ACERVO BF | Entrevista com André Du Rap, sobrevivente do massacre do Carandiru

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Em 10 de outubro de 1992 o demônio se vestiu de cinza e tocou o terror na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru). De acordo com os números oficiais foram mortos 111 presos. Se passaram 10 anos e pouca coisa foi feita pelas famílias e pelos sobreviventes, os culpados continuam por aí.

Nesses 10 anos foram inúmeros os protestos e feitos de várias formas: livros e músicas são as mais conhecidas. Dos sobreviventes apenas um veio à mídia dar o seu depoimento e agora lançou um livro, ele se chama André Du Rap. Em parceria com o jornalista Bruno Zeni, lançou pela Editora Labortexto o livro ‘Sobrevivente André Du Rap’.

Já na abertura do livro ele conta como foi o massacre, o início de toda a confusão, o seu desespero embaixo dos corpos de seus companheiros já assassinados – é isso mesmo, foi assim que André sobreviveu, se escondendo embaixo dos corpos, no livro ele conta que até hoje tem pesadelos por conta do massacre. Bruno Zeni teve grande participação na elaboração do livro, que é uma mistura de reportagem e literatura – “além de ter gravado com o André nossas conversas e, assim, ter conduzido a narrativa dele, fiz também a edição do texto” – explica Bruno. Nessa entrevista, ambos falam sobre a desativação do Carandiru, Hip-Hop na cadeia e sobre o número oficial de mortos no massacre – “só quem sobreviveu sabe da realidade” – garante André, aliás ninguém melhor do que ele para contar o que aconteceu.

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Adquira produtos e ajude na manutenção do siteBocada-Forte: Como e quando surgiu a idéia de fazer o livro?
André: Em 92, depois da invasão da PM no Pavilhão 9, eu já compunha minhas letras de Rap e poemas. Tinha também tipo um diário onde eu absorvia tudo o que eu vivia em meu dia-a-dia. Então senti a necessidade de passar um pouco de todo sofrimento nosso aqui pra fora, pras pessoas, pra sociedade.
Bruno: O livro é resultado do encontro de dois desejos, o meu e o do André, e começou a ser feito quando nos conhecemos. Meu projeto inicial era contar a história de alguns dos 111 presos assassinados no Carandiru em 1992. Fui ao Fórum da Barra Funda em São Paulo durante o julgamento do Coronel Ubiratan Guimarães, que comandou o Massacre, em junho de 2001. Lá conheci o André, que também tinha um projeto, o de contar em livro a história do Massacre – para que a memória sobre o que aconteceu não se apagasse – e a sua própria história.

B.F: Você sofreu algum tipo de represália por fazer um depoimento sobre o massacre de 92?
André: Todas às vezes que sou abordado tem repressão e represália. É quase 24 horas por dia.

B.F: Você também testemunhou contra os policiais no tribunal? Sofreu alguma ameaça?
André: Não fui arrolado porque estava privado da minha liberdade, e vários que o fizeram desapareceram no sistema!

B.F: Dizem que o número oficial de mortos no massacre é 111. O que você acha, a conta está certa?
André: Bom, falar em números é complicado pois os filhos da puta violaram todos os corpos e sumiram com as testemunhas. Foram bem mais de 111. Só quem sobreviveu sabe da realidade, que foram mais de 600.

B.F: Das pessoas que você se correspondia, tem contato com alguma delas, elas sabem sobre o livro?
André: Algumas sim, outras não.

B.F: E os seus companheiros sabem sobre o livro?
André: Todos os meus irmãos e irmãs sabem, pois é um pedaço de nossas vidas no sistema.

B.F: Como é o Hip-Hop dentro da cadeia, tem Breaking, Rap e Graffiti ou só Rap?
André: Dentro da cadeia tem vários talentos aprisionados, vário rappers, MCs, DJs, vários B-boys e Grafiteiros, todos buscando uma oportunidade.

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B.F: Foi difícil achar uma editora para publicar o livro?
Bruno: Felizmente, os sistemas literários e editorial brasileiros vivem um momento receptivo ao tema da prisão e à literatura de testemunho. Oferecemos o livro a uma primeira editora, que não teve condições de realizar o projeto, mas que nos indicou a Labortexto, editora que publicou o livro. Devemos muito dessa realização ao editor João Eduardo Pedroso Oliveira (que acreditou no nosso trabalho) e à equipe da Labortexto. A pergunta, porém, leva a outras reflexões, e em tempo de eleição é sempre bom lembrar que ainda há muito o que fazer em relação ao livro, à leitura e à educação neste país. Fico preocupado com a vida do livro agora, depois de publicado: se ele vai chegar às mãos das pessoas, se ele vai estar nas bibliotecas, se as pessoas vão ter condição de comprá-lo. Fica aí uma ideia pros nossos políticos dormirem com ela debaixo do travesseiro: precisamos fazer com que o acesso ao livro seja maior no Brasil – com investimentos em bibliotecas públicas na periferia, livrarias populares e mais atenção à distribuição do livro.

B.F: André, qual sua opinião sobre a pena de morte?
André: Nunca vou concordar, pois eu seria um dos primeiros a morrer. Só o nosso povo é que, como sempre, sofreria essa ação: o pobre, o preto da periferia. Na prática, ela já existe para nós.

B.F: Quando começou o seu envolvimento com a cultura Hip-Hop e como está hoje em dia?
André: Desde 1980-82, eu tocava nos bailes black. Hoje continuo na correria por nossa ideologia.

B.F: 509-E, Detentos do Rap, Comunidade Carcerária, Jocenir e Dr. Dráuzio Varella. Com qual desses você teve algum contato lá dentro?
André: Tive contato com todos e mando um abraço firmão e fortão para todos: WO, Kric, FW e BO (Comunidade Carcerária), Dexter e Afro-X (509-E), Jocenir, Dráuzio, Bola Mais um, Detentos do Rap, Mano Reco, DJ Colina, Ice, Rone e família Conexão Carandiru.

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B.F: O que vocês acham da desativação do presídio? Voltou ou pretende voltar lá para visitar?
André: Eu vendo todo dia meu livro lá na frente da Detenção. Pra mim, a desativação só vai mudar o problema de lugar. É uma forma de encobrir uma mancha em nossa história, um golpe político, como em 1992.
Bruno: As recomendações de entidades internacionais com relação aos sistemas penitenciários é de que o limite desejável para a população de um presídio seja de cerca de 600 detentos. Mais que isso fica difícil administrar e dar a atenção – psicológica, jurídica, vocacional, alimentar, de saúde – de que todo preso necessita. Por isso, se diz que a desativação do Carandiru era necessária há muito tempo. Mas que o fim do Carandiru tenha sido completado às vésperas da eleição é uma jogada obviamente eleitoreira do Governo do Estado. Só desativar não resolve nada. Para onde foram os detentos que moravam lá? E a família dos caras, como é que vão visitá-los? E sobre a política de assistência e recuperação dos detentos, por que não se fala nisso? Por que só se fala em repressão ao crime e não em criar alternativas ao crime? Por que não reformaram a Detenção e a transformaram num presídio menor, com condições dignas de trabalho e estudo para os presos? E complementando: sou totalmente contra a implosão do Pavilhão 9. Acho que demolir o pavilhão é apagar os vestígios de tudo que aconteceu ali, inclusive e principalmente eliminar o espaço onde o massacre ocorreu. Acho que o Pavilhão 9 deveria virar um museu, um memorial, algo assim, em homenagem às vítimas e à memória da triste História do Brasil.

B.F: Você foi o único a depor contra os assassinos?
André: Sou o único sobrevivente a falar contra os assassinos na mídia. Eu gostaria que vários manos e familiares me procurassem e entrassem na luta pelos direitos dos manos que estão atrás das muralhas da solidão.

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B.F: Bruno, qual foi a sua contribuição no livro?
Bruno: Meu trabalho no livro é grande: além de ter gravado com o André nossas conversas e, assim, ter conduzido a narrativa dele, fiz também a edição do texto. Portanto, é um trabalho que combina reportagem e literatura. Além disso – sempre em diálogo com o André, claro – fiz a seleção das cartas que incluímos no livro e escrevi um texto meu, que tenta entender o Massacre e o depoimento do André em relação à História do Brasil, e que é também uma história do nosso encontro e da nossa parceria. Minha contribuição no livro é: concepção, reportagem, organização e coordenação geral.

B.F: Quais cuidados você teve na hora de organizar o que seria publicado?
Bruno: Tivemos o cuidado de não revelar certos nomes de pessoas com quem não conseguimos contato. Mas o cuidado maior foi preservar a integridade da fala do André e as ideias dele. É uma parceria, o livro é dos dois, em coautoria.

B.F: Você tem algum outro livro publicado? Qual?
Bruno: ‘Sobrevivente André Du Rap’ é meu segundo livro. Este ano também lancei o meu primeiro livro, chamado “O fluxo silencioso das máquinas”, publicado pela editora Ateliê. É um livro de minicontos de ficção, bem diferente deste livro em parceria com o André. Mas os dois projetos se comunicam: no meu primeiro livro, a presença da cidade de São Paulo é enorme: a cidade é o personagem principal do “Fluxo”, é o lugar onde as narrativas acontecem e é o espaço onde a minha imaginação se solta. No “Sobrevivente”, a cidade também é importante: é onde tudo aconteceu e um lugar que o André quer conquistar com a imaginação e o trabalho dele.

B.F: O que representa pra você o lançamento desse livro. Sente-se um representante dos que morreram, suas famílias e também dos sobreviventes?
André: Uma grande vitória e um sonho. Hoje procuro ser o grito dos meus irmãos e irmãs que não podem ser ouvidos lá de dentro: todos nós somos sobreviventes. Nossos irmãos não podem ser esquecidos, nem transformados em números. A memória deles, enquanto eu viver, será lembrada, e a das famílias também. É o mínimo que eu posso fazer por meus irmãos de sofrimento.

B.F: É muito difícil conseguir emprego tendo passagem pela cadeia, o preconceito é muito grande. O que você tem a dizer sobre isso?
André: Todos os dias eu bato de frente com várias situações. O preconceito é muito grande. É como uma doença incurável, uma tatuagem: ex-presidiário não inspira confiança.

B.F: Deixem seus agradecimentos, uma mensagem para o público do Hip-Hop e os contatos para quem quiser o livro.
André: A todos os meus irmãos e irmãs no sistema, a todos os guerreiros e guerreiras e a toda nação Hip Hop: Racionais MCs, 509-E, Detentos do Rap, Bola Mais Um, MV Bill, Sabotage, Afrodimpacto, Rappin Hood, Sombra, Cabeça, Cris, Bastardo, W Jay (SNJ), Cascão, Boca, Milton Salles, Sequestro e Tribunal MCs.
Bruno: Queria agradecer a toda rapaziada do Hip Hop que vem fazendo uma revolução nas periferias das grandes cidades. Queria deixar aqui a minha palavra de admiração por esse trabalho e dizer pros rappers, DJs, Grafiteiros e Dançarinos que a poesia e a literatura estão aprendendo muito com eles. E para todo o povo da periferia – e para aqueles que moram no centro, mas que sabem que estamos todos unidos pelo sentimento de fraternidade – quero dizer que é preciso seguir acreditando no poder da palavra, ao mesmo tempo silenciosa (na escrita e na leitura), e aquela gritada no alto (no som do Rap).

Quem quiser comprar o livro, dá pra comprar diretamente com o André, diariamente em frente ao presídio do Carandiru, ou na loja 4P, nas Grandes Galerias da Rua 24 de Maio, centro de São Paulo.
Informações nos telefones da editora Labortexto: 0xx(11) 3825-7590 e 3664-7500. http://www.labortexto.com.br

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