os a se relacionar ou compactuar com este processo. Forjam-se carreiras e métodos de construção identitária que também faz parte do processo de mercantilização.

Tudo isso, importante colocar, afirma o caráter político do rap e da cultura Hip Hop mas mistifica o tensionamento da sociedade agora como um dos objetivos da cultura. Mesmo fragmentada a classe trabalhadora é força capaz de mobilizar, estreitar relações entre os jovens e muitos adultos que cresceram ouvindo e praticando o rap ou qualquer outro elemento da cultura. Afinal o rap abre espaço para a construção de representações sobre a sociedade brasileira, articulando as narrativas das dores, das visões de mundo, da violência e do racismo presentes na história contemporânea. Ele é uma importante via para adentrarmos no terreno dos conflitos, das tensões e do poder que opera desigualmente na vida social, conduzindo-nos a repensar os processos sócio-históricos no Brasil atual (que, não raro, é visto com pessimismo pelos rappers) e as contradições que o cercam, mesmo quando a difusão do rap está associada, em alguma medida, à indústria cultural (particularmente a do entretenimento) e, por isso, seja tachado de alienante.

Max B.O. Foto: Aoran Draganofi.

Penso que este rap mais que ser tachado de alienante se faz alienar através de um processo de relações e desejos, mas sobretudo por uma proposta mais leve que não prioriza necessariamente o enfrentamento ou qualquer outro tipo de indisposição com os segmentos hegemônicos pois a busca por inclusão aos moldes do capital leva a muitas concessões. Que rap é este então que foi aceito pelas mídias? Ou o que possibilitou essa fusão com a ideologia burguesa? Isso foi possível por uma demanda de ambos segmentos em aparecer e reproduzir cada vez mais na televisão e representar a cultura a partir de um viés reapropriado por valores burgueses. Como afirma Max B.O. em O Rap e a Mídia, de Juliana Caroline e Pamella de Souza:

“Eu acho que a partir do momento que tem gente que pode representar o Hip Hop e contar a sua realidade independente de qual seja o veículo de comunicação da mídia, o canal de TV ou a emissora, acho que o crescimento dos artistas de rap da arte do Hip Hop também possibilitou isso. Então acho que é normal, é um sinal de que o rap simplesmente seguiu a evolução de todas as outras coisas.”

Legitimar essa relação é papel sobretudo dos grupos e MCs, produtores, enfim. Estes não acreditam que polemizar seja bom para a cultura pois o que é mais importante é a presença dos rappers nas mídias televisivas. O que se faz valer é o escamoteamento das tensões. Por que então aceitar participar, por exemplo, de programas como Fátima Bernardes ou qualquer outro programa-espetáculo como o BBB? O que um grupo de rap faria num programa como este além de responder perguntas vazias? Como bem coloca Pierre Bourdieu em Sobre a Televisão, “tenho a impressão de que, ao aceitar participar sem se preocupar em saber se se poderá dizer alguma coisa, revela-se muito claramente que não se está ali para dizer alguma coisa, mas por razões bem outras, sobretudo para se fazer ver e ser visto.” Tem que ir pra mídia, aparecer, diz um personagem no filme também anteriormente citado. “Quanto mais gente ouvir seu trampo é melhor.”

Rapper Sombra. Foto: Facebook do artista.

Para a maioria da cena a ideia de protesto é algo que já se desgastou transformando-se numa espécie de reclamação de caráter negativo. “O discurso de protesto tem que existir sim, mas tem que falar de coisa boa também sabe. O povo da favela já tá cansado de ouvir as mesmas coisas, afirma um dos personagens do filme O Rap pelo Rap de Pedro Fávero. Esse discurso é a porta de entrada para legitimar toda forma de mercado e a consequente inserção do rap nesse âmbito despolitizando debates cruciais, como por exemplo a questão da mídia. Sobre isso diz Sombra:

“Falta a gente industrializar essa coisa de vender a música, de vender o nosso visual ‘streetware’. Aquela coisa de fazer o fim lucrativo gerar em torno de nós mesmos que cultuamos essa cultura Hip Hop. E pra isso acontecer a gente tem que estar a cada dia que passa em todos os meios midiáticos possíveis. Seja ele jornal impresso, revista, a mídia da rede social, eu digo a internet, tecnologia avançada, a mídia televisiva, a mídia radiofônica e o corpo a corpo com as pessoas mais do que nunca faz com que isso venha a se expandir.”

A indústria aparece aí como elemento que pode até mesmo salvar vidas e não o contrário como geralmente é a regra mostrando muitas vezes uma ingenuidade com relação às reais intenções do projeto industrial cultural. A televisão não mais é uma corporação que deva ser destruída, mas sim apropriada e ocupada, incorporada por estes que agora a reivindicam, seja para participar de um programa de auditório, uma pegadinha, propaganda, ou programa de entrevista e reportagem.

O principal caráter da mídia corporativa é que suas transmissões se colocam com a pretensa posição de neutralidade excluindo a possibilidade do confronto. A ausência do confronto transforma os porta-vozes das notícias em portadores de uma opinião blindada a contraposições. Quando o confronto entre as classes se torna inevitável há diversos mecanismos discursivos prontos para deslegitimar aquilo que se coloca como revolta. Pois bem. A mídia alternativa, contra-hegemônica torna o confronto evidente, seja retratando todos os excessos possíveis do Estado, seja colocando suas pautas a partir de suas próprias necessidades. A violência é o assunto central de ambas as mídias. A violência é apresentada como espetáculo pela mídia burguesa lançando seus argumentos como aquele que pode determinar todas as regras do jogo. Sua habilidade é tal que consegue transformar a polícia em vítima dos manifestantes! Seu poder de difusão se faz através da repetição. Não raro, a mídia alternativa capta o contexto abrindo o leque para o espectador ser um participante. Essa outra conclusão que podemos chegar ao acessar outros meios de comunicação transforma o enfrentamento em processo necessário nas disputas políticas. Ora, a mídia que antes via o rap de forma absolutamente negativa e estereotipada produzindo a criminalização dos movimentos de rua principalmente envolvendo negros passa a comportar tais manifestações.

O monopólio da comunicação é também um monopólio dos estímulos e desejos. Os olhares dentro dessa configuração mecânica estão sitiados por fatores econômicos. O processo de monopolização dos meios de comunicação funciona numa complexa trama entre público e privado onde os interesses particulares da burguesia atravessam todos os obstáculos por ser transmitido por frequências igualmente privadas, mesmo que juridicamente estando atrelado ao ordenamento estatal onde supostamente deve servir a todos. A permanência de uma comunicação contrária ao modelo capitalista depende de trocas que façam emergir novas concepções de linguagem e de luta. Para Nildo Viana, nas sociedades marcadas pela divisão em classes sociais antagônicas e com uma divisão social do trabalho complexa, a linguagem passa a ser perpassada pelos conflitos de classes (Bakhtin, 1990) e pelo que alguns estudiosos chamam de “estratificações sociais da língua” (Guiraud, 1976).” (Viana, Nildo. Linguagem, Discurso e Poder, 2009).

Sendo assim, entendemos que os interesses antagônicos de classe também são presentes na produção das informações, midiatizadas em sua grande maioria por canais de interesses privados. Não é a toa que grandes empreendimentos da comunicação formam verdadeiros cartéis dentro de uma configuração de mercado extremamente excludente. A indústria da comunicação funciona como polo de onde se vende desde produtos de beleza até governos e projetos de civilização. Estes estão organizados dentro de uma configuração de mercado, flexibilização, livre competição e circulação de mercadorias. A comunicação independente, por ora dispersa, disposta em células, encontra-se mergulhada em tais contradições, mesmo quando pretensiosamente desligada do que a cerca distinguido-se não só entre os que aceitam a hegemonia do capital e os que são contrários às imposições de mercado, mas entre os que se organizam e os que permanecem distantes dessa possibilidade.

*Arthur Moura é cineasta,
graduado em História pela
Universidade Federal Fluminense,
mestrando em Educação pela
Universidade Estadual do
Rio de Janeiro.

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