O Som É | MV Bill, Facção Central e o ‘rap manifesto’ pela favela

Escrito por Allisson Tiago, do blog Hip Hop Sem Maquiagem

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Em mais uma coluna O Som É, convidamos Allisson Tiago, do blog Hip Hop Sem Maquiagem, para falar sobre um rap que ele acredita ser importante na história do hip hop combatente. O mano escolheu Apologia ao crime, do Facção Central, mas foi além. Tiago falou sobre parte da história do rap de protesto e traçou um paralelo entre a repressão sofrida por MV Bill e o Facção. Confira abaixo:

Hoje é o gênero musical mais influente do mundo, mas nem sempre foi assim para o rap. Desde sua origem, as acusações de associação ao crime, financiamento de discos com dinheiro de gangues, artistas mortos no auge da sua carreira, censura, proibições e tantas outras histórias. Não importa o local, das Costas Oeste e Leste do Tio Sam ao solo tupiniquim verde e amarelo, o rap nunca teve uma aceitação de imediato.

Foram anos a fio de luta para chegar ao que é hoje. No Brasil, o rap iniciado nos anos 80 teve seu calvário de histórico negativo, principalmente da década seguinte, principalmente por seu discurso áspero e mostrar a realidade da periferia.

No auge desse fenômeno alguns fatores contribuíram para que houvesse um interesse impar pelo rap. A música que antes ocupava apenas os lugares insalubres das periferias e becos, agora toma de assalto o noticiário televisivo, porém, esse holofote não foi alusivo as boas referências que o Hip Hop traz em sua gênese, mas sim, na forma de escarnio e infâmia.

Neste contexto, dois videoclipes foram protagonistas e passaram pelo crivo da censura brasileira, algo que só imaginávamos nos anos de chumbo da ditadura militar iniciada em 1964, e não na afamada democracia posterior a 1985.

Dois adolescentes posam com armas no Rio de Janeiro. Foto: Reprodução

No ano 2000, o cantor MV Bill Lança o clipe Soldado do morro, música do seu álbum Traficando Informação. Na época houve uma retaliação por parte da polícia, sendo que o filme foi requisitado para analise na Divisão de Repressão a Entorpecentes antes mesmo do seu lançamento. Bill já tinha causado polêmica ao se apresentar portando uma arma no Festival Free Jazz em 1999. Muitos artista de renome apoiaram Bill, entre eles Milton Nascimento e Caetano Veloso.

O outro videoclipe que teve sua veiculação proibida foi Isso aqui é uma guerra, do grupo paulista Facção Central, o filme continha imagens de ações criminosas encenadas pelos próprios integrantes.

Uma narrativa do que levaria as pessoas a trilhar o caminho errado, mas, com uma mensagem final, já que no clipe um ladrão é preso e o outro é morto. Mesmo com um sentido para a história o poder judiciário manteve a denúncia.

A censura se estendeu à todas as cópias do álbum Versos Sangrentos lançado em 1999, que não podiam mais ser vendidos ou tocados na Rádio. Na época o promotor de justiça Carlos Cardoso, representante do ministério público, abriu inquérito apara apuração das imagens contidas no videoclipe.

Segundo ele, o vídeo era um manual de incentivo para práticas de assaltos, sequestros e homicídios. Até onde se sabe, nenhum dos dois casos foi adiante como processo na justiça e não houve condenação efetiva. Apenas abertura de inquérito para análise e um boicote midiático.

A denúncia do MP enquadrava tanto a música quanto o videoclipe do grupo de São Paulo no artigo 286 do código penal de 1940: Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.

MV Bill. Foto: Reprodução

Apologia de crime ou criminoso

O histórico de repressão não afetou a ideologia dos artistas. Em 2002, MV Bill lança o lendário álbum Declaração de guerra. Disco contundente e que se destaca a faixa Só Deus pode me julgar, umas das músicas mais atemporais do rap nacional até hoje, e que tem um videoclipe polêmico, assim como o antes vetado.

Já o Facção Central lançou o bombástico disco A marcha fúnebre prossegue, álbum com inúmeras referências aos acontecimentos de repressão ideológica que tornaram o grupo ainda mais conhecido. O próprio integrante Eduardo disse em algumas entrevistas que a ação da justiça só fortaleceu o nome do Facção Central na periferia, e que seu maior prêmio tinha sido o reconhecimento da favela.

A marcha fúnebre prossegue

A introdução do álbum de 2001 é uma sequência de colagens de jornais e programas televisivos que o grupo frequentou na época da censura. Falas de apresentadores e a do próprio promotor público figuram no interlúdio do disco como questionamento sobre a acusação de apologia ao crime. Entre as entrevistas que o grupo concedeu na época estão Sonia Abrahão na RedeTv, Joao Gordo na MTV, Otaviano Costa da Rede bandeirantes, KL Jay no MTV Yo Raps, entre outros.

A terceira faixa é uma resposta direta a censura do clipe. A música fala diretamente com o promotor de justiça que moveu processo contra o grupo, e alerta sobre a inocuidade do veto, já que:

“Aí promotor, o pesadelo voltou
Censurou o clipe, mas a guerra não acabou
Ainda tem defunto a cada 13 minutos
10 cidades entre as 15 mais violentas do mundo”

E continua no refrão:

“Pode censurar, me prender, me matar
Não é assim, promotor, que a guerra vai acabar”

Apologia ao crime

O contexto apresentado mostra a temática do disco, e, por conseguinte a música escolhida para análise. A letra pretendida é a faixa 14 do disco, e seu nome tem uma duplicidade de sentido.

Observando o histórico do grupo e os acontecimentos passados, antes de ouvir a música é possível fazer a indagação do que teria no seu conteúdo.

Eduardo, do Facção Central. Foto: Reprodução

Uma letra negando os estereótipos imputados ao grupo e assumindo um papel de “disfarce” apenas no título, ou a confirmação do que o instrumento judiciário estava com a razão e o grupo assume seu papel no lado oposto ao da justiça?

O nome da música Apologia ao crime é referência ao dispositivo da lei no qual o grupo foi acusado. Mas o que seria ele na pratica?

O artigo 286 do código penal faz parte dos chamados crimes contra a Paz pública. São ações tipificadas que incorrem sobre o pretexto de perturbação da ordem vigente estabelecida do Estado, sem a qual fica impossibilitada o desenvolvimento de coletividade de uma sociedade pacificada. Isto é, alguém que executa essa ação criminosa incentiva seus pares a fazer praticas ostensivamente violentas ou criminosas.

Vejamos, a criminalidade, a violência, o caos social e humano sempre existiu, não foi o rap que inventou. O papel da música periférica foi só expor as atrocidades advindas desse sistema. Assaltos a mão armada, sequestros, invasão de mansões, mortes por roubo, e todos os seus desvios sempre rondaram o imaginário das pessoas, uns como agentes passivos, outros como atores desse processo.

Na verdade, dizer que a violência que se deflagra dessa quebra de decoro social é um crime não passa de uma falácia. O Estado de exceção, a guerra, a violência, o extermínio do pobre, a luta de classes, sempre foram a regra constante do nosso convívio, e isso nunca afetou a tal da “paz” da playboyzada.

Os endinheirados nunca deixaram de gozar das benesses do seu capital, mesmo com a onda de violência que volta e meia assolava um ou outro dos seus herdeiros.

O crime do favelado não é roubar, sequestrar, incitar a violência, tramar contra o patrimônio do playboy nem nada disso. A elite juntamente com o instrumento policial, a persuasão ideológica, e seu poder econômico conseguem controlar muito isso.

O que foge do controle é a ascensão por um meio do qual não é esperado, uma espécie de porta secreta, uma rebelião que não estava nos planos da elite.

Detalhe do encarte do álbum ‘A Marcha Fúnebre Prossegue’, do Facção Central. Foto: Reprodução/Google

A antítese do discurso apologético é a carta na manga da música. No senso comum a apologia ao crime seria a incitação à violência de fora desenfreada contra o playboy, a polícia, os bancos, o sistema financeiro, mas, na retórica faccionaria o alvo continua o algoz, contudo, sua ação não se baseia na imputação homicida, e sim, na sua superação.

Ou melhor, contrariando o aparato social que sempre fez com que negros e pobres ocupassem lugares de destaque nas manchetes policiais, cadeias, viadutos, cracolândias, e outras estruturas que negassem sua humanidade, dessa vez a luta é para cometer outro tipo de crime, um que não está nas letras insensíveis do código penal, mas sim na autoestima injetada em cada ouvido periférico.

O crime pretendido na letra é o de subversão contra o que é destinado a nós. Se numa sociedade estruturada para fazer pobres, pretos e periféricos morrer nas colônias, nos morros, nas agencias bancarias, ou em empregos subservientes, agora a ruptura contra a ordem deve ser feita em outro molde.

“Não queria te ver na maca cuspindo sangue quase morto
No hospital com uma par de tiro, tomando soro
Nem catando Pioneer do Escort
Nem enrolando a língua, morrendo de overdose
Esquece a doze, o cachimbo, a rica cheia de joia
Já vi por um real bisturi de legista em muito noia
Não seja só mais um número de estatística
Um corpo no bar vítima de outra chacina”

A afirmação de que com condições adversas, o crime comum é na verdade o caminho trivial para qualquer morador de favela que não aceita a sua condição é obvio. Infligir a lei não é uma desobediência, e sim, cumprir o papel designado pelo Estado e pela elite.

Por isso, a criminalidade deve ser evitada como oposição à vontade do playboy. Apesar de não parecer, o crime é uma armadilha para que continuemos na mesma condição ou pior.

“Só que o conforto não vem através do revólver
Do sangue da refém milionária temendo a morte
O gambé não quer saber seu motivo
Quer sua cabeça na parede igual um porco abatido
Não interessa se é pro remédio da sua mãe
Pra fumar crack ou beber champanhe
Se invadir o condomínio gritando assalto
Caiu na armadilha até no teto vai ter seus pedaços”

A música no seu decorrer mostra qual é a pretensão que o sistema tem para os favelados. A continuidade do status violento é normatizado, e qualquer ruptura com essa tendência foge do estipulado para ser comum. Em outras palavras, quando o sujeito periférico segue o caminho da criminalidade, ele não está sendo exceção, mas sim sendo a regra do jogo que encarcera e matas o seus.

Contra-capa e capa do álbum ‘A marcha fúnebre prossegue’, do Facção Central. Foto: Reprodução

A transgressão está em justamente não participar dessa armadilha do sistema, é aí que está o crime.

“Querem você virando a cadeia, matando estuprador
Exigindo o governador, o juiz corregedor
Querem você num Opala metralhando um bar
Chacina de número 300 pro SPTV noticiar”

Na parte final podemos concluir qual a verdadeira intenção do grupo ao incitar o crime. A deliberação não é para continuarmos a atacar o sistema de forma violenta e criminosa, pois isso já é dado como certo para ele.

A suplica destina-se a contrapor o que o sistema quer. Impedir os aplausos que comemorarão nossa derrota e morte. Faça exatamente o contrário de tudo que nos oferecem e assim estará cometendo o maior dos crimes.

A letra de “Apologia ao crime” não é uma simplesmente uma contradição ou estratégia de nomenclatura do álbum. É um manifesto para que a favela vença de maneira honrosa, não com o sangue do playboy, mas o vencendo através do meio pelo qual somos impedidos desde sempre.

“Nossa vida vale menos que um real
Aqui pobre só presta pra doar órgão no hospital
Por isso vai pra colégio tentar ser o arquiteto
Não faça os porcos aplaudirem mais um noia analfabeto
Que bate na coroa pra fumar um rádio
Da bonde em traficante, amanhece esquartejado
[…]
Pras 6 horas eu te ver no cidade alerta
Algemado com hematoma tipo cachorro numa cela”

A estrofe final condecora a incitação ao maior crime que a favela pode cometer. Aquele que a playboyzada teme que possa incidir um dia e não haja mais como evitar. O sonho de não ostentarmos mais as armas, mas sim diplomas.

“O sistema tem que chorar, mas não com você matando na rua
O sistema tem que chorar vendo a sua formatura”

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