1999 | 20 anos depois, a força de uma cena traduzida em álbuns e singles clássicos

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Já fiz algumas listas de melhores do ano. Já votei em algumas listas e durante pelo menos três anos fui um dos jurados do Prêmio Hutúz. Ultimamente tenho visto listas pipocarem por aí, aos montes, a maioria delas totalmente injustas e com critérios muito duvidosos. Listas que têm como base visualizações, curtidas e compartilhamentos, merecem zero credibilidade. Dito isto, resolvi criar a minha lista com dois critérios: falar sobre discos lançados em 1999 (ano de fundação do Bocada Forte) e/ou que eu tenha o vinil ou o CD.

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Há 20 anos atrás tudo era lançado em CD, vinil e até fita cassete. Os recursos da maioria dos grupos de Rap eram infinitamente inferiores. Muitas produções eram feitas em cima de instrumentais praticamente prontos, com alterações minímas e algum reforço nos bumbos e caixas. Ainda assim, foi o início de uma cena que já estava muito fortalecida e vale ressaltar, era uma cena! Não eram três ou quatro grupos em destaque, eram dezenas de grupos fazendo shows todos os finais de semana e principalmente nas quebradas. Racionais era a linha de frente, mas tinha também Doctor MCs, Sistema Negro, RPW, Filosofia de Rua, APC 16, Consciência Humana, De Menos Crime, GOG, Câmbio Negro, Da Guedes, Xis, DMN, Thaide e DJ Hum, RZO, MV Bill, Visão de Rua, Potencial 3 e mais algumas dezenas de grupos. Esta cena começou a ser literalmente destruída entre 2008/2009, são vários os motivos que levaram a esse desmonte, mas é pauta pra outra hora.

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Um grande exemplo da fortaleza que era a cena há 20 anos atrás, são os representantes do Rap de outros estados além do eixo Rio-São Paulo. Entre 1999 e o começo dos anos 2000, a gravadora Trama fez contrato para gravação e/ou distribuição dos álbuns de mais de 10 grupos de Rap e também coletâneas. Estavam entre eles: Camorra, Da Guedes, SP Funk, Thaíde & DJ Hum, Apocalipse 16, Câmbio Negro, DJ Marcelinho, Parteum, Mizuri Sana, Rappin Hood, Potencial 3, Criminal D… E, se lembrar de mais algum, acrescento depois, pois a escrita segue sem consultar o atual “pai dos burros”. Alguém consegue imaginar isso? Uma gravadora nova, com toda estrutura necessária, assumiu compromisso com mais de 10 grupos de Rap e entre erros e acertos, mais acertou do que errou. Embora tenha quem discorde, o fato é que a força da cena naquele momento fez com que grandes, médias e pequenas gravadoras procurassem outros grupos – aconteceu com Xis, Doctor MCs e Pavilhão 9, por exemplo.

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O primeiro disco dessa lista é a coletânea ‘Rima Forte: Novos Colaboradores da Cultura Hip Hop Mandando Suas Ideias’, lançada pelo selo Brava Gente, de Thaíde e DJ Hum, mas também com parceria entre o selo Matraca e a gravadora Trama. Essa coletânea tem tudo a ver com o Bocada Forte, já que o grupo Urbanos MCs, que motivou a criação do BF, está nela com a faixa “Eu só quero saber de curtir”.

Assista ao vídeo filmado, produzido e editado pelo site Bocada Forte

Nesse disco também estão SP Funk, Rua de Baixo e o grupo Zona Proibida, para ficar nos mais conhecidos. Todos os grupos já vinham de uma caminhada longa no Rap, já tinham suas músicas tocadas em rádios comunitárias e faziam apresentações nas quebradas, abrindo shows de grupos mais conhecidos. São 12 faixas, onde foram selecionados 11 grupos, cada um gravou uma música e a última foi um instrumental do DJ Hum. Vale a pena dar um play e sentir o clima do que rolava antes da virada do século.

Ouça a coletânea

Também lançado pela Trama e o selo Matraca, o álbum ‘5 Elementos’, do grupo Da Guedes é um clássico do nosso Rap. Eles são o grupo mais conhecido do Rio Grande do Sul, em 1997 tinham lançado uma demo intitulada ‘A Casa Não Cai’ e em 1999 vieram com o álbum. Com a produção do DJ Hum e diversas participações, entre elas Marcelo D2, Tonho Crocco e Piá. Sem esquecer da participação de Paula Lima no refrão da clássica “Minha cultura (Hip Hop)”. A formação do grupo, ou melhor, os 5 elementos eram Nitro G (Nitro Di), Baze, Negro X e DJ Dee Ley, com César “Padeiro”, hoje colunista no BF, na percussão. Esse tenho em CD e vinil e entra facilmente em qualquer lista de melhores discos de Rap brasileiro.

Ouça o álbum

O RZO ficou conhecido nos anos 90 com a música “Pobre no Brasil só leva chute”, lançada na coletânea ‘Rappers & Irmãos’ e algum depois incluída no álbum ‘Vida Brazileira’, de 1993. O grupo ficou bastante tempo sumido, mas retornou com força total em 1999 com o clássico álbum ‘Todos São Manos’, primeiro lançamento da Cosa Nostra sem ser um disco do Racionais. Lançado em CD e vinil duplo, traz 16 faixas, entre introdução, músicas e interlúdios e algumas participações importantes, como Edi Rock, Rappin Hood, Thaíde e GOG. A partir desse disco eles revelaram para o Rap a Negra Li, que teve sua voz imortalizada na música “Paz interior”. Esse disco foi precedido pelas músicas “O trem” e “Pirituba”, sucesso nas rádios comunitárias de São Paulo.

Assista ao vídeo da música “O trem”

Com o lançamento desse álbum o grupo se tornou uma das grandes potências do Rap, virou um coletivo – a Família RZO – e também foi responsável por revelar para o grande público nomes como DBS, Negro Útil, DJs Cia e Negro Rico, Marrom, Função RHK e claro o maior de todos, Sabotage. O álbum é todo feito em cima de instrumentais prontos e praticamente todas as músicas foram criadas como se fossem versões de Raps internacionais, as levadas são muito parecidas. Isso era comum nos anos 90, RZO e Piveti eram mestres nessa técnica. Esse disco foi importante demais em vários sentidos, a presença e participação marcante do DJ Negro Rico fez com que muitos outros grupos valorizassem seus DJs. A quantidade de colagens e frases que foram tiradas das músicas desse disco para serem utilizadas em outros Raps e em performances de DJs, também é algo que reforça o seu status de ‘um dos maiores clássicos do Rap brasileiro’.

Ouça o álbum

Entre 1999 e os primeiros anos do século XXI, o rapper Xis talvez tenha sido o artista mais amado e ao mesmo tempo odiado do Rap. Ele não fazia mais parte do DMN e voltou a cena com os singles das músicas “Paranoia delirante” e “Só por você”. As faixas foram um grande sucesso e precederam o lançamento de um dos maiores clássicos do nosso Rap, o álbum ‘Seja Como For’. Nesse disco o público conheceu um Xis , vamos dizer assim, menos militante, para quem estava acostumado com a postura do DMN, foi um baque. A militância ainda estava presente de certa forma, mas foi diluída em músicas mais descontraídas.

Assista ao vídeo da música “Bem pior”

Algum tempo depois, por ter aceitado participar de um reality em uma emissora de TV, Xis chegou até a ser vaiado em alguns shows, teve até casos de nem subir ao palco e o show não acontecer. O tempo passou e hoje é fato que esse disco foi um divisor de águas para o Rap brasileiro na virada do século. Foi lançado pela 4P, seu selo/gravadora/marca/salão de cabeleireiros em sociedade com o DJ Kl Jay e o sucesso de vendas foi muito grande. O vinil era duplo, com 18 faixas entre músicas e interlúdios, e trazia participações de Paulo Brown, Kid Nice (Sistema Negro), Hébano (Pontencial 3), Nato da Quebrada, DJ Kl Jay, Estado Crítico, entre outros menos conhecidos.

Ouça o álbum

Ironia do destino ou uma resposta? Vai saber, só sei que no mesmo ano o ex-grupo do rapper Xis lançou a música que viraria um hino periférico. Max e Markão (FNR) entraram para a formação do DMN e ao lado de Elly, DJ Slick e L.F lançaram o single de “H. Aço”. Essa ouvi pela primeira vez na rádio comunitária Costa Norte, projeto do lendário Milton Sales, assim como a Cia Paulista de Hip Hop, responsável por esse e tantos outros lançamentos da mesma época. Na Costa Norte rolava as duas versões de “H.Aço”, a versão “Edilocomix”, produzida pelo Edi Rock e a versão “errata mix”.

Assista ao vídeo de “H.Aço”

A programação da rádio também rolava as outras duas faixas do vinil – “Verdadeiro criminoso” e a regravação da “Mova-se (remix 99)”. As participações nas versões da música são de Braiam (Filosofia de Rua na época) e o próprio Edi Rock na versão que ele produziu, a utilizada no vídeo. Esse foi o primeiro disco do grupo depois de um intervalo de quase 7 anos. A faixa principal ainda tem a “versão rádio” e a “favelapella”.

Ouça todas as faixas

Esse próximo disco tenho minhas dúvidas em relação ao ano de lançamento, mas de acordo com registros que pesquisei em revistas e fanzines, provavelmente foi lançado em 1999. Me refiro a coletânea ‘GOG Convida’, com 5 grupos de Brasília, 2 faixas cada – Voz Sem Medo, Sentença de Morte, Face da Periferia, Fogo Cruzado e Ideologia e Tal. GOG lançou pelo seu próprio selo, o Só Balanço. Foi a primeira coletânea no Brasil lançada nesses moldes, com um MC já consagrado apresentando novos nomes. GOG sempre se preocupou com a renovação no Rap, sempre manteve proximidade com os mais novos, pouco tempo depois ele ajudou a revelar A Família, Lindomar 3L e Rapadura. Parece história de tiozinho, mas é verdade, nos primeiros anos dos anos 2000 lembro dele comentar que tinha uns muleque bom que ele estava dando uma força e deu no que deu.

Ouça a coletânea

A primeira vez que ouvi MV Bill foi com seu antigo grupo, Geração Futuro, na coletânea Tiro Inicial. Bastante tempo depois vi o vídeo da música “Traficando informação”, que deu título ao seu segundo disco solo. O primeiro disco dele foi lançado em 1998 pela Zâmbia e intitulado ‘CDD Mandando Fechado’, mas não teve uma divulgação tão boa. Em 1999, deram uma melhorada na qualidade, incluíram três músicas inéditas, deixaram de fora três do CD anterior e relançaram pela Natasha Records/BMG, com o título de ‘Traficando Informação’.

Assista ao vídeo da faixa título

Melhorou a qualidade de tudo, da masterização ao encarte. São 13 faixas e além do vídeo da música título, ele também emplacou com o vídeo das músicas “A noite” e a polêmica “Soldado do morro”. O álbum tem faixas produzidas pelo DJ Luciano, o próprio Bill e até do Ice Blue, de acordo com a ficha técnica. As participações são do DJ TR, seu parceiro no Geração Futuro e seu DJ nesses primeiros discos, sua irmã Kmila CDD, Silveira e até o Mario Caldato fez umas programações.

Ouça o álbum

Uma coisa que acontecia nos anos 90 e 2000 que dificilmente voltará a acontecer, é receber um disco das mãos de um ídolo, sem intermediários, empresários e/ou assessores. Em 2000, através do LF, conheci o Edi Rock pessoalmente, trocamos ideia por telefone e marcamos de nos encontrar em um show no Projeto Radial. Lá recebi das mãos dele o CD do seu primeiro disco solo e no mesmo ano ele me deu também o vinil. Não é um álbum, pode ser considerado um EP, são apenas três faixas, cada uma com a versão vocal e instrumental. Tem “Não seja mais um pilantra”, com a participação de Bastardo e Sombra do SNJ, “Rapaz comum II” e “Correria”, com a participação do jovem Pulga do ABC – o mesmo que participou da “Mágico de Oz” – e Lakers (Código Fatal).

Assista Edi Rock e SNJ ao vivo com “Não seja mais um pilantra”

Edi Rock tinha montado um pequeno estúdio em casa, sua produção pro DMN e esse disco foram como testes. Como a cena era forte e todos os grupos sempre tinham shows nos mesmos lugares, muitas apresentações do disco foram com todas as participações. Fui a shows que o DMN, SNJ e Edi Rock se apresentariam no mesmo dia, então eles faziam uma sequência, que funcionava assim: DMN fechava seu show com “H.Aço”, Edi Rock emendava a sua participação e já começava o seu show, com DJ Kl Jay nos toca-discos, ele cantava as suas partes em algumas músicas do Racionais e o SNJ entrava na hora de cantar a “Não seja mais um pilantra”. Essas apresentações estão entre as melhores que já vi no Rap brasileiro.

Quando surgiu o planejamento para o lançamento do seu primeiro álbum solo, a pessoa inicialmente responsável pelo andamento do projeto me perguntou se era um boa ideia, respondi – “Um disco do Edi Rock bem trabalhado, é mais viável do que um disco solo do Brown”. A pessoa iniciou o projeto, depois saiu por algumas divergências, mas o álbum saiu e foi até que bem, com a pessoa em questão envolvida teria sido muito melhor. Agora ele já está no segundo álbum e ainda acho que ele conseguiu mais sucesso que o Brown em carreira solo.

Ouça o disco

Existem outros discos menos conhecidos que talvez tenham sido lançados em 1999 e outros que realmente foram lançados. É preciso documentar de alguma forma tudo que foi feito no Rap brasileiro para que a história não se perca. Muito do que foi feito em alguns desses discos acima, são coisas que alguns hoje em dia continuam fazendo e acham que estão inovando, justamente por não terem conhecimento do que veio antes. Bato sempre nessa tecla, pois a tal “inovação” que alguns ostentam, é na verdade um atraso, um passo atrás, o que no fundo esconde a falta de talento para fazer Rap.

Todos esses discos citados foram fruto da ousadia, no caso deles foi inovação e a revelação do que era novo. A coletânea do DJ Hum revelando talentos, alguns que acabaram se tornando grandes nomes. O Da Guedes vindo do sul do país, dando visibilidade para uma região que ainda não tinha conseguido emplacar um nome nacionalmente e ainda uma participação do D2, dando uma prévia do que seria seu primeiro álbum solo. O RZO revelando vários nomes, com um estilo totalmente diferente de fazer Rap, se tornando referência com suas técnicas vocais e flows. O Xis contrariando “as regras” e quebrando tabus. O DMN mantendo a raiz e lançando um dos maiores clássicos da história do Rap brasileiro. GOG dando atenção para a sua terra natal e mostrando que não eram apenas ele, Baseado nas Ruas e Câmbio Negro os únicos a fazerem Rap no DF. MV Bill mostrando que o Rap do RJ não estava resumido a Gabriel O Pensador. Por fim Edi Rock, pouco tempo depois do fenômeno ‘Sobrevivendo no Inferno’, se arriscando em carreira solo. Com exceção do Da Guedes e MV Bill, todos os outros discos foram lançados por selos/gravadoras legitimas do Rap, outra demonstração da força que era essa cena.

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