Bocada Forte – Desde 1999

Que escritor caberia no hip hop?

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POR KLÉBER G.

Na parede do meu quarto há um retrato do Charlie Parker. Com ele aprendi boa parte do que entendo sobre a composição da arte genuína ou até mesmo de um bom texto: a contenção de informações, a importância do silêncio, a abertura às múltiplas interpretações, a improvisação essencial ao relato, o uso do fraseado avulso pra ocupar um espaço e, inevitavelmente, a dor do artista, do verdadeiro artista, como um meio pra se tornar criativo, pra ser capaz de condensar um sentimento a uma visão particular de mundo e assim erguer um símbolo capaz de reverberar tudo isso.

Na música, o que mais tenho escutado e estou escutando agora, perfeitamente sincrônica a uma garoa fininha que cai lá fora, são as visitas que o hip hop fez ao jazz. É aquela hora alegre e triste em que as luzes dos postes lá na rua começam a se acender, e uma nostalgia fininha entre devagar em nós, quase agradável, com a lembrança transparente daquelas pessoas que já não podemos ver e o sax denso do Charlie Parker, carregado de vida, se mistura às batidas e o paradoxo dos estilos deixa de existir. É a arte pura. Toda a dor de um gênio negro do Kansas da primeira metade do século XX passa a fazer parte do que representa a cultura do hip hop.

Enquanto escrevo o mendigo de costume apareceu à janela pedindo moeda, está todo encharcado e já quase não fala, murmura, e nem sequer cheira mal, esta pra lá de todos os cheiros. Sirvo-lhe um sanduíche e volto a escrever. Volto a escrever falando dele, falando de livros, falando de música, fraseando, entrecortando o que tenho pra dizer. O texto na cabeça e no coração a minha saudade dos mortos – empresto esse verso pra quem queira, sei que existem letristas talentosíssimos no rap brasileiro, todos com uma espécie de talento intrínseco à sensibilidade e principalmente às experiências de vida. Assim nasceram linhas como “por que até no lixão nasce flor” (desculpa o eufemismo), digna de um João Cabral e ou de um Quintana, não obstante, ao contrário do que fazem tão bem com o jazz, sou incapaz de identificar algum movimento do hip hop de encontro à alta-literatura, como fez o rock, por exemplo.

Já imaginei uma ‘ópera hip hop‘ servindo-se de uma tragédia de Shakespeare, da ‘Divina Comédia’ de Dante ou do ‘Fausto’ de Goethe e por aí vai (desculpa a panfletagem de ideias). Um MC cantando os círculos do inferno ou a ambição de McBeath. O amalgama entre a arte clássica e a contracultura é um caminho a ser trilhado pra que se resista à bestialidade em que a publicidade e as veleidades do entretenimento de massa nos estão submergindo.

Entretanto antes percebemos somente o movimento contrário, o universo hip hop usado como matéria prima de escritores, o que não deixa de ser agradável. O dominicano Juonot Diaz (muito superficialmente), a belíssima rainha chicana Silvia Cisneros, a excelente Jamaica Kincaid da Antígua & Barbados, ou a Edwidge Dandicat do Haiti. Aqui no Brasil também há muitos, os mais ilustres são Paulo Lins, autor de ‘Cidade de Deus’, que inspirou o filme, ou então de maneira bem mais contextualizada o bom romancista Férrez, uma espécie de ‘Doistoiévisky da periferia paulista‘ e que é o atual cetro da literatura marginal brasileira; seu livro ‘Capão Pecado‘ vendeu mais de 100 mil cópias e o rosto condoído do Charlie Parker.

O mendigo foi embora, dei-lhe uma camiseta, um guarda-chuva de 5 reais que os vendedores do centro da cidade desenterram, sei lá de onde, logo que cai o primeiro pingo de chuva, e ele se foi embora. Daqui a uns dias reaparece; cada vez mais louco e cada vez mais sonâmbulo, não sei o que posso fazer.

Dito isto nesta semana José Saramago completaria 93 anos. Comunista, revolucionário, de origem camponesa, filho de analfabetos, sem ensino superior e, ironicamente – entrevisto os atuais cenários políticos no Brasil e em Portugal –, o único escritor de língua portuguesa laureado com o prêmio Nobel. Na parede do meu quarto também há um quadro de José Saramago.

Que escritor caberia no hip hop? Uma provocação para as próximas semanas.

Aqui dentro a batida acabou – e lá fora me parece que parou de chover.

Um Abraço.

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