Memória BF | Sabotage vive! Em homenagem ao ‘Maestro do Canão’ ouça e leia uma entrevista exclusiva
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Há exatos 21 anos o Rap brasileiro vivia um dos dias mais tristes da sua história: em 24 de janeiro de 2003, o rapper Sabotage foi covardemente assassinado. Ele tinha acabado de deixar a sua esposa no trabalho, nos deixou precocemente, meses antes de completar 30 anos e um dia antes da sua importante participação no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre.
Sua morte foi pela manhã. Poucas horas depois recebi um SMS do MC e jornalista Paulo Napoli informando sobre o ocorrido. Custei a acreditar. Fiz mais alguns contatos atrás de informações. Era muito cedo. Algumas pessoas ainda não sabiam de nada. Consegui falar com Edi Rock, que estava no hospital. Com muita tristeza ele confirmou e aí a ficha caiu. Neste mesmo dia precisei ir ao centro. Fui a duas galerias onde Sabotage conhecia todo mundo e sempre podia ser encontrado conversando com fãs e amigos ou fazendo suas tranças. Nunca vi tanta tristeza ali. Muita gente de cabeça baixa, rodinhas conversando sobre o assunto, alguns dentro das lojas sem querer muito assunto. Sabota era considerado e respeitado por todos. Com humildade e educação construiu e adquiriu esse respeito e consideração.
Seu legado continua. Um disco póstumo foi lançado com músicas inéditas, o DVD ‘Sabotage Ao Vivo‘ (confira no final do post) e muitas outras ações realizadas junto a sua família e o Instituto criado com o nome do Maestro do Canão. Sabotage vive!
Abaixo relembramos uma das suas últimas entrevistas.
No dia 23 de abril de 2002, o Bocada Forte publicou uma entrevista exclusiva com Sabotage, feita pelo rapper e jornalista Paulo Napoli.
A entrevista é curta, bem descontraída e foi um recorde de acessos no início da década de 2000. O Sabota estava no auge. Na época, eu estava andando pelo centro de São Paulo quando escutei a entrevista em algum lugar. Quando fui conferir, era um camelô vendendo CD pirata do Sabotage. Uma das faixas bônus era essa entrevista.
Claro que tive de comprar o CD, que deve estar no acervo de alguém da Equipe BF. O impressionante é que nessa época não era tão fácil baixar os áudios dos sites. Esse áudio nem estava disponível para download quando foi ao ar. Nesse dia, eu percebi o alcance que o Bocada tinha conseguido atingir.
Ela foi ao ar originalmente em Março ou Abril de 2002, era um conteúdo exclusivo para um projeto paralelo que o BF tinha em parceria com o UOL, a Revista Manuscrito.
Pedimos para Paulo Napoli relembrar essa entrevista histórica realizada em março de 2002. Confira abaixo:
Eu tinha conhecido o Sabota uns meses antes de gravar essa entrevista, quando fui levar uma demo dos meus Raps para os caras do Instituto, que na época, estavam trabalhando com ele. Para o meu azar, os caras estavam super ocupados e não puderam me atender… Para minha sorte, enquanto esperava para falar com eles, ali na sala ao lado do estúdio do Instituto estava o Sabotage, que pediu pra escutar meu CD. Escutamos as 22 músicas (sim, a espera foi longa) e depois disso, tive a negativa da rapaziada do Instituto.
Ao me despedir, o Sabota então pediu para ficar com o CD, pois ele queria escutar melhor na casa dele. Eu só tinha aquele CD (pois em 2001/2002, ainda não era tão fácil gravar CDs em casa) e disse pra ele: “- Putz mano, é o único que eu tenho…” Então ele me disse que queria levar pra mostrar pra molecada da quebrada dele, e eu acabei deixando o CD com ele, afinal, eu já era fã do trampo dele. Alguns meses depois a rapaziada do Bocada-Forte/Manuscrito me chamou para fazer uma entrevista com ele, e lá fui eu encontrá-lo no estúdio do Hector Babenco, na Vila Mariana.
Chegando lá, começamos a entrevista e fomos falando do início da carreira dele, influências, estilos de rima, flows e quando eu menos esperava, ele me diz que mostrou o meu CD pra molecada da quebrada dele e que “olhando pra mim não parecia que eu tinha aquele jogo de rima da porra” e que “era muito bom você ter seu estilo e ninguém saber que você é você”. Fiquei emocionado com o reconhecimento e seguimos batendo um papo sobre Rap e vida, nessa entrevista que, acredito eu, foi uma das últimas que ele deu em vida.
Quando nos despedimos, perguntei se ele topava gravar uma faixa no meu disco “VidaXGame”, que ainda estava em andamento, e para minha alegria, ele topou. Infelizmente, sua vida foi interrompida covardemente poucas semanas após essa entrevista, e eu acabei usando no meu disco o trecho dessa entrevista em que ele falava dos meus Raps.
Graças a internet, essa entrevista foi replicada em outros sites, YouTube e até os camelôs do centro de SP vendiam o CD com “todos os sons” do Sabotage com esse bate-papo de “faixa bônus”. Como rapper, foi uma honra ser reconhecido por um artista com o talento e a trajetória dele. Como jornalista, uma honra registrar um pouco da mente desse ser humano que conheceu o céu e o inferno aqui na Terra. Que sua música ecoe por gerações! One love!
Abaixo você dá o play, escuta a entrevista e pode acompanhar a transcrição dela logo abaixo. Confira!
Transcrição da entrevista (com introdução)*:
Pai de três filhos e há quase 20 anos envolvido com o rap, foi somente em 2001 que o rapper Sabotage pôde começar a ter seu talento reconhecido, dentro e fora da periferia. Hoje com seu CD lançado e conquistando cada vez mais fãs, Sabotage mostra que não importa a cor ou posição social quando se tem talento, uma cabeça aberta e é claro, muita humildade.
Considerado uma lenda na zona sul de São Paulo, Sabotage foi uma das fontes inspiradoras para o rapper Rossi do Pavilhão 9 começar a rimar, além de ter ensinado pessoalmente o titã Paulo Miklos “como ser um malandro” no filme “O Invasor”, do cineasta paulista Beto Brant. Outro cineasta, o renomado Hector Babenco (diretor de “Pixote, a lei do mais fraco” e “O beijo da mulher aranha”) que agora está filmando um longa metragem sobre o Carandiru, também pirou ao conhecer o sujeito magrelo de fala baixa e rouca da “Favela do Canão”, e corre um boato de que os dois teriam até escrito um rap juntos.
Vila Mariana, 28 de março, quinta-feira, 20h30. Depois de diversos desencontros durante o dia, minha última chance de entrevistar o rapper Sabotage para o Manuscrito rendeu um bom papo, em que ele fala sobre cinema, família, drum’n’bass e é claro, muito rap. Afinal, como seu próprio refrão diz: “rap é compromisso”. Certo?
Paulo Napoli: Por que Sabotage?
Sabotage: Sabotage porque é o seguinte, vira e mexe o meu irmão falava “- Puta, esse moleque só fica fazendo sabotagem… Sabotagem, sabotagem…” Daí pegou. Desde 82 prá cá.
Paulo Napoli: Quando você entrou no rap?
Sabotage: Em 84 eu já pensava em cantar um rap…porque eu sempre ouvia músicas como Pixinguinha, Caetano Veloso, Chico Buarque… Chico Buarque eu gosto muito, eu me vejo naquela música “Meu Guri”. Eu gostava muito daquilo ali e imaginava aquilo com um pá-tum-tum-pá, tu-tu-tum-pá [imitando uma batida funkeada]… ”
Paulo Napoli: Com quem você já trabalhou durante esse tempo?
Sabotage: De participações eu já perdi a conta… Thaide, SP Funk, RZO, Ataque Versos… Hoje eu to aderindo a um método melhor de fazer as músicas, porque com o tempo a gente vai se aperfeiçoando, né meu?
Paulo Napoli: E o que você está escutando hoje?
Sabotage: Hoje eu gosto muito de ouvir Outkast, 2Pac, Laurin Hill e eu amo mesmo, de coração, pra falar “é muito louco”, Zeca Pagodinho.
Paulo Napoli: Como você define o seu estilo?
Sabotage: Eu sou estilo um rap imperativo, que gosta de explicar as coisas, mas os caras me vêem como um gangster. Porque meu estilo de levada é rápida, é cantada, é sonolenta… É o que eu falo pra você, eu ouço de Chico Buarque a Eminem, de Anti-pop [Consortium] à Z’África Brasil…
Se o cara não tiver força de vontade e gostar muito do que ele faz,
ele não vai viver do rap
Paulo Napoli: Qual a maior barreira para um rapper gravar um disco hoje ?
Sabotage: A maior barreira é a má vontade do cara. Se o cara não tiver força de vontade e gostar muito do que ele faz, ele não vai viver do rap. Porque o rap não dá dinheiro assim.
Paulo Napoli: Como foi a primeira vez que o seu som tocou nas rádios?
Sabotage: Foi uma vez que eu cantei na rádio Imprensa FM, no programa Som na Caixa. Natanael Valêncio e ‘Whitney Houston’, quando eu e o Max (da Academia Brasileira de Rimas) levamos o “Rap é compromisso” e foi muito louco. Eu tava bem louco na rádio, comecei errar a letra e ele começou improvisar um freestyle que em homenagem a ele eu falei: cara, eu vou usar essas palavras que você inventou na hora pra por na minha música. Não tinha isso mas agora vai passar a ter. E dali o pessoal conseguiu fazer uma pirataria com essa versão, do mesmo jeito que eu cantei com o Max: eu errando e o Max entrando, “- Ô Sabotage, conheço um mano que não era feliz / Usava só um baseado e não afundava o nariz…”
Paulo Napoli: Pra você, o que falta no rap hoje?
Sabotage: Acho que falta os caras escutarem mais, fazerem mais cantado… Procurar entender o que um cara adolescente ouve, o que um molecão de 15 anos ouve, o que uma garota ouve do rap. O quê que eles aproveitam do rap?
Muitos falam “- Pra cantar rap tem que já ter vivido no crime, pra cantar rap tem que estar preso, pra cantar rap tem que estar na Casa dos Artistas…” Porque os caras não se conscientizaram que pra “fazer” um estilo você tem que “ter” um estilo seu
Paulo Napoli: E qual a pior coisa que existe no rap?
Sabotage: A pior coisa que existe no rap é o cara chegar e falar “- Ah, que lagartixa, tem que ser gangster…” Não existe isso. O rap foi resgatado da cultura, do samba, da cultura do atabaque, do cultura do barulho. Ninguém se conscientiza disso. Muitos falam “- Pra cantar rap tem que já ter vivido no crime, pra cantar rap tem que estar preso, pra cantar rap tem que estar na Casa dos Artistas…” Porque os caras não se conscientizaram que pra “fazer” um estilo você tem que “ter” um estilo seu. Mas é foda falar isso, porque os caras já acham que você quer “dar aula”, fica chato. É muito bom isso de você ter o seu estilo e ficar ali, só “na bola-de-meia”, sem ninguém saber que você é você. Eu queria ter uma cara que não fosse de rapper pra chegar cantando rap, tanto é que eu já falei pros caras que eu ainda vou subir no palco de paletó, gravata e sapato, e os caras vão falar: “- Ele vai cantar samba” e eu vou cantar rap!
Paulo Napoli: Vai apavorar os caras…
Sabotage: Vou… Você vai ver… Eu sou louco, é sabotagem!
Paulo Napoli: O que você acha da mistura de drum’n’bass com rap?
Sabotage: Eu acho muito boa, pois é uma tendência que abre uma porta a mais para o rap no mercado. O drum’n’bass na Europa é o que mais toca nas casas noturnas, e são milhares de pessoas que param de BMWs, Cherokees, Limusines e outros carros importados para assistir um show desses.
Paulo Napoli: Como foi sua infância?
Sabotage: Como eu gostava muito de música e minha mãe saia para trabalhar, e os meus irmãos saiam cada um para um canto, eu via a realidade nua e crua na minha cara, minha mãe solteira trabalhando pra sustentar três homens… Mas eu via e eu sentia que era o seguinte: “cara, eu tenho vontade de cantar, então eu vou ouvir um rádio, vou pedir o rádio do vizinho”. Aquilo tudo me motivava a gostar de música e gostar menos da violência. Mesmo assim eu ainda me seduzi por vender qualquer coisa pra me sustentar, passar pelo crime, e hoje eu dei a volta por cima, com fé em Deus e estou aí: o rap me resgatou, o rap me salvou.
Paulo Napoli: Você tem filhos?
Sabotage: Eu tenho três filhos muito lindos: o Anderson de 10 anos, a Tamires que tem 7 e a Larissa que vai fazer cinco anos.
Paulo Napoli: Como foi trabalhar com cinema?
Sabotagem: O cinema foi uma novidade. Abriu as portas para mim e foi muito bom porque com o cinema, a periferia vai poder se conscientizar de que as grandes telas são a denúncia mais rápida, é uma via expressa.
Confira “Respeito é pra quem tem” ao vivo – trecho do DVD Sabotage Ao Vivo
Ouça o álbum “O Rap É Compromisso”:
Ouça o álbum póstumo “Sabotage”:
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