Aos 57 anos, rapper GOG reflete sobre sua trajetória e as contribuições de sua geração
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Cláudia Maciel*
Brasil de Fato | Brasília (DF) |
13 de Março de 2022 às 16:51
Genival Oliveira Gonçalves, o GOG, abre a porta de casa com um sorriso acompanhado de presença acolhedora. O corpo, já não tão rígido, agora é seguro. Continua imponente, porém sereno e convicto do que realizou em 57 anos de vida e 45 de carreira.
Embora já afrobetizado (no sentido de se entender como negro, conforme o próprio GOG explica), não se considera pronto, mas em busca de desconstrução para reconstrução, por ser consciente que se tornou referência, inclusive acadêmica. Seus passos mostram um dos caminhos possíveis para a entrada do local que escolheu para chamar de lar e abrigar uma parte da família, pois acredita no conceito de parentela estendida.
O caminhar é ritmado por palavras que levam à reflexão, assim como as poesias já consagradas que lhe renderam prêmios, homenagens e o título de Poeta do Rap Nacional.
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Nasce Genival
A data de 9 de março de 1965 marca o nascimento de uma criança que viria a ser letrada aos 5 anos de idade, um feito de poucos. Genival nasceu em Brasília, é filho da professora concursada dona Sebastiana e de seu Genésio, que, ao vir morar na capital do país, prestou serviços a uma recauchutadora de pneus.
A família, oriunda de Gilbués, cidade situada no extremo sul do Piauí, ainda deu a Genival dois irmãos: o bancário Sanderson e a funcionária pública Karlla Soraya. Mais tarde, ao constituir casamento e paternidade, Genival teve três filhos. Dois no casamento com Rogéria e uma filha fruto de um relacionamento anterior. Hoje já é avô. Os olhos brilham ao contar a esperteza do neto Samuel, que aos cinco anos descreve com detalhes o que vê em seu cotidiano.
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Rap
GOG diz que não consegue diferenciar onde começa e termina o Genival e o GOG, o artista.
“Foi o Genival que incentivou o GOG. Deu toda a força para o GOG. Anda com GOG a todo momento. E o GOG vai querer ser melhor do que ele? Não dá. Isso talvez seja uma couraça. Algo que eu uso como escudo porque não quero deixar subir [à cabeça] esse bagulho de sucesso”.
O interesse pela música iniciou ouvindo os discos de seus pais. A maioria das referências musicais são setentistas: James Brown, Toni Tornado, Quincy Jones, Elza Soares, entre outros. Aos 12 anos, passou a frequentar os “sons” nas casas.
“O meu corpo, que já habitava a palavra, passa a habitar o ritmo também. A música, né? Aí passei pelo soul, pelo funk e cheguei ao Hip Hop através do break”, diz.
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Poesia
“Escrever era algo longe na época. As obras literárias obrigatórias nos afastavam da leitura. Foi o rap que me aproximou da arte de reunir palavras separadas e ritimá-las”, descreve.
O mercado do hip hop surgiu para Genival ao observar os parceiros de música DJ Raffa e os Magrelos, Thaíde e DJ Hum, Racionais Mc’s, N dee Naldinho, entre outros. Contudo, ele quis criar e criou estilo próprio, que mais tarde foi base para vários artistas, entre eles, Fabio Brazza e Renan Inquérito. Renan, inclusive, escreveu o rap “Mister M”, inspirado pela canção “Brasil com P”, composta por GOG.
O Poeta do rap nacional relata ainda que as pessoas duvidavam que aqueles escritos eram seus. “Recordando hoje essa situação, observo que as pessoas já praticavam o racismo, pois não acreditavam que um jovem negro escrevia aquilo”, relembra.
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Maturidade
A maturidade levou GOG a cuidar da alimentação, fazer exercícios físicos, meditação e exercitar o hobbie de jogar xadrez com mais frequência.
“Se a vida é desafio como a gente ouve o Edi Rock falando, será que o desafio é só levantar cedo? Será que o desafio é só enfrentar os tiroteios, só enfrentar as chuvas? Só enfrentar os desabamentos? O desafio é enfrentar essa parede de impossibilidades também dentro de nós. Não vale a pena viver pouco como rei. Mas também não quero viver muito como um Zé, quero trazer o máximo de contribuição no meu campo de atuação. E a maturidade nos faz pensar estrategicamente como no xadrez, desconstruindo para construir. Amadureça aos 57 anos, mas que não caia dos pés”, reflete.
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Covid-19
Em meados de 2021, GOG contraiu covid-19 e desenvolveu, como sequela, um processo de aceleração psicológica.
“Tô fazendo tratamento. Quero deixar registrado que psicólogo, psiquiatra, terapia, não é coisa de playboy. Se o Estado fosse sério com P, na periferia não seria polícia. Seria psiquiatra, psicólogo, pedagogo. Porque a periferia vive um Estado psíquico de transtorno de ansiedade. Precisamos comer. Então temos que vender algo em pouco tempo para comer no almoço. Continuar vendendo para ter janta. Quem aguenta desse jeito?”, questiona.
O Poeta questiona ainda a política de saúde brasileira e os próprios brasileiros quanto à questão da autodeclaração. Ele relata que o país não se assume negro, logo existe dificuldades para identificar para quem se deve realizar tais campanhas e acessos a tratamentos, pois política pública necessita do registro.
“Não precisávamos de uma pandemia para mostrar que nosso sistema de saúde não estava preparado. Obama alertou que estávamos completando 100 anos da última pandemia e a cada 100 anos sinaliza algo desse tipo. A política pública não se prepara para acontecer. Sem autodeclaração como se preparar? E aí temos um sistema que deságua nas pessoas pobres e negras. A primeira pessoa a morrer de covid foi uma trabalhadora doméstica negra. Aconteceram muitas violências nesse período por despreparo. Não se morre só fisicamente.”
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Política
Para o cenário de 2022 e as eleições, o artista acredita que o Brasil não tem a oportunidade de pensar em somente eleger o presidente, pois o regime presidencialista não permite governabilidade sem amplo apoio do Congresso, Câmaras e Senado.
“Infelizmente, a qualidade do entendimento do que é política no Congresso Nacional é da pior qualidade. Eu vejo o povo pouco preparado e pouco interessado. A minha perspectiva, independente de quem seja eleito, é que a gente ainda vai sofrer muito. É que o povo da periferia vai morar ainda em lugares distantes e os salários não serão suficientes mediante a responsabilidade que o povo pobre tem nessa engrenagem que é o capitalismo. O sistema vai continuar a dominar. Por outro lado, nos incentiva a continuar lutando. E que o Hip Hop tem que continuar sendo ferramenta de transformação. A professora Sueli Carneiro nos traz a lição que entre esquerda e direita continuaremos negros. Então que não nos iludamos, mesmo tendendo ao governo de esquerda” relata.
Cultura
Neste período atípico de pandemia, a cultura foi o primeiro setor a parar e o último a voltar. Na visão de GOG, o setor público deveria investir na estrutura cultural, e não no indivíduo cultural.
“É muito mais que um cachê para que mais pessoas possam passar por ali. Quando gasta o dinheiro com cachê, o artista gasta como ele quer. Quando é em uma estrutura, muito mais pessoas estão aprendendo e expondo suas artes. Se faz necessário mais cinemas, mais espaços para shows com boa estrutura e assim a gente gira a economia cultural sem amarrações. Não fica um tanto para poucos”, defende.
57 anos
Ao completar 57 anos, GOG ensina que, em um princípio revolucionário, é preciso saber que temos que deixar contribuições para frente, pois uma cultura leva tempo para ser reconstruída.
“Hoje você entra no Tiktok e vai passando os vídeos. Assiste de um a um. E o que você aprendeu? Não aprendeu muita coisa, mas perdeu algo valioso: tempo. Só lá na frente, aos 57 anos, que a maturidade vai te fazer valorizar os dias, pois cada manhã é uma a menos. Aí você para e pensa: deixa eu aproveitar o meu dia que é o último da minha vida. É isso que venho passando para frente. Contribua, interfira socialmente, gere conteúdo relevante, produza, se cuide e aproveite o tempo”, propõe.
Na segunda parte desta entrevista, que vai ao ar em 16 de março, GOG fala sobre os novos projetos para a carreira, família e muito mais.
*Fotografias por Bruno Garcez, aluno da oficina de fotografia da ONG Cufa DF, ministrada pela professora, artista, mãe e fotógrafa Tatiana Reis.
**Cláudia Maciel é jornalista, mãe, mora em Samambaia e escreve, mensalmente, para o Brasil de Fato DF sobre Hip Hop.
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Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino e Rodrigo Durão Coelho
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