Por: Fernando Baldraia
Anúncios em jornais e revistas e inúmeros outdoors espalhados pela cidade estampavam a frase “Se você pensa que já viu tudo sobre o Carandiru.”, por aí já se vê que a própria publicidade do filme ‘O Prisioneiro da Grade de Ferro’, de Paulo Sacramento, encarregou-se de, sutilmente, convidar o espectador a uma comparação com ‘Carandiru’, de Hector Babenco.
Apesar de problemática, já que os filmes têm natureza bastante distinta — o primeiro é um documentário, cuja peculiaridade maior é contar com cenas gravadas pelos próprios presidiários; o segundo um filme de ficção, adaptação para o cinema do livro ‘Estação Carandiru’, de Drauzio Varella — a quem assistiu aos dois, é mesmo bastante difícil furtar-se a comparar.
Ao fazer confronto, inúmeras questões podem ser suscitadas, uma, porém, parece inevitável: qual filme melhor representa o Carandiru? Noutros termos, qual dos dois têm mais legitimidade?
Para começar é bom não nos iludirmos. Não se pode, ao ver o ‘Prisioneiro da Grade de Ferro’, supor que ali esteja, como diz o subtítulo do filme, um “auto-retrato” do Carandiru. Não custa lembrar que os presos filmaram 170 horas e o filme tem apenas duas, nas quais não se consegue sempre distinguir o que foi filmado pela equipe de Sacramento e o que não foi. De mais a mais, todos os outros elementos que contribuem para a construção de sentido em um filme (edição, trilha sonora, montagem, etc.) foram feitos pelo diretor. O discurso que vemos no ‘Prisioneiro …’ é de Sacramento — e exatamente por isso ele assina o filme — assim como é de Babenco (não de Dráuzio) o que vemos em ‘Carandiru’.
Sacramento se concentra nas diversas dimensões do cotidiano da cadeia (o trabalho, o lazer, a religião, a alimentação, o descanso), nos momentos não-cotidianos (o indulto, o dia de visita, a entrevista para ganhar liberdade condicional) e também no interstício destes (a contravenção, o tráfico de drogas, a fabricação de armas, etc.), mas não permite que conheçamos seus personagens na intimidade. Interessa-lhe o evento em si, não propriamente quem o protagoniza. Babenco, fiel a Dráuzio Varella, nos imergiu não apenas na cadeia, mas nos dramas pessoais de seus pacientes-presidiários, situando-os dentro e fora da prisão.
Fazendo uma alegoria, diríamos que, para o primeiro, os presos são como negativos através do quais se revela o que é o Carandiru; e, para o segundo, o Carandiru é como a foto de uma multidão, na qual se deve enxergar, antes de tudo e apesar da dificuldade, cada uma das pessoas.
Mais importante que as diferenças talvez seja o que os filmes têm em comum: a preocupação de oferecer a visão do presidiário. Por isso, e pelo fato de procurarem ser razoavelmente fiéis àquilo que se propuseram — Sacramento a fazer um documentário que incluísse a visão que o presidiário poderia oferecer de si mesmo, e Babenco a adaptar uma obra literária para o cinema — ambos são igualmente legítimos.
Houve, contudo, quem julgou ‘O Prisioneiro …’ muito mais legítimo e crítico do que ‘Carandiru’. Desconfio que as razões para isso nada tenham a ver com o que dissemos até agora.
Ambos têm como objeto uma parcela de nossa sociedade que vive desde sempre na mais absoluta miséria, propositadamente esquecida, e cuja voz só se ouve no concerto dos clamores sociais quando, a exemplo do que ocorreu recentemente no presídio Urso Branco, em Rondônia, descamba para um nível de violência incompreensível.
‘O Prisioneiro da Grade de Ferro’, até pelo status de documentário que carrega, dá impressão de se afastar menos da realidade do que ‘Carandiru’. Com isso, mata uma espécie de sede do público por um contato mais direto com algo que, no correr da vida, é sistematicamente evitado.
O critério avaliativo para filmes deste tipo, que tratam de “questões sociais”, passa a ser sua capacidade de provocar uma espécie de mal-estar por jogar em nossa cara este Brasil que primamos em desconhecer. E quanto mais mal-estar provocar melhor. Se causar muito, é sinal de que conseguiu ser fidedigno, mostrou a ‘realidade’, dura, quase insuportável, como já supunhamos que fosse. Se causar pouco ou nenhum, o provável é que a ‘realidade’ tenha sido distorcida ou idealizada, com a conseqüente perda de legitimidade e poder crítico que tais expedientes engendrariam.
Curioso é ser este mal-estar, paradoxalmente, o elemento que torna o filme confortável.
É sedutor e de bom gosto considerar mais legítimo e, por mera extensão, mais crítico, o filme que traz à tona com crueza qualquer dimensão da miséria em que vive a maior parte de nossa sociedade (e, me parece, tem sido politicamente correto tratar e apreciar tais assuntos deste modo). Regaladamente instalados na poltrona do cinema, agradecemos ao cineasta este reavivamento de nossa consciência social e, ao dar nossa mais completa anuência à produção, é como se nos purgássemos da alienação e inércia em que vivemos nossa vidinha, sempre perseguidos pela fatura do cartão de crédito. Nosso mal-estar é salutar, garante o equilíbrio social.
Tudo isso nos leva inevitavelmente a perguntar se existe ainda um caminho para construir, não somente no cinema, mas em qualquer dimensão da produção artística, algo que, do ponto de vista social, seja efetivamente chocante, desestruturador. Eu ainda não perdi as esperanças.
Por: Fernando Baldraia
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