Colhendo frutos de seu mais recente trabalho, o CD “Muito Mais Amor”, LÍVIA CRUZ segue quebrando bairreiras. A cantora deixa sua assinatura na cena com seu rap que equilibra diferentes temas e produções, que vão do peso aos beats densos, passando pelo mais moderno R&B. Respeitada entre os adeptos do gangsta rap, Lívia também tem parcerias com artistas do rap alternativo e do pop, entre outros estilos. Nesta entrevista exclusiva, a cantora revela seu lado politizado, abordando temas que – como sempre ressaltamos – são evitados por uma grande parcela do hip hop.
Bocada Forte: No seu disco, você aborda diferentes situações reais em diferentes relações. Desde um relacionamento sério que envolve traição, decepções, passando por romances casuais e chegando até a reação ao clima violento e problemático causado pela dominação machista. Tudo do ponto de vista feminino. Alegrias e dores do amor são tão reais quanto outros temas do hip hop. Você acha que estas situações cotidianas que trata do disco são colocadas em segundo plano no rap brasileiro?
Lívia Cruz: Eu acho que sempre rola uma tentativa de desqualificar o rap feminino, e nessas apelam pra todo tipo de argumento, inclusive de que o romance, as decepções, reflexões sobre o amor não seriam temas relevantes pra se tratar na música rap, entre outros tantos julgamentos aos quais somos constantemente submetidas. Eu não vejo um primeiro ou segundo plano, é tudo momento, a pessoa se identifica ou não.
Bocada Forte: Você acredita que quebra barreiras ao seguir na contramão de uma cena que cobra muita atitude das mulheres ao mesmo tempo não se preocupa com suas histórias e com seu protagonismo?
Lívia Cruz: Sobre cobrança de postura e protagonismo, muito anda se falando do movimento feminista, mais uma vez tentando deslegitimar e transformar o franco posicionamento de algumas em algo negativo, sempre, sem exceção, afim de enfraquecer e dar as mulheres o velho papel de coadjuvante nas histórias dos caras. Hoje fala-se sem o menor pudor em letras de rap brasileiro da vontade de praticar crimes hediondos contra mulheres em tom de piada, ainda nos apontam e julgam pelas nossas roupas e nosso discurso, eu acho – de modo geral – que muita gente ultimamente anda fazendo música e/ou criticando de uma maneira muito desleixada, sem se preocupar com o próximo ou com o contexto histórico das paradas. Eu acredito sim que a nossa simples presença já quebra barreiras, mas o muro que nos divide ainda é bem firme.
Bocada Forte: Num passado recente, você mostrou insatisfação ao ver o tempo reservado ao seu depoimento no documentário “O Rap pelo Rap”. Você acredita que se tivéssemos mais mulheres descrevendo e analisando a cena hip hop teríamos uma abordagem diferente? Acha que muitos consideram natural reservar um espaço de coadjuvante para as mulheres na construção da história do nosso rap?
Lívia Cruz: Tenho certeza absoluta dessas realidades, a nossa “cota” sempre é direcionada para os papéis coadjuvantes. Para muitos, até seriamos sumariamente excluídas da história, e essa “cota”, esse tempo reduzido no documentário, a sugestão do produtor de que façamos um “especial mulheres” dentro de um festival, resumindo um show de 8 MCs a um período de uma apresentação individual de 15minutos, a constante sugestão de que o seu rendimento, o seu mérito, os seus resultados em geral estão diretamente ligados ao sexo, entendam – não ao gênero, ao sexo mesmo – tudo isso e mais são formas brutais de tentativa de exclusão, claro que não podemos generalizar, mas tantos os homens quanto mulheres vem contribuindo pra este cenário, desde aquela piada “inocente” até aquele ato deliberado de sabotagem. Recentemente participei de uma roda de conversa sobre protagonismo feminino, a conversa cambou, como sempre, para as questões de violência, eu passo longe do discurso da vitimização, mas esse é um sintoma grave e mostra que ainda há muito combate a ser feito.
Ouça o disco “Muito Mais Amor”:
Bocada Forte: 2014 foi um ano bom pra você em relação a conquistas, shows e projetos? Ainda sente o perigo que é viver de rap ou as coisas estão melhorando?
Lívia Cruz: 2014 foi o ano da minha autoafirmação, fiz mudanças na vida, mudei de cidade, desapeguei de coisas e também de velhos hábitos. Nessa fase de transformações, tudo se mostrou muito mais claro, qual o meu caminho, o meu lugar no mundo. Isso me deu muita paz de espírito, serenidade e confiança… Eu precisei de tudo isso mais do que nunca pra lidar com os “perigos” da profissão. De modo geral foi um ano bom, meu disco assentou a poeira e se estabeleceu, era o caminho natural pra mim e pro trabalho, mas eu ainda me surpreendo (risos). Hoje eu me sinto mais segura, mas isso é principalmente reflexo de um amadurecimento pessoal, o resto é consequência.
Bocada Forte: Como é o lance de suas parcerias com beatmakers e produtores? Pretende trabalhar com novas parcerias instrumentais futuramente?
Lívia Cruz: Eu curto me desafiar em novos estilos, sempre que rola uma conexão positiva, e isso vira trampo, é uma benção. No presente momento estou trabalhando com Skeeter, que produziu algumas faixas do Muito Mais Amor. Desde então, demos continuidade a nossa parceria. Em breve tem novidades na rua.
Bocada Forte: Voltando a falar da nossa realidade social, qual sua opinião sobre os casos de homofobia no rap? Acha que algum dia isso possa diminuir e o rap ser mais contundente na luta por igualdade?
Lívia Cruz: Hoje eu enxergo duas correntes muito fortes fluindo em completa oposição. Há pouco tempo, um amigo assumiu publicamente que é gay, no Brasil ele foi o primeiro rapper a tomar essa atitude. Esse empoderamento é de um nível que ultrapassa, transborda, representa pra muito mais além do universo do rap e hip hop. Um passo, uma declaração de um indivíduo que abalou uma série de preconceitos, levantou questões importantes,abriu portas pra construção de uma nova realidade, pra mais gente expressar sua verdade e se sentir representado.
Fazia tempo que eu não via uma atitude tão hip hop quanto essa, que aparentemente começa com um indivíduo, uma célula, mas se estabelece coletivamente e ecoa, da orgulho, da aquele calorzinho no coração…Em contra partida, tem um pessoal arrastando, fazendo um rap completamente dissociado da cultura hip hop, sem formação de base alguma, consequentemente reproduzindo o discurso e virando ferramenta do opressor, essa cena me entristece, mas, fazendo uma análise geral de comportamento, observando essa juventude que vê com naturalidade conhecer pessoas através de aplicativos, entre outros comportamentos que ficam no plano do superficial, da busca por satisfação instantânea, enxergo como um caminho inevitável, o lado bom é que o hip hop só cresce, tem raízes fortes, suas boas sementes continuam plantando liberdade.
Bocada Forte: A molecada da periferia é o principal alvo da violência policial, mas parece estar hipnotizada pela indústria da distração, tecnologia, festas e consumo. Até que ponto o hip hop pode ajudar a mudar esse quadro? Acha que o rap atual se preocupa com estas questões?
Lívia Cruz: Existe uma linha tênue entre o que é construção de autoestima e apologia ao consumo, vejo muitos artistas se perdendo nessa travessia, se manter “do lado de cá” é uma tarefa árdua, a sedução é constante e o cansaço as vezes te empurra pro caminho mais fácil. Eu sou romântica, sou dessas que acha que o rap tem um papel, que MCs têm uma missão, acredito e ponho as mãos no fogo que a força de transformação do rap, da cultura hip hop, tem o poder de resgatar de caminhos considerados sem volta.
A violência policial é a ponta da lança, uma sociedade que considera natural a violência contra mulher consequentemente está violentando as crianças, a total falta de referências nos meios de comunicação, as constantes mensagens de que você precisa ter pra ser, muitas vezes pra um jovem que não tem nem o básico, tudo isso compõe o corpo da lança, o buraco é bem lá embaixo. Eu acedito e ponho as mãos no fogo pelo rap, mas faz tempo que eu não ponho as mãos no fogo por rappers.
“Não foi em vão”, videoclipe que aborda a violência contra a mulher:
Bocada Forte: Muitos jovens têm a violência (física, verbal, psicológica, econômica) contra a mulher como algo natural num relacionamento, mas você foi criticada pela revanche na música “Não foi em vão”. O que acha dessa naturalização da violência?
Lívia Cruz: Eu vejo essa naturalização enraizada na nossa cultura e me esforço pra combatê-la diariamente. Eu acho que o buraco é mais embaixo, uma sociedade que não respeita, agride e viola as mulheres, que são a célula principal da família, é uma sociedade doente, a violência passa a ser generalizada, os valores são deturpados e a partir daí você pode enxergar uma cadeia de problemas que já é um círculo vicioso estabelecido.
As pessoas não vêem que o machismo oprime a todos, que a tal “vantagem” que os homens levam, na real é uma jaula, que os prende em convenções de comportamento que são receitas pra uma vida insatisfatória. Daí eu vou mais longe e enxergo que essa constante insatisfação é uma ferramenta que o sistema usa pra controlar as massas, o infeliz vai comprar, consumir, beber, agredir, segue o ciclo do medo, da culpa, uns poucos continuam enriquecendo e a periferia segue sangrando.
Eu teria que elaborar uma tese extensa pra explicar a minha lógica, sei que esse resumo pode parecer confuso, mas eu enxergo assim, não é do interesse dos que controlam a mídia, dos que tem grana, poder, construir uma perspectiva melhor pra sociedade, a violência é uma forma eficaz de controle, se você rebaixa a mulher, condiciona ela ao medo, ao constrangimento, você está rebaixando uma sociedade inteira. Quanto as críticas e acusações de revanchismo, o que eu quis mostrar no vídeo foi a falta de assistência do poder público para com as mulheres que sofrem agressões físicas e tortura psicológica, situações que no cotidiano tem levado mulheres a morte todos os dias, quis dizer que uma hora tomaríamos pra nós mesmas a punição e o termino efetivo dessas situações, uma vez que não temos assistência da Justiça. Eu recebi dezenas de mensagens de mulheres compartilhando suas histórias, eu não calculei a dimensão que a música/vídeo iria tomar, mas fiquei feliz de mínimo ter provocado uma reflexão, independente da interpretação das pessoas.
Bocada Forte: Ser artista, ser do rap, ser mãe. Você acha que as pessoas sabem qual o peso da “responsa’ que você carrega? Será que o rap, maioritariamente masculino, entende isso?
Lívia Cruz: Certamente não. Eu ouço da maioria dos meus colegas: “o rap tem que estar em primeiro lugar” , entre outras frases semelhantes, e simplesmente pra mim isso não cabe, é um conflito constante que eu preciso administrar. No mercado independente o artista é obrigado a ser uma empresa e desempenhar inúmeras funções, existem prioridades na minha vida de mãe que o rap ainda não foi capaz de suprir, e eu me desdobro pra desempenhar os papéis com a máxima dedicação, mas me sinto sempre dividida. Tem momentos e fases onde as coisas fluem melhor, mas tanto pra mim quanto pra maioria das mães que eu conheço, rola sempre algum momento onde você é intimada a escolher entre uma coisa e a outra, e fazer essa escolha é como cortar da própria carne, independente de qual seja a opção. Muitas de nós não tem o apoio da família ou do companheiro, nem na carreira, nem na criação dos filhos, o que torna o malabarismo ainda mais difícil, mas, nessa vida, eu já vi o impossível acontecer algumas vezes, por isso eu continuo acreditando!
Fotos: SIMONE AGUIAR