Entrevista | Kuryña G-Funk, o velho louco do centro

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Capa do seu primeiro disco solo

Sim, tem muito Rap sendo lançado, são milhares de grupos e MCs, impossível acompanhar tudo que vem sendo feito, na mesma velocidade. Sem contar que agora a moda é lançar vídeos ou lyric vídeos e chamar de single.

Muitos sequer se preocupam em lançar um disco, esse novo formato fortalece quem não tem capacidade e nem talento para fazer um disco cheio, claro que há exceções. Outra coisa ruim é a desinformação, por culpa dela a raiz está se perdendo, principalmente entre os mais novos. Vivemos tempos em que a desinformação vence e para muitos isso acaba sendo positivo, e no Rap não é diferente.

Nós que escrevemos para sites, blogs ou revistas, precisamos informar, mostrar para o público quem é quem, entrevistar os artistas é importante. Releases são bons para te dar um rumo, não são para serem copiados e publicados, pois geralmente eles são feitos pelo próprio artista ou por uma assessoria, que só quer “vender o seu peixe”.

Em meio a tudo isso existem artistas com uma longa caminhada que acabam passando batido. Estão nas ruas, longe dos milhões de views, seguidores e curtidas, mas com um reconhecimento nas ruas que muitos talvez nunca terão. Um exemplo é o Kuryña, com mais de 20 anos no Rap, sempre em atividade, nenhum dos veículos que se dizem especializados cita uma linha sobre o seu trabalho. Ele não é o único, poderia citar aqui uma infinidade de nomes! MCs e rappers que fazem trabalhos relevantes, talvez eles não saibam ou não queiram usar as redes sociais da mesma forma que outros usam. Mas para quem escreve sobre um estilo musical e se diz especializado isso não importa, não dá pra ficar esperando algo aparecer na sua linha do tempo para ai então você escrever sobre. Pensando assim resolvi entrar em contato com esse mano da região central de SP e pedir que falasse um pouco sobre a sua história e os trabalhos que tem lançado.

Nome dele nas participações do disco do MRN

A primeira vez que ouvi seu nome foi no disco solo do Nill (MRN), o ‘Longa Estranha Caminhada’, e eu ficava curioso em saber quem era esse cara que o Nill sempre citava. Através dessa entrevista descobri que já tinha escutado sua voz em uma gravação, ele quem fez a abertura do primeiro álbum do MRN (‘Só se não quiser ser…’). Eu tenho esse disco em vinil e sempre leio cada detalhe dos vinis, fiquei intrigado em como eu deixei passar isso, como não tinha visto o nome dele nessa introdução. Peguei o disco e ai percebi, como as letras são escuras e o seu nome está escrito em uma parte escura da foto, fica difícil de entender o que está escrito – veja no detalhe ai na foto ao lado.

Flyer do evento ‘O Duelo’ – Acervo BF

A primeira vez que o vi ao vivo, foi em um evento de B.boys, uma batalha 6×6 organizada pelo Rooney, ‘O Duelo’ (09 de agosto de 2008). Nesse dia ele se apresentou com o Branco P9, eles tinham um projeto muito bom chamado 1A+, nesse mesmo dia o Marechal também se apresentou e quem fechou foi o veterano T La Rock. Daí pra frente não tive mais notícias, logo depois diminui muito a frequência nas festas e nos rolês. Mas há pelo menos uns 6 anos venho acompanhando seu trampo. Me chama muita atenção trabalhos que seguem na contramão, mas não apenas por isso, a boa qualidade também. Kuryña tem um trabalho focado no estilo G-Funk, com muitas qualidades que qualquer amante de Rap precisa dar uma atenção. Ele é um bom rimador, valoriza todos os elementos da Cultura Hip Hop, o DJ está presente em muitas de suas músicas, as letras são positivas e a produção é bem feita.

Ele já tem dois discos solos lançados, ‘Caminhada Funk’ e ‘Concreto Funk’, e em suas músicas um grande parceiro é um DJ e produtor que ficou conhecido no Facção Central, o Erick 12. Mas não, seu som não tem nada a ver com o Facção, mesmo porque o Erick já fez muitas outras coisas diferentes do que fazia no Facção, por exemplo com o Reviravolta Máfia.

Capa do seu segundo disco

Outro parceiro nos beats e nas rimas é o Base MC, o mesmo que era parceiro do DJ Nyack no Primeira Função. Na entrevista ele fala um pouco sobre a sua história de vida e também no Rap, as influências, a cena atual, projetos atuais, Hip Hop e até de uma “suposta mídia do Hip Hop”. Sobre o seu trabalho não receber muita atenção ele diz:

Cara, acho que minha música não chegou na mídia especializada, não generalizando, mas acredito que a grande mídia especializada hoje não é composta por pessoas que conhecem a Cultura e música Rap, pessoas que chamam a música Rap de Hip Hop, não sabem o que estão falando.” Confere a entrevista completa, conheça mais sobre o trampo dele. Vale a pena sair da bolha, desapega das redes e continua no BF que vem muito mais por ai.

Bocada Forte: Fale um pouco sobre a sua trajetória no Rap. Sabemos que fez parte do MRN, lembro que o Nill cita você no primeiro disco solo dele, teve um projeto com o Branco, faz um resumo pra quem não conhece.

Kuriña, foto por Roberto Gasparro

Kuriña: Meu primeiro contato com o Rap, e não com a Cultura Hip Hop, se deve ao Nill MRN, acompanhei tudo do álbum ‘Só senão quiser ser…’, desde as gravações de vozes no Atelier Studio, do Vander Carneiro, até as fotos da capa do vinil. A intro do disco foi eu que fiz (meu primeiro registro de voz), depois o mesmo me convidou para participar do disco ‘Tudo novo d novo’, gravei umas 05 faixas. Fiz uma apresentação com eles no meio do show do Racionais MCs em Campinas, mas resolvi sair do grupo antes que o cd saísse. Montei em 2008, junto com o Branco P9, o grupo 1A+ e lançamos o álbum ‘Como na Velha Escola’, depois fiz meu primeiro solo em 2013 ‘Na Caminhada Funk’ e depois o ‘Concreto Funk’ em 2018.

Nunca fiz músicas para os outros ouvirem, acho que isso é consequência de identificação musical, faço música pra alimentar minha Alma

BF: Suas influências são bem claras, é nítido no seu som. Qual a maior dificuldade em lançar o disco com esse estilo G-Funk e ir contra o que a maioria está fazendo?

Kuriña: Meus álbuns de cabeceira são, ‘Só senão quiser ser…’ do MRN, ‘Elos da Vida’ do Piveti e Branco, ‘The Chronic’ do Dr. Dre, ‘Doggystyle’ do Snoop Dogg, ‘Dogg Food’ do Tha Dogg Pound, ‘Regulate…G-Funk Era’ do Warren G e ‘Funkdafied’ da Da Brat. A maior dificuldade é realmente vir na contra mão do Rap de hoje, pois DJs não tocam sua música na noite, jovens não consomem sua música  e consequentemente você faz quase nada de shows e a verba não entra pra poder investir na sua arte. Ao mesmo tempo, nunca fiz músicas para os outros ouvirem, acho que isso é consequência de identificação musical, faço música pra alimentar minha Alma.

Veja um vídeo do 1A+ – Politica mente, correto?

BF: Porque Kuryña? Tem algum significado?

Kuriña: Sim, nasci com esse apelido, sou filho de um pai branco e uma mãe negra, minha mãe teve uma “complicação” na gravidez e quando nasci, nasci bem escuro/roxo (segundo contava minha mãe) e os amigos dela falavam, vamos ver o “escurinho” filho da Arli, e de Escurinho (para os mais velhos) virou Kuryña (para os mais novos). Tanto que nem eu e nem minha família sabemos quem me chamou assim pela primeira vez. E Kuryña G-Funk, surgiu na noite depois que o Warren G repostou um vídeo meu em seu Twitter, eu rimando “Funksípuder” no instrumental de “Devotion” do Earth, Wind & Fire.

Kuriña e um Graffiti de seu próximo projeto

BF:  Para mim é assunto resolvido, Funk só existe um. Mas infelizmente o termo é usado pra definir uma outra música, o que você pensa sobre isso?

Kuriña: Não tenho nada contra o gênero, apesar de não ouvir e sim quanto ao nome. Kuryña G-Funk só tem um, Bossa Nova só tem uma, Samba só tem um e Funk só existe um e ele (o Funk) é o pai do Rap. Fico triste quando ouço rappers da antiga chamarem o outro gênero de Funk.

BF: Existe um estereótipo sobre o G-Funk ser diretamente ligado ao Gangsta e ao lado negativo das ruas, mas nas suas letras a temática é totalmente diferente, a que se deve isso? Fale também sobre a sua ligação com os outros elementos da Cultura Hip Hop e a valorização dos mesmos na sua música.

Kuriña: Nos anos 70 vim do interior para a capital São Paulo e por ser muito pobre tive dificuldade pra ser incluso na sociedade paulistana, o Break (a Cultura Hip Hop) me inseriu na sociedade, pois nos anos 80 tive patrocínio de uma grande marca de Surf e ganhava roupa e salário para dançar na vitrine de uma loja na avenida Paulista, os jovens da época amavam essa marca e ao me verem vestido passaram a me aceitar como “amigo”. Por ser militante da Cultura Hip Hop, os elementos se tornam muito presentes em minhas letras e sendo uma cultura de resgate, inclusão social e entretenimento, falo de coisas positivas e amor em quase todas minhas letras. Letras cem por cento autobiográficas.

Assista ao vídeo da música “Exército de um homem só”

A mídia de hoje não fala mais para os jovens o que tem de novo e sim os jovens que dizem pra mídia o que eles devem falar

BF:  Você já está no segundo disco e manteve o mesmo estilo. Como você sente a aceitação, não apenas do público do Rap, mas também da mídia especializada? Você consegue atingir outro público fora do Rap com seu som?

Kuriña: Sim, estou no segundo disco e não é que mantive o estilo, é que sou G-Funk mesmo até o osso, é o que amo fazer, é o que me dá prazer fazer, mas nada que me impeça de fazer outros gêneros. Cara, acho que minha música não chegou na mídia especializada, não generalizando, mas acredito que a grande mídia especializada hoje não é composta por pessoas que conhecem a Cultura e música Rap, pessoas que chamam a música Rap de Hip Hop, não sabem o que estão falando. A mídia hoje não é a mesma dos anos 90 para trás, onde eles procuravam, pesquisavam e lançavam “o novo”. A mídia de hoje não fala mais para os jovens o que tem de novo e sim os jovens que dizem pra mídia o que eles devem falar. Considero minha música conceitual e os conceitos quebram barreiras, atingindo assim o público do Punk, Metal, Skate e por aí vai…

BF: O diferencial do seu trampo, em relação ao que tem sido feito por aqui, é também a quantidade de faixas. Quanto tempo você demorou pra finalizar esse último disco? Fale também sobre a escolha das participações, produtores, samples, etc

Kuryña e Erick 12

Kuriña: O mercado hoje é muito rápido, quem você ouviu ontem, hoje você não escuta mais falar. Não me prendo ao mercado, me prendo a inspiração, às vezes tem músicas minhas que demoram 03, 06 meses para compor. Por isso levei 03 anos para fazer meu último álbum. Em relação às participações, sempre escolho artistas que realmente tenho admiração e vontade de trabalhar com eles. Comecei meus trabalhos com o produtor Erick 12, ele me ensinou muito e de lá para cá quase sempre ajuda nas produções de meus instrumentais, dando um palpitezinho nas linhas de baixo e sintetizadores, sou “nóia” de harmonia. Atualmente tenho trabalhado com o André Barbosa, Gabriel Quirino, Base Mc, Dall Kazadufunky, Fernando Bustamante, DW Beats e DJ Dr Jay.

BF: Você tem planos de lançar algo em vinil ou já lançou?

Kuriña: Sim meu mano, todos os meus álbuns gostaria muito de ter lançado em vinil, mas artista independente, a falta de shows, responsabilidades de ser pai, me distanciam hoje de poder pagar a prensagem do vinil.

A arte é livre e o que gosta de passar nas letras também, liberdade de expressão! Mas não conhecer a história do que escolheu para fazer é lamentável

BF: Fale sobre a faixa “Papo reto”, a letra é muito atual, achei um belo retrato dos dias que vivemos.

Kuriña: Nessa letra faço um comparativo do Rap dos anos 90 com a cena atual, em relação ao amor e o compromisso com a Cultura Hip Hop. Das dificuldades em fazer no passado e a facilidade dos tempos atuais, sabe aquela história de que quando o filho tem de tudo em casa, acaba não valorizando as conquistas e as lutas do pai? A arte é livre e o que gosta de passar nas letras também, liberdade de expressão! Mas não conhecer a história do que escolheu para fazer é lamentável. Respeitar para ser respeitado. Gosto muito da arte do Neto do grupo Síntese, sinto no Espírito dele verdade em relação a sua própria arte e a nossa Cultura.

BF: Como é um show seu, você utiliza DJ?

Kuriña: Nos meus shows procuro sempre que posso colocar os 4 elementos das Cultura Hip Hop no palco, um carro para andar precisa das 4 rodas. Hoje estou muito longe do que um dia sonho em mostrar em um palco. Me apresento acompanhado do DJ Dr. Jay e do Chegado, que me ajuda nos vocais, ambos do grupo U-Clãn.

Kuryña ao vivo – música “FunkSiPuder”

BF: Quais seus projetos atuais, ainda está trabalhando o disco “Concreto Funk”?

Kuriña: Já estou produzindo meu novo álbum ‘Funk-se’ para 2020, mas acredito que lanço algumas músicas esse ano com vídeo. Em relação ao álbum ‘Concreto Funk’ em breve sairá o vídeo clipe da música “Filhos do Funk” feat. do Xis, direção do Gabriel Ávila, vídeo clipe da música “Resposta ao tempo” direção do Flávio Cássio, vídeo da música “Céu Azul” feat. Magnus 44 e produção do Base Mc. E um single novo e vídeo da música “Se situa” feat Dog Jay do Doctor MCs, direção também do Base.

BF: Deixa um salve, seus contatos, agenda, etc…

Kuriña: Obrigado Gil Souza e ao site Bocada Forte pela oportunidade. Peço licença pra agradecer também o diretor Eduardo Menin pela força nos dois vídeos – “Exército de um Homem só” e “De Sampa a Santos” – que considero duas grandes contribuições nossa ao mercado da música Rap. Shows fecho pelo Instagram @kgfunk68. Dia 12 de outubro estarei me apresentando na 5ª edição do Hip Hop na Quebrada. Muito Amor e Paz de Espírito a todos que respeitam e mantém minha arte viva… Funk-se!

Ouça os dois discos dele ‘Na Caminhada Funk’ e ‘Concreto Funk’

2 COMENTÁRIOS

  1. […] Em entrevista ao BF em setembro de 2019, Kuryña afirmou sobre o uso do nome FUNK para definir outro estilo musical – “Não tenho nada contra o gênero, apesar de não ouvir e sim quanto ao nome. Kuryña G-Funk só tem um, Bossa Nova só tem uma, Samba só tem um e Funk só existe um e ele (o Funk) é o pai do Rap. Fico triste quando ouço rappers da antiga chamarem o outro gênero de Funk.” […]

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