Batalha da Matrix: o quilombo urbano incomoda a burguesia

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Foto: Batalha da Matrix

POR ELBER ALMEIDA*

Há 4 anos atrás, um grupo de rimadores do ABC, que reunia-se ocasionalmente pela região para trocar ideias e fazer batalhas de rimas, decidiu começar algo diferente. Inspirados em eventos como a Batalha da Santa Cruz de São Paulo e a Batalha da Central de Diadema, iniciaram a BATALHA DA MATRIX. O nome é um trocadilho com a localização do evento, que ocorre na praça da Igreja Matriz de São Bernardo do Campo/SP.

A Batalha já passou de sua 200ª edição, indo para 4 anos, com um público que pode ultrapassar 300 pessoas. Por ela passaram inúmeros MCs. É o ponto de encontro de vários artistas do Hip Hop da região e também de outros locais do Estado e até do país. Sua existência possibilitou a criação de inúmeros grupos de rap locais, com o encontro entre MCs e beatmakers. Também foi a inspiração de muitas outras batalhas que hoje se alastram pela região, sendo um total de quase 30.

Porém, nem tudo são flores. A Batalha está de pé, mas desde seu início sofre repressão policial da Polícia Militar e Guarda Civil Municipal. Tanto a antiga prefeitura de Luiz Marinho do PT, como a atual de Orlando Morando do PSDB, estiveram longe de facilitar a vida para a batalha. São diversos os casos em que a PM atirou bombas de gás e balas de borracha nos participantes, além de recorrentes intimidações policiais.

Agora o Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana/SP) iniciou a investigação da repressão às Batalhas de Rap do ABC, embora ela já ocorra há muito tempo. Assim como historicamente ocorre com as rodas de capoeira, jongo, as religiões de matriz africana, os bailes soul na ditadura, ou o simples fato de haver alguns negros reunidos numa praça, não seria diferente com essa manifestação do movimento Hip Hop num país em que o racismo é próprio do Estado.

Mas seria o Hip Hop parte da cultura negra?

Essa pergunta tem sua razão de ser. Existem rappers, grafiteiros, B-Boys e DJs brancos. Por outro lado, a classificação do Hip Hop, portanto das Batalhas de Rap, como parte da cultura negra recebeu uma boa explicação pelo rapper Coruja em entrevista:


Como parte da cultura negra, o rap sempre denunciou o racismo, as desigualdades sociais e a violência da polícia em nosso país. As referências neste sentido não faltam. O ritmo inspirou e inspira milhões pelo mundo, que passam a adotar a identidade negra a partir de sua referência. É um símbolo de resistência. Não por acaso grandes artistas são perseguidos, como foi Tupac, como é recentemente o rapper dos EUA Joe Cole com a invasão da Swaat a seu estúdio, como foi processado o grupo Facção Central no Brasil etc.

A cultura negra é perseguida por estarmos num país construído sob o signo do racismo. Toda e qualquer manifestação pode ser criminalizada, especialmente aqui por colaborar com o fortalecimento da identidade negra, que logo impulsiona a luta contra o racismo. Fomos construídos sob o mito da democracia racial, que diz que os negros no Brasil não são negros, o que torna essa luta mais difícil.

Foto: Batalha da Matrix

A repressão não derrotou a resistência

Muitas são as histórias de repressão à batalha, mas algumas ficaram mais à mostra. Ainda em 2015, a polícia militar dispersou a batalha, gerando uma ampla repercussão na mídia local e dentre diversos movimentos sociais, que apoiaram sua resistência. Já no início de 2016, com bombas de gás e balas de borracha, a batalha foi novamente dispersada pela PM, com apoio da GCM, gerando repercussão dentro do rap brasileiro com a manifestação de rappers conhecidos, como Kascão, do Trilha Sonora do Guetto, e chamou atenção até mesmo da grande mídia, com uma reportagem no jornal SPTV.

A exposição fez o então o governo Marinho recuar na repressão, que diminuiu muito até o fim de seu mandato. Ainda no ano passado, a Batalha organizou o seu 2º Festival da Resistência, reunindo na praça os elementos do Hip Hop, além de maracatu, circo, um cineclube e diversas outras atividades. Já neste ano a repressão voltou com o prefeito Morando: enquadros dos GCMs aos organizadores, bombas de gás atiradas nos participantes após o término da batalha, etc. Ressurgiu num momento a proposta da prefeitura de tentar controlar a batalha, colocando-a no parque da juventude da cidade, domesticando o evento. Essa proposta visa claramente tentar impedir seu livre funcionamento.

As tentativas de explicação para a repressão são muitas. Uma delas é o suposto fato de incomodar a “sociedade do centro”. Segundo essa linha, a Batalha é um local de tráfico de drogas e de encontro de criminosos que se aproveitam para roubar pessoas na região. Porém, não tem base na realidade. É recorrente por parte da organização da Batalha o pedido para que não se usem drogas ilícitas durante a Batalha, como podemos ver no vídeo. Além disso, a violência é própria de um país extremamente desigual, estando presente em todos os espaços. A Batalha é inclusive uma arma para diminuí-la, afinal, o rap já tirou muitos do crime, e a ocupação do espaço público cria uma movimentação que aproxima as pessoas de um local antes de trânsito menos agradável. Sem falar nos projetos de literatura e outros tipos de cultura que se aproximam do movimento, traçando novos caminhos para uma população marginalizada.

A verdadeira justificativa para a perseguição das batalhas é a aplicação da política higienista, a mesma que Dória aplica em São Paulo. Os defensores deste modelo de cidade são aqueles que querem vê-la ocupada por centros comerciais e atrações empresariais pagas, inacessíveis à maioria da população pobre e trabalhadora.

O caldo entorna

A Matrix é referência para muitos jovens que começam no Hip Hop. Dela saem MCs que concorrem em campeonatos nacionais de rimas e grupos que despontam no cenário regional cultural, em breve no nacional. É uma verdadeira catalisadora cultural na região, elevando a auto-estima de uma juventude periférica com poucas referências e perspectivas de futuro.

Foto: Batalha da Matrix

A crise profunda que atinge o país aumenta o desemprego, principalmente entre a população negra e jovem. Além disso, a terceirização irrestrita recém-aprovada na câmara e a reforma da previdência que nos fará trabalhar até a morte, tornam mais escassas as perspectivas num futuro melhor dentro de um emprego fixo, com o sonho da casa própria, o carro na garagem e a família bem alimentada. Através da cultura cada vez mais jovens mostram sua revolta, mesmo que inconscientemente.

Para o sistema que privilegia o interesse dos que não precisam deste tipo de cultura, dos que podem utilizar seus recursos em caríssimos festivais de música, dos ricos e poderosos que em suas mansões e iates olham o circo dos horrores de nossa sociedade de cima e se deleitam em cálices cheios com o sangue de nosso povo, as batalhas de rima, os saraus na periferia, os slams etc., são um grande incômodo, pelo simples fato de fazerem quem apanha saber que está apanhando. Eles são a saída da Matrix, ou entrada nela.

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*Texto publicado originalmente no Esquerda Online.

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