O Perdão de Iolanda
ESPALHA --->
Logo cedo meu corpo já dá sinais de cansaço. Mal abro os olhos e já estou com aquela sensação ruim. Não importa se tenho oitenta anos ou menos, nessa altura da vida a única coisa, que talvez, ainda funcione direito em mim é a dor. Sempre à sinto.
Hoje, acordei com uma dor no meu braço esquerdo. Parei para pensar de onde ela poderia ter surgido e para a minha surpresa, lembrei! Há uns dez anos tomei um porre com alguns amigos aqui do asilo. Queríamos fazer uma festa de arromba. Haviam chegado algumas senhoras, muito animadas, e eu sempre gostei de impressionar as mulheres, entende?
Não deu certo. Marcelino morreu. Augusto entrou em coma e assim ficou até o ano passado. O pobre do Tonhão teve um AVC e hoje passa seus dias numa cadeira esperando o seu fim. Nunca mais quis fazer festa, pelo menos, essas de arromba.
Passei minha vida toda tentando conquistar o coração das mulheres. Hoje nem mesmo meu coração eu consigo manter batendo direito
As enfermeiras são bacanas, mas nunca nos dão banho. Essa tarefa árdua cabe aos enfermeiros. Parece que houve algumas reclamações por causa do Tonhão. Aquele era safado! Adorava passar a mão nos seios das enfermeiras. Mas que culpa ele poderia ter? Ah, mulheres! Se existe um sentido na vida, são elas. Hoje ele não precisa mais das mulheres, somente de um regador. Vive olhando para a janela. Teve um AVC, deveria ter morrido, mas a espírita que vem aqui me disse que ele precisa aprender algumas coisas antes de desabitar este mundo. Eu acho que ela é louca. Sinto pena do Tonhão.
Passei minha vida toda tentando conquistar o coração das mulheres. Hoje nem mesmo meu coração eu consigo manter batendo direito. Não sou diferente do Tonhão, nem do falecido Marcelino ou mesmo do vegetativo Augusto. Talvez meu maior problema seja justamente a única coisa que me resta: a memória.
É engraçado. Envelhecer é exatamente como eu imaginei que seria, ainda bem que não estou sozinho nesse barco. Acordo todos os dias com dor em alguma parte do corpo. Preciso de remédios para comer, para os rins, para o fígado, para o coração, para o reumatismo, para a dor, para dormir. Se caminho demais tenho falta de ar. Se não caminho, meu corpo pode atrofiar, mas minha mente… Ah, a minha mente! Essa funciona muito bem…
Do que eu estava falando mesmo? Ah! Ao longo dos anos criei uma espécie de memória seletiva. Tento esquecer as coisas ruins da vida e me apego as coisas boas. Mas esta manhã me dei conta de que sou um homem com poucas memórias boas, não sei bem porque…
Tenho dois filhos e são totalmente estranhos para mim. Não lembro a última vez que estiveram aqui. É engraçado, minha memória é excelente. Lembro quando conheci minha mulher – que Deus a tenha! Aqueles olhos negros… Porto Alegre era muito mais romântica naquela época.
Eu trabalhava tanto, não tive tempo de ver meus filhos crescerem. Talvez isto explique porque eles não estão me vendo envelhecer. Quando minha esposa morreu, vítima de um câncer, meus filhos acharam que eu era o culpado e, como castigo, me jogaram aqui. Engraçado isto. Trabalhei uma vida inteira, dei a eles as melhores roupas, os melhores brinquedos, estudaram nas melhores escolas e meu castigo é envelhecer sozinho.
Hoje acordei com uma dor no braço esquerdo, mas acho que já falei sobre isto. Quando eu tinha quarenta anos me apaixonei por uma secretária. Ela era linda… Um par de coxas, uma bunda… Adorava dormir e acordar ao meu lado. Huuum… Ainda consigo lembrar de quando minha mulher descobriu e começou a beber.
A secretária era bem mais nova do que Iolanda – minha mulher e mãe dos meus filhos. Lembro-me de um dia chegar em casa. As crianças já estavam dormindo. Iolanda estava sentada e segurava uma garrafa de vinho na mão. Na outra, segurava uma cartela de remédios. Me ameaçou dizendo que se mataria se eu não largasse aquela mulher. Disse que eu nunca mais a veria, nem ela, nem meus meninos. Tirei a garrafa da sua mão. Ela esperneava, tinha muita raiva, mas não de mim. Tinha raiva da vida que ela levava. Tinha raiva da juventude da secretária, das suas coxas tornadas, da sua bunda enorme e principalmente do poder que a secretária exercia sobre mim.
Lógico que me senti culpado. Mas culpa? Culpa não serve de nada! Culpa não traz ninguém de volta
Nunca saí de casa, mas nunca estava lá. Numa tarde de outono o telefone tocou, minha secretária atendeu, entrou correndo na minha sala e me disse: sua esposa faleceu. Tive um choque. Corri pra casa e lá estavam meus filhos e, na cama, Iolanda morta. Os olhares fulminantes me atingiram com tamanha raiva que eu nem consegui chorar. Fiz algumas ligações, tentei me aproximar, mas já era tarde. Ali, perdi toda minha família. Lógico que me senti culpado. Mas culpa? Culpa não serve de nada! Culpa não traz ninguém de volta.
Depois do enterro, meus filhos nunca mais me ligaram. Vendi minha parte da empresa e a minha secretária se apaixonou por um motorista e me deixou sozinho. Durante três anos vivi sozinho dentro daquela casa maldita, com fotos, com móveis e todas as lembranças que me torturavam a cada segundo. Um dia acordei e liguei para meu filho mais velho. Ele atendeu e eu lhe pedi desculpas. Ele desligou antes que eu terminasse a frase.
Descobri a duras penas que minha vida estava chegando ao fim. Foi então que eles se reuniram e decidiram vender a casa e, para isso, precisavam se livrar de tudo que havia nela e isso significava que eu teria que sair também. Foi assim que eu vim parar aqui.
Não quero recomeçar nada. Não tenho mais tempo pra isso. Queria talvez lembrar alguns momentos, mas acredito que, ou não existam, ou minha velha memória já não é mais a mesma. (risos)
Do que eu estava falando mesmo? Melhor eu me deitar. Meu braço está doendo muito, assim será melhor, vou ficar olhando para o teto. Talvez a dor diminua. Talvez seja melhor eu chamar a enfermeira. Me sinto tão cansado, sinto um sono tão grande…
Iolanda! Tu por aqui? Sei que vai parecer estranho, mas… Tu pode me perdoar? Não! Eu imaginei…
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