Origami russo

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A “Padoka do Bento” abria religiosamente às seis horas da manhã. Há mais de trinta anos era assim. Famosa por seu café e o sanduíche com mortadela, a padaria era frequentada por todos que pelo centro circulavam. Por ser próxima à biblioteca municipal, era comum ver leitores degustando uma xícara de café preto enquanto liam livros, jornais e revistas.

Pão com mortadela e café. Marcas registradas da Padoka do Seu Bento. Foto Ilustrativa/Reprodução Google

Seu Bento adorava conversar com os clientes, tinha uma relação boa com os frequentadores. Muitas vezes nem percebia que estava incomodando quem queria apenas ler um pouco. Todas às quartas, uma jovem entrava na padaria com seu namorado, sentavam próximos ao balcão, tomavam uma xícara de café preto, trocavam algumas carícias. Ela lia um pouco, ele comia um sanduíche.

Logo se despediam e só voltavam a aparecer na quarta seguinte. Seu Bento conheceu Yume de pequenas conversas de balcão, quando seu namorado se atrasava ou não aparecia. Falavam de política, de cinema, futebol e literatura. Ele nunca soube o que ela fazia e ela nunca fez questão de dizer.

Às vezes tinha muito movimento. Geralmente taxistas. Eles andavam sempre em bando, algumas vezes bêbados da noite anterior e, como precisavam entregar os táxis, paravam na Padoka e tomavam um café preto para disfarçar o cheiro do álcool. Yume, enquanto aguardava o namorado, sentava mais afastada do balcão. Evitava conversas com estranhos. Se sentia protegida no fundo da padaria, perto da porta que dava para o forno, de onde vinha um cheirinho de pão quentinho.

Naquela quarta-feira a atendente não pode ir trabalhar, por causa do filho que estava gripado. Seu Bento chamou um funcionário para atender os clientes. Jonas era padeiro, trabalhava na cozinha, era meio desligado, baixo, pernas curtas e braços compridos. Um sorriso largo no rosto e tiradas engraçadas, foi assim que conseguiu o emprego. Diferente de Yume, ele não entendia de futebol, muito menos de política, mas assim como ela, adorava literatura. Chamado, pelo chefe, para atender os clientes, tirou o macacão que usava e vestiu o avental. Pegou um bloco de papel e foi tirar os pedidos. Já havia visto Yume e seu namorado inúmeras vezes. Estava lá no dia que eles trocaram um pequeno beijo. Estava lá quando ele a fez sorrir. Estava lá quando ele a fez chorar. Estava lá no dia que ele não apareceu. Ela nunca percebeu a presença de Jonas, mas ele a observava pela fresta da porta que dava acesso à padaria. Conhecia seus gestos. Quando ela estava triste folheava o livro sem ler. Quando estava alegre fazia origamis com os guardanapos e os deixava na mesa. Jonas os recolhia com cuidado e na cozinha os desfazia para aprender.

Táxis em Porto Alegre. Foto Ilustrativa/Reprodução Google

Naquele dia ela estava sentada sozinha, próxima à porta da cozinha. Jonas, entre uma mesa e outra, olhava a jovem que folheava um livro. Primeiro ele pensou que ela estivesse esperando o namorado, depois percebeu que ela só folheava o livro e ficou contente quando se deu conta que ela estava fazendo isso. Fazia duas semanas que ela aparecia sozinha, então ele pegou um guardanapo, escreveu alguma coisa e começou a dobrar aquele papelzinho. Foi nessa hora que um taxista tentou puxar assunto com ela. O homem se aproximou e disse:

– Oi, arigato! Olhou para seus colegas taxistas e riu.

Ela folheava o livro e quando levantou a cabeça, sentiu um forte cheiro de álcool.

– Não quero conversar. Respondeu, seca.
– Que isso, japinha… Quem sabe a gente… Não terminou a frase e Jonas já estava ao seu lado.
– O senhor está importunando a moça, poderia dar licença?

O taxista irritado com a intromissão do padeiro, olhou-o nos olhos e disse:

– Tá falando comigo, “macaquito”? Fazendo referência aos seus braços longos. Jonas ignorou a provocação.
– Sim, a moça está tentando ler um livro.
– Ora, o que temos aqui, um atendente herói? Eu não te perguntei nada, perna curta.
– Desculpa senhor, mas o senhor pode voltar pro seu lugar?

Yume olhou para o taxista e disse:

– O senhor lembra o meu ex-namorado.
– Ele era um gato! Diz o taxista olhando para os amigos.
– Não, um completo idiota.

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O taxista levanta a mão para lhe dar um tapa. Jonas o empurra, ele é apartado pelos colegas. Um pequeno tumulto se forma, mas com a ajuda de Seu Bento e outros taxistas o homem é expulso da padaria. Sai muito irritado.

Yume agradece e volta o seu olhar para o livro. Jonas, se ajeita e ajeita as mesas, olha para Seu Bento que faz um gesto para que ele atenda a moça.

– Desculpa atrapalhar, mas a senhorita quer pedir alguma coisa?

Ela nitidamente muito triste e tímida, apenas responde:

– Uma taça de café. Sem parar de folhear o livro.

Jonas se questiona, o porquê ela ainda está aqui. Por que não foi embora? Será que ela espera alguém? Ah, claro! Deve estar esperando seu namorado e pergunta:

– Com leite?

Ele pensa um segundo e lembra da frase “o senhor lembra o meu ex-namorado”. Se sente um idiota, mas idiota ainda quando ela responde.

– Não. Sem olhar no rosto dele, focada no que fazia.
– E um sanduíche de mortadela também não?
– Não. Ela responde.

A capa do livro ‘Crime e Castigo’, do escritor russo Fiodor Dostoievski

Jonas percebe que perdeu a oportunidade de puxar assunto. Nessa hora ele olha a capa do livro e diz:

– Acreditar na insignificância dos outros não nos torna maiores que ninguém…
– Oi? Ela acha estranha a afirmação do rapaz.
– Desculpe, é que eu reparei na capa do livro, gosto muito dos autores russos: Pushkin, Gorki, Tolstoi e Tchekhov…

Ela ficou surpresa com o que estava ouvindo. Nunca imaginou que um padeiro pudesse gostar de literatura russa. Não que ela tivesse preconceito ou algo do gênero. O espanto era mais por se tratar de algo que ela mesma ainda não se sentia pronta para encarar, apesar de estar com o livro nas mãos. Ela desconfiada, pergunta:

– Tu já leu ‘Crime e Castigo’?
– Sim, senhorita. Minhas duas maiores paixões: ler e observar. Já li muita coisa e já observei muita gente. Desculpe, mas nada me chamou mais atenção que a senhorita nos últimos dias. Na real faz algum tempo que…

Nesse momento ele é chamado na mesa ao lado, olha Yume e diz:

– Já trago seu café, um segundo! Coloca a mão no bolso do avental e deixa na mesa um origami.

Yume ficou observando Jonas. Ele atendia a todos com extrema educação e delicadeza, sempre sorrindo. Foi a primeira vez que ela prestou atenção nele. Ela pegou o origami e percebeu que havia algo escrito. Com muito cuidado começou a desdobrá-lo. Neste momento, o taxista voltou, puxou uma faca e com um único golpe, esfaqueou Jonas. Yume não chegou a ler tudo e correu para ajudar a socorrê-lo. Gritos foram ouvidos ao longe e no guardanapo meio desdobrado a frase “Conhecemos um homem pelo seu riso; se na primeira vez que o encontramos ele ri de maneira agradável, o íntimo é excelente”.

12 COMENTÁRIOS

  1. Origami Russo é apropriado título para esta crônica. Retrata a fluidez com que a história é contada.
    Parabéns, camarada AP!

  2. Bah! Que história! Pobre Jonas pelas circunstâncias, mas feliz dele pela sabedoria em prestar a atenção nos detalhes do mundo ao redor. Baita história! Dois padeiros com algo em comum aqui. A sabedoria de prestar atenção nos detalhes, um escreveu no origami o outro escreve aqui no site pelo que deu pra perceber! Grande Padeiro! Grandes palavras!

  3. Amo ler, leio muito e de tudo, gosto de escrever também, mas tenho uma preferência visceral pelas escritas que traduzem o súbito que habita em nossa dimensão. Por esse motivo, por namorar espantos e indignações, amo Almodóvar e Tarantino. E esse menino Antônio Padeiro consegue falar dessa vida assombrosa por um fio, sem causar enguho ou pena, é e pode ser!
    E faz mais, acabamos por virar personagens, quando ao término da leitura, vestimos suas peles e ficamos a imaginar o depois!
    Tu nasceu pra isso muleque, voa!

  4. Por mais “Jonas” nesse mundo! Não é o que olhamos que importa, é o que vemos. Bela reflexão!

  5. Conto que pode ser lido sob três óticas. Excelente
    Obs: sacanagem esfaquear o rapaz no final. Hahahaha

    Parabéns!!!!

  6. A rapidez com que a vida pode mudar, lindo e triste, faz lembrar da coragem que a gente tem que ter e não perder tempo pra fazer o que a gente acha importante na vida!

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