‘As raízes do rap’, por Mumia Abu-Jamal

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Tradução para o português: Spensy Pimentel (CC)

17 de julho de 2001.

Quando o rap surgiu em cena, chegou sem convite, como aquele tio doido: gritalhão, descuidado, mas ainda assim era da família. Chegou como um filho bastardo: descarado, forte, ardente de cor, desafiando a todos a ignorá-lo. Apareceu ao mundo, mordendo e grunhindo e berrando até atingir a consciência.

Não podia ser mais indesejado, por muitos de mentalidade envelhecida. Quando, nos anos 80, se derrubou a ‘festinha da firma’ das grandes corporações, o rap avançou contra a névoa rosa, doce e confortável promovida durante uma época que hoje preferimos esquecer: a música disco. A disco era a eletrificação, a computadorização e a involução de uma música urbana em que se havia produzido uma tendência ao aumento da consciência social. A disco era a mercantilização do r&b e do funk, edulcorando seus rugidos e sua pegada.

Dubwise Festival.

Quando o reggae estava no auge, o lado B de muitos discos de sucesso trazia uma versão instrumental sem as letras [N.T.: o que era comum na Jamaica, com as versões ‘dub’ das canções de sucesso]. Alguns hábeis DJs jamaicanos começaram a recitar suas próprias rimas com essas batidas no fundo, nascendo assim o toasting. O reggae, o ska, o mento e o calipso já tinham desde sempre uma forte tradição de críticas ácidas (e bem humoradas) sobre o conflito entre os com-tudo e os sem-nada.

Esse espírito de crítica sociopolítica chegou aos afroamericanos que compartilhavam com os afrocaribenhos os bairros de Queens, Flatbush, Bed-Sty, South West Philly. Esse espírito foi absorvido por eles, e, para muitos adolescentes, parecia mais atraente que o champanhe melado da música disco. Era muito mais real.

Como já tinha acontecido com seus mais velhos e seus ancestrais,essa geração produziu e criou uma forma de música que tinha a ver com a realidade que viviam. Uma música crua, porque sua realidade era bruta. Se era raivosa, era porque a raiva é a resposta natural à repressão.

Essa música só começou a suavizar-se, quando, como ocorria com a música disco, se envolveram aí os interesses empresariais da indústria do disco, que trataram de apagar, tendo em vista seus interesses comerciais, tudo o que pudesse parecer polêmico, para assegurar, assim, uma audiência mais ampla, ou seja, um mercado consumidor maior.

Richard Wright.

Cada geração cria sua própria música. Anos atrás, o aclamado escritor negro Richard Wright escreveu, em “12 Milhões de Vozes Negras” (1941): “Nosso blues, jazz, swing, boogie-woogie são nossos hinos (spirituals) na selva de pedra, são nosso desejo de liberdade e de igualdade de oportunidades, uma expressão de perplexidade e desespero perante um mundo que nos apaga.

E quando essa cultura criou uma música para dar a voz aos esforços próprios de um povo, os interesses das corporações tentaram adoçar, homogeneizar e “desnegrizar” o que era uma criação cultural, com o propósito de convertê-la em mercadoria. A cultura não pode ser vendida, mas os objetos, sim. De onde vem a mestria oral mostrada pelos rappers? Nada aparece do nada.

Faz um século, durante os tempos da escravidão, os homens e mulheres jovens se comprometiam por meio de um ritual de paquera maravilhoso por seu engenho e doçura. O historiador John Blassingame, em seu “The Slave Community” (A Comunidade Escrava) conta como o povo seguia se socializando em meio à brutalidade da escravidão.

Ele: Minha querida senhorita, tens alguma objeção a que eu coloque minha cadeira ao seu lado e faça girar a roda de minha conversa ao redor de seu eixo de compreensão?

Ela: Não tenho nenhuma objeção a um cavalheiro que se dirige a mim de forma apropriada, querido senhor.

Ele: Minha querida senhorita, o mundo é um lúgubre deserto repleto de animais vorazes, e a senhora aprendeu a atravessá-lo.

Essa é a ‘brincadeira rap’ de um povo que se amava em um mundo que não os amava. Talvez tais raízes possam manter saudáveis os frutos que hoje vemos e escutamos.

Do corredor da morte, aqui é Mumia Abu-Jamal
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