Gilberto Yoshinaga: na escrita da história

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O livro entrelaça a história de Nelson Triunfo com informações sobre a história do soul, do funk de raiz e da cultura hip-hop no Brasil”

O jornalista GILBERTO YOSHINAGA poderia estar vivenciando a rotina de qualquer redação de um grande veículo, mas resolveu dedicar seu tempo e precioso dinheiro ao hip hop. Isso é loucura, diriam muitos, principalmente ao descobrirem que Yoshinaga não investiu em festas, eventos ou algo que poderia dar maior certeza de retorno financeiro. No ano passado, depois de muita pesquisa, entrevistas e viagens, Giberto Yoshinaga lançou Nelson Triunfo: Do Sertão ao Hip Hop, livro que aborda a vida de Nelsão, o grande pioneiro do hip hop brasileiro. Mantendo a tradição de registrar as ideias de quem movimenta a nossa cultura, o Bocada Forte entrevistou Gilponês, como o jornalista e escritor é conhecido na cultura de rua. Leia abaixo.

Bocada Forte: O hip hop ainda é visto como algo que não é nosso, que não é brasileiro?

Gilberto Yoshinaga: Acredito que num passado mais “quadradão” havia mais resistência a culturas rotuladas como estrangeiras, mas nos últimos tempos esse debate sobre “autenticidade nacional” tem se tornado irrelevante, principalmente porque a internet reduz distâncias geográficas e torna tudo mais acessível a qualquer pessoa – o que tem seu lado bom e seu lado ruim.

Quando o soul e o funk de raiz explodiram no Brasil, no início dos anos 1970, o “Jornal do Brasil” até tentou jogar a massa do samba contra essa nova manifestação, tachando-a de “cultura importada”. Mas o fato é que tudo é a cultura dos Homo Sapiens. Nesse aspecto, as etnias, bandeiras e idiomas se tornam meros detalhes. Os hábitos da minha rua são diferentes dos da rua de cima; os costumes do meu bairro são diferentes dos existentes no outro lado da cidade; e assim sucessivamente, numa escala maior, costumamos diferenciar cidades, estados, países,… mas penso que as fronteiras são abstratas, são convenções imaginárias criadas pelo homem para rotular, segregar, e ainda assim não conseguem isolar nada que a resistência e o tempo não possam superar.

Se até o Muro de Berlim caiu, os tijolos que tentam colocar na cultura também são transponíveis. Todos bebem de alguma fonte, tudo é influenciado por algo ou alguém. O hip hop pode não ter nascido no Brasil, mas não é 100% “made in USA” – sua raiz teve contribuição porto-riquenha (breaking), jamaicana (DJ Kool Herc) e até grega (Taki 183, um dos pais do graffiti), entre outras, sem contar que há décadas os Beastie Boys já sampleavam bossa nova. 
No caso do rap feito por aqui, por exemplo, é fácil notar que nomes como Zé Brown, Rapadura, Nelson Triunfo, Rappin’ Hood, Beatchoro, Nitro Di, Projeto Preto Véio e tantos outros conseguiram reinventá-lo acrescentando timbres, linguagens e outros ingredientes genuinamente brasileiros. Resumindo: hip-hop é uma cultura mundial, com variações de país para país, e o Brasil é só mais uma dessas vertentes, assim como existe jazz japonês, soul alemão, funk africano (afrobeat), reggae inglês e até o Criolo já canta enka (gênero musical japonês) em seu último álbum.

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Bocada Forte: Numa época em que chove informação, mas não há interpretação mais profunda dos fatos, você acha que faz parte dos que estão recontando a história da nossa cultura popular, colocando personagens como Nelsão, migrante nordestino e antenado com o mundo, no centro do debate sobre a formação do hip hop aqui em nosso país?
Gilberto Yoshinaga: Acho pretensioso querer atribuir esse papel a mim mesmo, mas essa foi, sim, uma intenção. Reconheço que escrever essa biografia vai na contramão de um país que, infelizmente, não costuma valorizar seus mártires culturais em vida. Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga, Helena Meireles e até Raul Seixas ou Chico Science são exemplos que só se tornaram ícones imortais depois de terem partido. Talvez porque a cultura seja algo que requer tempo para ser compreendida no âmbito da arte, e não na lógica do mercado – que ainda dita muitas regras e padrões, e que de “lógica” não tem nada, porque coloca o foco no cifrão como prioridade.

Com a internet, o excesso e a velocidade de informações podem tanto ajudar como atrapalhar na compreensão e consolidação da nossa identidade. Cabe a cada agente cultural, e também a cada consumidor de cultura, ter bom senso e discernimento para perceber a diferença entre conduzir e ser conduzido – “non ducor duco”! E isso passa automaticamente pela educação, pelos valores de cada geração. Hoje em dia muita gente usa boné dos Yankees, mas nem sabe que se trata de um time de beisebol ou não sabe citar o nome de um jogador deles. Muito moleque por aí sabe mais nomes de bebidas “de grife” ou de marcas de roupa estrangeiras do que de referências culturais de seu próprio país, e isso é um sintoma de diluição de valores e perda de identidade. Há uma forte “cultura das aparências”, que é vazia, mas tristemente enche os olhos da atual geração.

Muitos brasileiros não percebem que têm preconceito do próprio Brasil, sobretudo das regiões economicamente mais pobres (principalmente o Nordeste, que considero nossa região mais rica no aspecto cultural). Ainda acredito que o pernambucano Nelson Triunfo não recebeu nem 1/50 do reconhecimento que merece por sua contribuição à cultura, mas tenho fé que um dia esse reconhecimento virá. Talvez eu nem esteja mais neste plano, mas um dia as pessoas perceberão o quanto ele é importante, e não apenas um “doidão do cabelo black gigante”.

Oxalá isso aconteça! Porque cada rima dele, cada passo de dança e cada fio daquele cabelo possuem uma simbologia fortíssima de existência e resistência, mas poucos são os que decodificam e valorizam isso. Muitos acham caro gastar R$ 10 no CD do Nelsão e topam pagar centenas de reais para ver o 50 Cent ou o Ja Rule virem aqui esnobar/desrespeitar nosso público, tratar toda mulher brasileira como prostituta e dizer um monte de besteiras em inglês, sem nenhum compromisso com a cultura, já que quase ninguém faz questão de entender suas letras e discursos.

Bocada Forte: Como foi o processo de pesquisa? Lidar e selecionar fontes é registrar, mas também significa condenar certas partes da vida do biografado ao esquecimento?
Gilberto Yoshinaga: A definição de “universo” no dicionário ocupa poucas linhas, mas o universo em si é algo infinitamente mais amplo e complexo. Então, por mais completa que seja uma pesquisa ou um relato, sempre vai faltar algo, até mesmo porque a narração de uma história nunca será equivalente à totalidade dela. O livro entrelaça a história de Nelson Triunfo com informações sobre a história do soul, do funk de raiz e da cultura hip-hop no Brasil, porque não há como falar sobre ele sem posicioná-lo nesses contextos.

Essas informações mais “didáticas” eu já acumulava havia cerca de 15 anos. Com relação à biografia do Nelsão propriamente dita, foram quatro anos de pesquisa no acervo particular dele, em arquivos de jornais/revistas e em mais de 40 entrevistas que fiz com artistas, familiares e até amigos de infância dele. Creio que percorri pelo menos uns 20.000 km colhendo informações – fui a Triunfo, sua cidade natal no sertão pernambucano; a Paulo Afonso (Bahia), para onde ele se mudou na adolescência; e também para o Distrito Federal e Rio de Janeiro, lugares por onde ele passou antes de se estabelecer em São Paulo a partir de 1977. E acompanhei ele por diversas cidades, em shows, palestras, oficinas e outros eventos.

A intenção foi registrar o máximo possível de informações relevantes relacionadas à trajetória artística e de vida de Nelson Triunfo, principalmente enquanto ainda temos ele e várias “testemunhas” dessa história à disposição. Mas sempre vai faltar algo. Depois de lançar o livro, já recebi informações que não chegaram a tempo até mim – e provavelmente devo incluir numa próxima edição revisada e atualizada. A verdade é que nunca se finaliza uma obra artística, e sim abandona-se.

Se algo vai ficar fadado ao esquecimento? Provavelmente sim. Mas isso não tira nossa responsabilidade de respeitar as raízes: o direito de errar não elimina a obrigação de acertar. BNegão deixou no livro uma frase bem pertinente, que diz algo como: para entender onde estamos e saber para onde vamos é essencial saber de onde viemos. E o Nelsão engloba tudo isso.

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Bocada Forte: A história oral, os relatos das pessoas ao redor de Nelson Triunfo mudaram seus planos e roteiros? Chegou a pensar que estava perdido demais em algum momento dessa empreitada?
Gilberto Yoshinaga: São muitas histórias, muitos episódios interessantes e diversos, que mostram bem toda a diversidade cultural que Nelsão transpira e inspira. Por exemplo, as influências das quais ele bebe passam pelos musicais do cinema norte-americano, com Fred Astaire, Gene Kelly, Frank Sinatra e Sammy Davis Junior; passam por todas as vertentes da diáspora afronordestina, como coco, embolada, xaxado, baião, literatura de cordel, repente; passam pela eclosão da Jovem Guarda, com Eduardo Araújo, Renato e Seus Blue Caps, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Jerri Adriani; passam por nomes inusitados, como Alice Cooper, Creedence, Jessé, Corrente de Força, Miguel de Deus, o samba (desfilou diversas vezes pela Vai-Vai), o cinema (estrelou o filme “A Marvada Carne”) e muito mais coisas. Isso sem mencionar o soul, o funk e o hip-hop, segmentos em que ele se tornou mais conhecido. Enfim, Nelsão é uma imensa e saborosa salada cultural! Isso tudo realmente chegou a me deixar meio “perdido”, mas eu preferi encarar essas dificuldades como desafios. E acredito que consegui “costurar” tudo isso num só texto, num livro que não deixa de ser um documento da cultura popular brasileira, livre de rótulos, estereótipos ou preconceitos.

Bocada Forte: A cena/cultura hip hop reconhece o valor de Nelson Triunfo? Existe um presentismo ou um olhar focado só no futuro que impede a percepção histórica dos integrantes do hip hop?
Gilberto Yoshinaga: No discurso, Nelsão é praticamente uma unanimidade e todos os agentes culturais do hip-hop o reverenciam como mestre, ícone, inspiração… Mas na prática, nos bastidores, são poucos que realmente o respeitam e valorizam – existem até uns hipócritas que elogiam ele quando dão entrevistas, talvez para pegar carona no valor cultural que ele tem, mas fora dos holofotes, quando ninguém está vendo, o menosprezam e o ignoram.

Sobre o público, os mais “antigos” reconhecem sua importância, mas entre as gerações mais novas são poucos que conhecem sua história ou sequer demonstram interesse em conhecer. Isso volta ao assunto que já abordei, sobre essa onda atual de valorização das aparências, essa diluição de valores e a perda (ou inexistência) de identidade cultural. O livro é justamente uma tentativa de aplicar um “choque 220 volts” na mentalidade da garotada que está se deixando seduzir pelo bling bling (ostentação), pela supervalorização das referências gringas, pelos MCs de plástico cujas ações não correspondem a seus lindos discursos.

Bocada Forte: Apostar na leitura num país que tem uma juventude não leitora em sua grande parte é coragem ou loucura?
Gilberto Yoshinaga: Pouca gente sabe, mas fiz um empréstimo bancário pesado para poder bancar a tiragem deste livro de forma independente, uma quantia com a qual poderia comprar um carro zero quilômetro e equipá-lo com lowrider. Mas continuo usando transporte público porque resolvi investir tudo em papel, tinta e ideias. Foi coragem e loucura, mas eu faria tudo de novo quantas vezes fosse necessário.

Às vezes é desanimador saber que só Buenos Aires, com 3 milhões de habitantes, tem quase o mesmo número de livrarias do Brasil inteiro, que tem 200 milhões de habitantes. Mas ser subversivo é isso, é entrar na contramão sem medo de se acidentar, é encarar a piracema mesmo sabendo que nem todos os peixes conseguirão subir a correnteza.

Por outro lado, também há uma fagulha de otimismo. Vejo leitores assíduos nas periferias, que tinham tudo para pegar em armas ou abraçar ideias tortas, mas acabaram dando de cara com livros que transformaram suas vidas de forma positiva. Tenho percorrido vários saraus marginais, que têm se multiplicando por todo o Brasil, além de muitos ótimos escritores e poetas “escondidos” deixando de ser anônimos e espalhando seu verbo por aí. E ainda tem muita gente boa pra ser descoberta. É por esses iguais que eu trabalho, é com eles que eu me motivo. Como diz o mestre KL Jay: “Resistir é acreditar. E você, acredita?”…

Bocada Forte: Falando de rap, acha que faltam obras que problematizem o canto falado, suas nuances e contradições?
Gilberto Yoshinaga: O número de obras ainda é pequeno ante a riqueza do nosso rap, mas elas existem e estão se tornando cada vez mais numerosas e com mais qualidade. O problema é a falta de interesse do público em geral. Basta observarmos que alguns rappers possuem centenas de milhares, ou até milhões de seguidores em redes sociais, mas pouquíssimos que se dizem adeptos ou amantes do hip hop se interessam pelo meu livro, pela biografia do Sabotage (brilhantemente escrita pelo Toni C), pelos escritos do DJ TR, do DJ Raffa, do Renan Inquérito, do Gaspar (Z’África Brasil), do Lews Barbosa (Potencial 3), do Alessandro Buzo e de tanta gente boa que tem por aí… incluindo alguns autores que nem sempre são “do rap” especificamente, mas que em sua essência são muito mais hip hop do que muitos discos de rap. Só pra citar mais algumas referências imprescindíveis: Sérgio Vaz, Emerson Alcalde, Jéssica Balbino, Rodrigo Ciríaco, Ni Brisant, Victor Rodrigues, Roberta Estrela D’Alva… há muitos outros nomes, e um autor sempre leva a outros.

Depois que inventaram o Google, não existe mais pretexto ou desculpa para não ir atrás da informação. Mas aí voltamos à crise de valores: enquanto um ótimo letrista como o MC Garden tiver menos Ibope do que os funkeiros de ostentação, transmitir uma mensagem relevante ainda vai ser como andar na contramão.

Bocada Forte: Pretende continuar escrevendo? Tem algo em mente?
Gilberto Yoshinaga: Com certeza! Ler e escrever são vícios “do bem”, que eu sempre recomendo e incentivo. E as ideias brotam de forma espontânea, a verdadeira criação artística não é controlada por seu autor.

Ainda neste ano pretendo lançar um livro ficcional. Ainda estou indeciso entre contos ou poesias, e não descarto misturar tudo em uma só obra. Neste ano também devo iniciar outra pesquisa biográfica, sobre uma importante família de DJs que fez e continua fazendo história em São Paulo. E ainda tenho o desejo particular de biografar algumas personalidades que admiro, e que precisam transmitir seus exemplos de vida para mais pessoas e gerações.

Não sei se vou conseguir realizar tudo isso porque minhas convicções ideológicas me impedem de fazer certas concessões ou alianças apenas por dinheiro, e infelizmente ele move tudo ao nosso redor. Mas espero ter condições de prosseguir fazendo isso nos degraus seguintes dessa longa escadaria. Também espero continuar vendo o dinheiro apenas como instrumento, e jamais como objetivo das minhas realizações. E o legado que pretendo deixar é a informação, e não alguma propriedade ou bem material.

Para saber mais ou adquirir um exemplar do livro:
www.nelsontriunfo.com
www.facebook.com/biografiadenelsontriunfo

Foto da Home: Keytyane Medeiros

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