ACERVO BF | Entrevista com Jocenir, autor da música e do livro ‘Diário de um detento’

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Josemir José Fernandes Prado, conhecido como Jocenir ou Miro, faleceu em 01 de dezembro de 2021. Nossos mais sinceros sentimentos de pesar à família, amigos e admiradores. O dia dessa entrevista é inesquecível, ele saiu do interior de SP e veio ao nosso encontro, no Parque da Água Branca (zona oeste de SP). Muito humilde, ficamos horas conversando, uma pena que perdemos as fotos desse dia. Mesmo sendo requisitado naquele momento por grandes emissoras de TV, rádios, revistas e jornais, com toda sua humildade nos deu a mesma atenção e nos presenteou com o livro. (a foto em destaque foi feita com imagens tiradas do Instagram do Jocenir, foto de Fábio Prado)

www.youtube.com/bocadaforteJocenir, autor da música e do livro ‘Diário de um Detento’, fala sobre o livro e a vida na prisão em entrevista EXCLUSIVA para a Bocada Forte. O autor adianta também trechos de algumas composições que entregou a Mano Brown em outra ocasião. Quem gostou da música “Diário de um detento” dos Racionais, não pode deixar de ler o livro. Se você não está encontrando nas livrarias, no fim da entrevista há um número para pedidos por telefone. Por enquanto, entenda melhor como surgiu a ideia do livro, a letra da música e saiba mais sobre o autor e a sua passagem pela cadeia.

Bocada Forte: Quando e como surgiu a ideia de fazer o livro e quanto tempo demorou?
Jocenir: Eu não tinha a intenção de escrever esse livro. Quando eu fui transferido para penitenciária de Avaré (SP), eu nem tinha tanto estímulo para continuar escrevendo. Como a própria penitenciária é muito entediante e eu não conseguia dormir, trocava o dia pela noite. Comecei a escrever tudo que tinha acontecido comigo desde o início da prisão e, durante um ano e meio, o período em que fiquei em Avaré, surgiram os rascunhos que deram origem ao livro.

B.F: Antes do Mano Brown te procurar para pegar o que seria a letra da música, qual era a sua visão sobre o Hip-Hop?
Jocenir: Conhecia muito pouco porque eu sou de outra geração. Tenho 50 anos e sou da geração do rock. Eu conheci o Rap na prisão, porque os companheiros de cela gostavam desse tipo de arte musical. Então, eu tinha que ouvir porque tocava na cela o dia inteiro. E eu fui pegando a manha do Rap, percebi que sempre era uma história com princípio, meio e fim. As músicas não eram melodiosas, não eram românticas, mas cada uma contava uma história e comecei, até mesmo por brincadeira, a fazer uma série de manuscritos que deu origem à letra “Diário De um detento”. Os fatos iam surgindo e eu ia retificando sempre, conforme vinham as ideias e do meio da letra em diante eu introduzi a rebelião de 1992. Peguei várias opiniões de sobreviventes e consegui fazer deles um só personagem. O começo é o cotidiano da cadeia, o que era há 10 anos atrás e o que vai ser daqui 10 anos.

B.F: Depois do Brown ter feito a música, a sua relação com os presos mudou?
Jocenir: Não, porque quando a música foi lançada eu estava muito próximo da liberdade e já estava na penitenciária de Avaré. Quando o Brown apareceu no Carandiru pra pegar as letras eu já tinha um certo nome dentro do presídio, devido àquilo que eu escrevia: cartas e poemas que os presos pediam para mandar para os parentes, familiares e namoradas. Então, não alterou em nada. Se eu tivesse ficado no Carandiru, talvez houvesse uma mudança para melhor mas eu já estava em véspera de sair da prisão.

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 B.F: Como está a receptividade do livro?
Jocenir: As pessoas tem se comovido bastante com o livro, está tendo uma repercussão muito grande. Primeiro por não ser ficção e, também, por eu ter tirado qualquer detalhe que pudesse sugerir ficção. É a realidade que conta uma história e, dentro dessa história, eu conto várias outras. E é uma realidade totalmente diferente daquilo que as pessoas estão acostumadas.

B.F: E na detenção, alguém leu o livro?
Jocenir: Sim, eu mandei alguns livros pra lá e alguns companheiros que estão na rua já me ligaram, dando os parabéns. Muitos deles presenciaram essas histórias, principalmente na chegada do meu irmão. Os caras queriam matá-lo e eu mobilizei quase metade da detenção. Eu não sabia que tinha conquistado a simpatia de tanta gente até aquele dia, até cara que eu achava que não ia com a minha cara tava do meu lado. “É teu irmão, tiozinho?”. Eu disse, “é”. “Então tô lado a lado”.

B.F: Você está acompanhando o julgamento do coronel Ubiratan (coronel da PM que comandou o massacre de 1992)?
Jocenir: Estou sim, eu fui ontem (21/06/01) ao Fórum, vou hoje de novo. Não é tanto pelo livro, mas é que a imagem da surra que eu levei da PM depois do fim de uma rebelião na cadeia de Barueri é uma coisa que me vem até hoje. Se eu não me lembro de alguns fatos da cadeia, em compensação desse eu não consigo esquecer.

B.F: Você vai depor?
Jocenir: Não, eu vou acompanhar porque tem alguns conhecidos. Ontem, descobri que dois presos que tiraram cadeia comigo e os irmãos deles morreram no massacre e eu não sabia.

www.twitch.tv/bocadaforteB.F: E a divulgação do livro, como está?
Jocenir: Eu montei uma distribuidora, fiz um 0800 na minha casa mesmo e consegui um acordo com os correios pra fazer mala direta. Tudo que eu tô fazendo tá sendo patrocinado, porque eu não tenho dinheiro pra nada. Meu filho tinha feito um site, daqueles gratuitos, e agora uma empresa tá me patrocinando e vai fazer outro. Eu tô correndo atrás de tudo, a editora não colocou assessoria de imprensa, não colocou departamento comercial, não tem dinheiro pra me adiantar, não quer que eu faça porra nenhuma. O livro vendeu cerca de 3.000 exemplares em 20 dias. Para a realidade brasileira é muito bom, em Buenos Aires (capital da Argentina) há mais livrarias que o Brasil inteiro. Na cidade onde eu moro, São Manoel, por exemplo, não tem livraria… por isso é bom ter o 0800.

B.F: E a sua primeira aparição na mídia foi na 105?
Jocenir: Não, eu fiz outros lugares, mas o que me deu o impulso mesmo foi o programa da Gabi, que arrebentou. Quando eu fizer o Jô Soares vai ser mais forte ainda. Mesmo ele não sendo o que ele era no SBT é muito forte, o cara que escreve um livro e não vai no programa dele é a mesma coisa que ir a Roma e não ver o Papa. E é Rede Globo, né? Tem uma matéria que eu fiz também para o Canal Futura, da TV a cabo, mas não sei quando vai pro ar. Fiquei cerca de uma hora e quinze falando. Outra coisa: já tem cara interessado em fazer um filme baseado no livro.

B.F: E os direitos autorais pela música, você recebe?
Jocenir: É, eu recebo pelo Sicam. Tenho a carteirinha e recebo por execução da música em Rádio e TV. Por vendagem, tô na expectativa. Por enquanto recebi um vale.

B.F: O Brown mudou muita coisa daquilo que você tinha escrito?
Jocenir: Ele mudou um pouco para poder dar o ritmo do Rap.

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B.F: E era daquele tamanho mesmo?
Jocenir: Era. Tem uma outra letra que eu dei pra ele, quando ele foi me visitar em Avaré, que chama “A liberdade está no ar”. Ele disse que eu ia ter uma surpresa: ela é maior que “Diário de um detento”. Conta a história de um cara que ficou um tempão na cadeia e depois se assusta com o que vê na rua; sempre cutucando na rebelião de 1992. Tem um trecho que é assim – “no metrô bem desolado passo em frente a detenção / no meu peito uma amargura uma dor no coração / me lembrei daqueles corpos espalhados pelo chão / naquele 02 de outubro o dia da rebelião”. Tem uma outra letra que eu dei pra ele chamada ‘Minha agonia”, que fala sobre um usuário de crack que tinha uma vida boa e perdeu tudo por causa da droga. Roubou, matou e foi pra cadeia. De lá de dentro, num momento de lucidez, ele manda um recado pra quem tá fora. Tem um trecho assim – “bombeta, camiseta, calça jeans, tênis da hora / tinha casa e família e até ia pra escola / frequentava os clubes e bailes da periferia / vivia uma vida boa era tudo que eu queria / até que de repente uma droga apareceu” – e vai embora. Tem uma parte em que eu coloquei assim: “…até cantor famoso caiu nas malhas dela / trocou a classe alta pelas bocas da favela”, que é aquele Rafael. Fiz isso aí lá em Avaré.

B.F: Nas cadeias pelas quais você passou, havia outros presos que desenvolviam algum tipo de arte?
Jocenir: Havia. Tinha um cara em Avaré que era sensacional. Ele se chamava Ezequiel, tirava 27 anos de cadeia e escrevia umas letras lindas mesmo. Eram mais ligadas ao samba, mas era uma melhor do que a outra. Mas não tem só talento musical, tem todo tipo de talento, tem cara que pinta cada quadro lá dentro que você não acredita que foi feito por um preso. Só que eles não tem oportunidade de mostrar isso. O próprio Hip-Hop mostra isso, você vê pelos grupos de Rap que fazem sucesso.

B.F: E sobre as facções, o que você tem a dizer?
Jocenir: Os bairros não tem a associação de moradores do bairro? As facções nada mais são do que as associações dos moradores da cadeia e hoje elas estão presentes no país inteiro. Esses dias apareceu até um site do P.C.C hospedado em um provedor americano. E a gente não pode analisar o que acontece na prisão pelo que a gente entende da moral em uma sociedade livre, porque lá o código moral é outro, é outro tipo de sociedade. Às vezes, o que cobram dos presos coisas que eles nem conhecem. Então dizem que eles não tem condições de voltar ao convívio social, mas eles nunca tiveram um convívio social. Como alguém pode voltar pra onde nunca esteve? Eles sempre viveram à margem quando estavam livres. O poder público precisa investir a longo prazo nas camadas mais pobres, pra que essas crianças que estão hoje na periferia não venham parar na cadeia. Quando você sai da cadeia, não arruma emprego e a única saída é o crime.

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Eu, que tenho uma estrutura familiar, formação cultural, informação, fiz 2 anos de faculdade de direito, tô há 2 anos em liberdade batendo cabeça, não arrumo emprego imagine um cara que não tem nada disso, tem que voltar pro crime. Outra coisa: tem uma preocupação que eu tenho quando se fala de facções, P.C.C e tal que alguns jornalistas, às vezes, distorcem um pouco. Eu escrevi o estatuto de uma facção, o C.D.L., mas a verdade é que eu tenho acesso a todas as facções tanto é que as mulheres do pessoal do P.C.C me ligaram dando os parabéns, porque elas ouviram a 105 e gostaram do meu depoimento. O pessoal de Sorocaba que é o C.R.B.C, inimigo mortal do P.C.C., ligaram pra mim também dando os parabéns pelo que eu falei na rádio. Então eu não faço parte de nenhuma delas, porque eu não sou bandido. Na cadeia, bandido é aquele que tem lastro no crime. Do contrário, é vacilão e em qualquer facção só entra bandido. Então, o meu negócio era escrever da mesma forma que eu escrevi o estatuto do C.D.L., poderia ter escrito o do P.C.C., ou de qualquer outro. Eu tinha o respeito de todos porque quando eu escrevia não me perguntava se era preto, branco, crente, católico, ou se era dessa ou daquela facção.

B.F: E como você adquiriu esse respeito?
Jocenir: Através das cartas que eu escrevia para os presos, porque eu não cobrava nada. Eu fazia pra me manter ocupado. Às vezes, a visita chegava e perguntava: quem escreveu a carta, letra bonita e tal, quem foi? Aí eu conhecia as famílias, pegava amizade e virava praticamente um familiar. As mães e as mulheres traziam as comidas que eu gostava e eu até distribuía, porque era muita coisa. Nos 2 anos em que eu fiquei na detenção, se eu comi duas vezes a comida da cadeia foi muito. E outra: eu trabalhava no prontuário e tinha trânsito, não tinha portão pra mim. Eu ficava até umas nove da noite nos pavilhões e fazia uma série de correrias, só não levava droga e arma, foram as coisas que eu sempre evitei. O restante, várias fitas de responsa, os caras confiavam pra eu levar pros manos nos outros pavilhões. E eu tinha o respeito não só dos presos, mas também dos funcionários.

B.F: E você não guarda rancor do estado, ou da P.M., não tem vontade de processar o Estado?
Jocenir: Não, eu acho que tinha que passar por tudo isso. Se você tira uma cadeia por uma coisa que você fez, tudo bem. Você tem que tirar e ficar quieto. Mas, no momento em que eu fui preso com uma carga roubada que não era minha, fiquei 4 anos quando pela minha condenação, sendo primário, com 1 ano eu já deveria estar na rua. Fiquei 4 anos e alguns dias tendo bom comportamento e não saí. Teve preso com condenação e artigos mais pesados que o meu que saíram antes de mim. Tudo isso tinha que acontecer pra alguma coisa futura, talvez nem seja o livro o melhor que aconteceu, o livro pode ser só um degrau do que ainda pode acontecer. E não guardo rancor, guardo fatos que eu tento eliminar e, se não conseguir eliminar, que pelo menos a sociedade tome conhecimento da arbitrariedade da polícia. E lá dentro eles são tudo: a lei, a justiça, os nossos algozes. Depois que eles terminam uma rebelião torturam, humilham e espancam. Eu conto no livro uma coisa que me perguntam: “quem contou que preso comeu merda?”. Ninguém contou, eu comi, eu tava lá.

B.F: Qual era a sua opinião sobre a cadeia antes de tudo isso?
Jocenir: A mesma opinião errada que a sociedade tem hoje. O trecho da música em que eu falo que parece um zoológico, era a visão que eu tinha antes de ser preso. Eu estive dos dois lados, já estive na vitrine e na calçada. Eu era bem de vida com 19 anos, já tinha carro zero em 1978, ganhava o equivalente a 7.000 dólares por mês… A minha opinião mudou, os meus valores mudaram. E, quando eu saí, fui visitar uns amigos na periferia e, então, eu entendi porque eles são o que são. Eu comecei a ver de onde eles saíram, tem até uma matéria que eu mandei pro Ferréz, que ele vai colocar em um novo livro, que terá a participação do Edi Rock e várias personalidades do Hip-Hop. Eu falo que a justiça é um caso de polícia, eu sugiro que os juízes e desembargadores, pelo menos uma vez na vida, peguem seus carros e vão conhecer a periferia. Subam uma viela, entrem numa favela, vejam a falta de lazer, de asfalto, o esgoto a céu aberto. Talvez ele tenha mais sensibilidade na hora de julgar.

B.F: E qual o maior inimigo do preso?
Jocenir: Eu costumo dizer que o maior inimigo do preso é a própria carga emocional dele. No começo, eu chorava pra caramba o tempo lá não passa: quatro dias parecem 40 anos. Tinha um companheiro que eu gostava muito, o Sapatão, que me consolava. Ele dizia: “não deixa a cadeia te tirar, tira ela você”. Se o preso deixar a carga emocional dominar é fogo. É aí que muitos caem na droga, tem cara que é temido aqui fora quando cai lá dentro não agüenta, cai na droga e perde o respeito.

B.F: E a sua intenção com o livro, qual foi?
Jocenir: Como eu disse, nem pensava em fazer o livro. Conheci o Carlos Eduardo (jornalista), ele leu e disse que eu tinha escrito coisa boa. Então, já que surgiu a oportunidade e tá dando certo, eu vou tirar algum proveito, tentar ajudar os companheiros que ainda estão lá dentro e abrir os olhos da sociedade pro assunto ou, pelo menos, fazer eles pensarem diferente. Se eu conseguir fazer isso com meia dúzia de pessoas, já é alguma coisa.

B.F: E depois que você começou a aparecer na mídia o Estado te procurou?
Jocenir: Não, porque eu não tô dando espaço pra isso e não tô denunciando ninguém.

B.F: Você quer agradecer alguém ou dizer mais alguma coisa?
Jocenir: Primeiro, o Carlos Eduardo. Sem ele não existiria livro. O pessoal da editora que, apesar de tudo, acreditou no projeto e todos que me apoiaram e me protegeram atrás das muralhas, tanto os que ainda estão lá, os que já saíram e os que estão em outro plano, meu coração está com eles. E mais uma coisa quanto as facções, aqui fora tem várias facções maquiadas em forma de partido que matam com a caneta, várias pessoas morrem de fome, nos hospitais por causa do dinheiro que eles roubam. Então as facções aqui de fora não são melhores do que as da cadeia, tá aí o Lalau e o Jader Barbalho pra provar.

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Contato para quem quiser adquirir o livro ou entrar em contato com o autor sobre palestras:
Telefone: 0800.770.0334
E mail: jocenir@diariodeumdetento.com.br
Site: http://www.diariodetentosite.hpg.com.br
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