As faces do empreendedorismo negro

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Analistas e empresários de diferentes áreas dão a sua opinião sobre uma realidade cada vez mais presente no Brasil: o empreendedorismo negro

Texto: Pedro Borges / Ilustração: Araújo /Alma Preta

A maior parte dos empreendedores brasileiros são afrodescendentes. É o afirma o estudo do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, Sebrae, publicado em 2015 com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD. Agora, 50% dos donos de negócio são pretos ou pardos, 49% brancos e 1% pertencem a outros grupos populacionais.

De acordo com o relatório, entre 2003 e 2013, houve um crescimento de 10% no contingente dos donos de negócio do país, passando de 21,4 para 23,5 milhões. Uma divisão do ponto de vista étnico-racial mostra que o número de pardos e pretos cresceu 24%, passando de 9,5 para 11,8 milhões. A categoria “outros” apresentou crescimento de 26%, passando de 200 mil para 253 mil, enquanto que o número de brancos caiu 2%, de 11,7 para 11,5 milhões.

Para Maria Ângela Souza, analista de Políticas Públicas do Sebrae, o aumento da classe média no Brasil e a maior distribuição de renda são alguns dos aspectos explicativos da situação, mas não são os únicos a desvendar o fenômeno “Outro fator importante foi o incentivo à formalização como microempreendedor individual (MEI), além do orgulho de se declarar negro, que vem crescendo no país”.

A lei complementar n° 128, de 19/12/2008, criou condições para que o trabalhador rotulado como informal possa se regularizar diante do mercado. A partir de uma taxa mensal de aproximadamente R$ 40,00, esse trabalhador consegue contribuir com a previdência social e se cadastrar de modo efetivo no Portal do Empreendedor. Segundo outra pesquisa do Sebrae, “Perfil do MEI”, em 2015, o Brasil já registrava 5,6 milhões de trabalhadores nessa modalidade.

Apesar da regularização do MEI e do aumento do número de donos de negócio afrodescendentes, as diferenças entre o empreendedorismo negro e branco são gritantes. Para Maurício Pestana, Secretário Municipal de Promoção da Igualdade Racial, SMPIR-SP, quando tratamos dos empresários negros, “estamos falando de cabeleireiros, de pessoas que montam uma pequena oficina de costura ou distribuidora de produtos para cabelo, e que muitas vezes precisam se virar sozinhas. Já o empreendedor branco em geral, por ter uma questão econômica e social mais elevada, já começa seu negócio em condição mais favorável e em pouco tempo poderá crescer, contratar funcionários e investir mais. Esta é a grande diferença”.

O Sebrae, no relatório da pesquisa sobre o perfil étnico-racial do empreendedor brasileiro, faz uma distinção entre o empresário por “conta-própria” e o “empregador”. O primeiro seria o sujeito que trabalha sozinho, ou tem a ajuda de um sócio. O segundo disponibiliza de uma melhor infraestrutura e pode então contratar funcionários. Entre os negros, 91% são empreendedores por conta própria e apenas 9% são empregadores. Já entre os brancos, os números são de 78% e 22%, respectivamente.

Para Juninho Jr., presidente estadual de São Paulo do PSOL e militante do Círculo Palmarino, é compreensível que a população negra procure saídas dentro de uma sociedade capitalista, na medida em que vive, muitas vezes, na marginalidade. “É natural que a população que tenha a maior vulnerabilidade, que tenha a maior dificuldade de empregabilidade, ela busque formas alternativas e hoje ditas empreendedoras para poder buscar a sua sobrevivência dentro da estrutura social capitalista”.

Por ser um reflexo da condição de vulnerabilidade da população negra, Roque Ferreira, membro no Movimento Negro Socialista, faz uma ressalva com relação ao empreendedorismo. “Se existe mais “empreendedores individuais negros”, isso não deve ser motivo de comemoração, ao contrário, revela que estamos lançados à própria sorte dentro de um modelo que a cada dia preda postos de trabalho. Ser empreendedor neste contexto é submeter-se na maioria dos casos ao trabalho precário”.

A pesquisa Sebrae sobre o “Perfil do MEI” mostra que 45% dos microempreendedores individuais são ex-empregados de carteira assinada e que hoje se lançam no mercado enquanto donos do próprio negócio.

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Foto: Alma Preta/ Exposições de arte durante a Feira Preta

FEIRA PRETA
A Feira Preta é um exemplo bem sucedido de afro-empreendedorismo. Criada em 2002, o evento teve a sua primeira edição na Praça Benedito Calixto, Pinheiros, zona oeste de São Paulo, e contou com 40 expositores. No ano de 2014, cerca de 16 mil pessoas estiveram na Feira e em 2015, no dia 7 de dezembro, no Pavilhão de Exposições do Anhembi, o grande público que compareceu ao evento contou com shows de Tássia Reis e Rael da Rima.

Adriana Barbosa, idealizadora da Feira Preta, conta que, apesar das mudanças durante a trajetória de construção da Feira, o ideal do evento se manteve. “Embora isso vá se transformando com o tempo, posso dizer que o fio condutor da Feira sempre foi a valorização da cultura negra, o fortalecimento da identidade negra e, principalmente, a promoção do afroempreendedorismo”.

Para ela, o evento é o amadurecimento de um mercado pensado para negras e negros e realizado por esses mesmos atores sociais. Adriana destaca ainda que a consolidação dessa ação pode promover algo caro à população negra no Brasil, a autonomia financeira. “O empreendedorismo tem uma conexão direta com autonomia financeira e, consequentemente, inserção social. Esta inserção confere às pessoas, de maneira geral, uma noção de pertencimento. E esta noção é muito cara ao povo negro, em razão do racismo estrutural que temos no Brasil, que “reserva espaços específicos” à população negra”.

Deste modo, o empreendedorismo e a melhoria da condição financeira da população negra poderiam ser uma saída para as mazelas sociais a que pretas e pretos estão submetidos, na visão de Maurício Pestana. “Não tenha dúvida. A partir do momento em que ocuparmos mais espaço nas universidades, na indústria, comércio e cargos de decisões, a desigualdade tende a reduzir”.

Roque Ferreira aponta para a impossibilidade de superar o racismo a partir do empreendedorismo e explica o perigo de se glamorizar a figura do empreender em uma sociedade forjada com base na meritocracia. “Se o racismo está diretamente vinculado ao modo de produção baseado na exploração da força de trabalho, a “glamurização” do tal empreendedor individual não muda em nada as relações raciais, ao contrário, podem hiper valorizar a meritocracia de se obter sucesso como empreendedor individual, dar um salvo conduto para o processo de exploração, individualizando as relações sociais de produção e todas suas consequências individuais e coletivas”.

As relações raciais de poder ainda continuam muito desproporcionais. No ano de 2015, das 381 empresas listadas na Bovespa, a bolsa de valores de São Paulo, nenhuma tinha um CEO negro. No campo político, as desigualdades persistem. Um exemplo é a existência de uma única ministra negra, Nilma Lino Gomes, Ministra da Cidadania. No plano social, segundo o Mapa da Violência publicado em 2014, de 2002 a 2012, o número de jovens brancos assassinados caiu de 36,7% para 22,8%, enquanto o de negros subiu de 63% para 76,9%. Mapa da Violência de 2015 apontou também crescimento de 54%, entre 2003 e 2013, do número de mulheres negras assassinadas, enquanto a taxa de homicídio de mulheres brancas caiu 9,8%.

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Dos 1.826 bilionários do mundo, 11 são negros. Michael Jordan é um deles, diz a Forbes

CASO AMERICANO
Nos EUA, o empreendedorismo negro é uma prática consolidada. Adriana Barbosa encara a situação americana como um exemplo a ser seguido. “As negras e os negros americanos souberam construir um mercado que movimenta quase a metade do PIB do nosso país. Isso certamente está relacionado ao quanto são fortalecidos no que diz respeito à identidade, ao orgulho preto. E também tem relação direta na maneira como lidam e combatem o racismo por lá”.

O diferente caminho para a construção do capitalismo no Brasil e nos EUA é um fator a ser levado em consideração na análise e comparação entre os dois modelos. Maurício Pestana explica que os EUA são um dos países precursores desse modo de produção e que lá, devido à forte segregação racial, um mercado paralelo entre os negros foi necessário para a sobrevivência desta comunidade. “E essa diferença cultural, histórica e econômica entre brancos e negros nos EUA, acabou contribuindo para o desenvolvimento econômico da população negra. Já no Brasil, isso não acontece. A sociedade brasileira é miscigenada, espalhada e possui outras interfaces raciais que dificultam um maior desenvolvimento dos negros no mercado”.

Lá há também uma agência dentro Departamento de Comércio americano, MBDA, responsável por incentivar grupos minoritários a desenvolverem-se de modo econômico inclusive por meio de exportações. Maria Ângela Souza, analista de Políticas Públicas do Sebrae, enfatiza como “essas empresas contribuem com mais de US$ 1 trilhão da produção econômica anual americana e são diretamente responsáveis por quase seis milhões de empregos nos EUA. A MBDA trabalha para que as empresas de minorias ganhem escala e produtividade, aumentem suas receitas e conquistem novos mercados”.

O Sebrae tenta algo semelhante no país, por meio da oferta de ajuda estratégica ao pequeno empreendedor para que ele inclusive compita no mercado internacional. “Neste sentido, uma grande oportunidade se apresenta para os donos de pequenos negócios negros que buscam conquistar novos mercados fora do país e no continente africano”.

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Protestos na cidade de Baltimore, nos EUA, depois da morte de jovens negros por policiais brancos

RACISMO EUA
Mesmo diante de um forte mercado voltado para a população negra, os afro-americanos têm se deparado com uma série de casos de racismo. Além das pichações nas universidades, a comunidade negra tem enfrentado forte repressão policial, como em Baltimore, quando um inocente jovem negro foi executado por um policial branco, e pela forte presença de negros nos presídios daquele país.

“Nos EUA, o que aconteceu foi a formação de uma elite negra. Você tem uma parcela da população negra que ascendeu, que tem uma maior visibilidade, mas você tem em um país onde a população negra não chega a 20% e compõe 70% da população carcerária”, explica Juninho Jr. Para ele, o sistema capitalista está intimamente ligado ao racismo e, por isso, é preciso destruir esse modo de produção para se alcançar a liberdade do povo negro. “Enquanto houver capitalismo, não é possível se destruir o sistema racista, porque faz parte da engenharia do desenvolvimento do capitalismo no Brasil a questão da exploração sobre determinado povo, sobre determinada etnia”.

Brasil, capitalismo e o projeto Lulo-petista
“O sonho da inclusão e da oportunidade para todos se mostrou uma proposta para a sociedade que a inerência do próprio capitalismo jamais permitirá que de fato a gente possa viver numa sociedade igualitária, fraterna e libertária”, é o que afirma Juninho Jr. No Brasil, de certa forma, o projeto político do Partido dos Trabalhadores tentou solucionar os problemas sociais da nação sem a ruptura com esse modelo. “Você criou uma grande expectativa de uma grande mudança, de uma grande ascensão social numa perspectiva individualista e esse modelo mostrou os seus limites”.

Além dessa inclusão ser baseada em uma política econômica de facilitação do acesso ao crédito, fortalece-se a perspectiva de saída individual para o problema do povo negro, tido como estrutural. Juninho Jr. ilustra esse entrave com a seguinte situação. “Então, você começa a ganhar um pouco mais, você não está mais preocupado com o posto de saúde do seu bairro, você vai lá e entra pro convênio médico e vai para o sistema privado”.

A fragilidade desse projeto de inserção econômica aparece quando há um período de recessão e crise. Dentro dessa perspectiva e conjuntura, o próprio Sebrae alerta para a não probabilidade de diminuição das diferenças econômicas entre empresários negros e brancos. “Em um contexto de recessão, é pouco provável que essa trajetória se mantenha, pelo menos no ritmo verificado até 2013/2014”.

Essa situação, de acordo Juninho Jr., é inerente à política petista e à tentativa de criar um governo de conciliação, sem mexer nos privilégios das elites. “Só que no momento que o cabo aperta, o governo não tem dúvida de que lado ele está, e ele acaba privilegiando aqueles que estão no andar de cima, em detrimento dos que estão no andar de baixo”.

Empreendedorismo, genocídio e encarceramento em massa
O período analisado que comprova o aumento considerável de empreendedores negros é o mesmo de crescimento nos números de encarceramento e homicídio da população negra. Sobre essa correlação, Maria Ângela Souza, analista de Políticas Públicas do Sebrae, acredita que “são situações distintas e não vemos que haja conexão entre elas”.

Para Maurício Pestana, essas taxas de homicídio e encarceramento são reflexos do avanço conservador dos últimos anos. “Há um recrudescimento por parte dos mais conservadores, não só no Brasil, mas no mundo, com relação aos negros, estrangeiros e a qualquer pessoa dos grupos ditos historicamente excluídos, que ocupem uma relação de destaque”.

Adriana Barbosa, idealizadora da Feira Preta, prefere destacar o aumento da violência e do encarceramento como reflexo do racismo estrutural. “A inserção no mercado é muito importante, fundamental. Mas, desvinculada de outras iniciativas, que corrijam a sociedade dos efeitos de processos históricos que nos marginalizam e estigmatizam, o empreendedorismo não será suficiente”.

A natureza do capitalismo brasileiro e o processo de acumulação de riquezas no país estão fundados na exploração do povo negro e nos 350 anos de escravidão, de acordo com Juninho Jr. Segundo o membro do Círculo Palmarino, esse processo chegou ao ponto de 0,2% da população deter 50% da riqueza no país. Por isso, “ou você de fato garante um processo de distribuição de riqueza, você garante um processo de empoderamento real dessa população, ou nós vamos ter uma parcela ascendendo, formando uma espécie de uma elite negra, em detrimento de uma grande parcela da população pauperizada”.

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