Juca Guimarães: jornalismo e hip hop

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Uma mídia negra forte garante autonomia e liberdade. Isto é fundamental para o combate ao racismo”

Ele é considerado um dos representantes do hip hop e da cultura periférica na grande mídia. O jornalista JUCA GUIMARÃES, da coluna e blog Na Pegada da Periferia, do Diário de S.Paulo, trocou uma ideia com BF. Juca mandou ideias sobre a atual fase do jornalismo e do hip hop,  além de abordar o racismo e a violência policial nas periferias.

11889500_1197569096935604_850039702911403367_nBocada Forte: Nos cursos de jornalismo, nos livros e discursos na grande mídia, sempre falam da capacidade criativa que a diversidade proporciona. Mas não é essa realidade que vemos nas grandes redações, onde a maioria é branca e, consequentemente, com a visão que a branquitude  tem sobre a realidade. Como você encara essa parada em seu
cotidiano? Em seu tempo de estudante também rolou algo parecido?
Juca Guimarães:
O jornalismo passa por uma crise mundial que vai muito além das questões relacionadas ao mercado financeiro e sustentabilidade do negócio. O problema está na falta de diversidade dentro das redações. A mídia se afasta rapidamente dos princípios básicos do jornalismo e boa parte do conteúdo publicado é tendencioso em favor de posicionamentos políticos e linhas editoriais. Sem representatividade dentro das redações, as minorias todas têm tido menos espaço e, o que é pior, quando tem algum espaço é justamente para reforçar a imagem que a elite tem.

No mundo todo, as grandes empresas de entretenimento estão comprando jornais, revistas, sites de notícia e rádios. E isso está contaminando o conteúdo editorial. É notório e histórico que a indústria não tem interesse nenhum de ouvir ou dar espaço amplo e democrático aos negros ou a qualquer outro grupo social sem grande influência econômica. Ou o jornalismo muda isso ou ele acaba.

Sinto falta de um jornalismo que se interesse em ouvir o contraditório, o outro lado, o controverso e apure de forma imparcial as informações antes de publicá-las. Sem negros nas redações, isso é bem complicado quando se trata de assuntos relacionados à questão racial e a outros assuntos sociais. O racismo, por exemplo, é sempre abordado de uma maneira superficial e míope quando a redação é majoritariamente branca.

Bocada Forte: O que é mais urgente: mais jornalistas negros nas redações ou o fortalecimento de uma mídia negra?
Juca Guimarães:
As duas coisas são importantes. Uma mídia negra forte garante autonomia e liberdade. Isto é fundamental para o combate ao racismo. É uma luta cotidiana, mas que trará grandes avanços para o Brasil. É preciso arejar a mídia e ampliar os temas e os debates na imprensa. Temos poucos veículos de comunicação e os cortes nas redações estão cada vez mais frequentes. Os profissionais mais experientes são substituídos por novatos e isso reflete diretamente na qualidade. Uma cidade tão grande como São Paulo não pode ter tão poucos jornais como tem e a maioria deles seguindo uma linha editorial conservadora.

A liberdade de imprensa e a segmentação do jornalismo é um indicador de status democrático assim como a taxa de analfabetismo e a mortalidade infantil são de nível social e saúde. O Brasil está mal no que diz respeito ao jornalismo. E em relação à mídia negra também. A internet e as redes sociais popularizaram e potencializaram a troca de informação. Hoje a notícia corre tanto quanto o Bolt, mas falta ainda conteúdo de qualidade. Os negros e os moradores da periferia precisam urgentemente criar mais canais próprios de comunicação e fazer o cenário mudar.

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Os jornalistas Juca Gumarães (a esq.) e Gilberto Yoshinaga posam para foto durante o lançamento da biografia de Nelson Triunfo, escrita por Yoshinaga. (Foto: Clarissa Naomi Irie)

Bocada Forte: Xico Sá, lá em meados dos anos 2000, disse que o rap era motivo de piada nas redações no início dos anos 1990. Você acredita que o rap é visto de uma maneira diferente hoje?
Juca Guimarães:
Não mudou muito não. Hoje o rap tem um espaço muito pequeno se comparado a importância que ele tem como movimento social e cultural. As redações não se ligaram ainda como o rap cresceu e como ele ainda vai crescer. Mas parte deste problema também deve ser creditado aos próprios artistas de rap que ainda defendem uma ruptura total com a mídia.

Eu faço uma palestra sobre hip-hop e um tema que eu abordo é que ficar rico com o rap, ou com qualquer um dos quatro elementos do hip-hop, não é um problema, mas sim uma meta a ser atingida. Não falo em mudar o discurso ou fazer concessões, mas sim de se posicionar e se fazer ouvir pelo o que é. De ter planejamento de imagem, plano de mídia, se preparar para dar entrevistas, exigir respeito e fidelidade na publicação das opiniões. O rap vê com desconfiança a imprensa, e acredito que ele tem motivo suficiente para isso, mas não é se afastando que isso vai mudar. Pelo contrário, quanto mais se lutar por um espaço digno, mais espaço o rap vai ter.

Lembrando que a maioria das mídias é concessão pública e as empresas particulares de comunicação vendem um produto para um público que merece e exige diversidade.

Bocada Forte: Podemos afirmar que você é um jornalista formado na geração hip hop?
Juca Guimarães:
Eu cresci em favela. Morei a minha infância toda no Capão Redondo em uma comunidade pobre, mas muito unida e tenho amigos dessa época até hoje. Era um terreno da prefeitura e era também anos 1980, a ditadura estava agonizando mas ainda não era uma democracia plena. As ameaças de desocupação eram constantes, o bairro tinha pouca infraestrutura e tinha o problema da violência policial.

A minha história como ser humano é ligada ao rap, à várzea, às brincadeiras de rua, às lutas sociais. Como jornalista não dá para deixar de lado essa experiência de vida. Na minha profissão, eu aplico muito daquilo que aprendi e vi nas ruas da periferia e dentro da cultura hip-hop. Eu sei de muitos colegas que tiveram uma trajetória parecida e que também pensam assim. O André Caramante é um deles. Mas tem outros também. Ser jornalista é se esforçar sempre para ser uma pessoa melhor e capaz de reconhecer e dar voz ao drama, ao sonho, às expectativas e às ansiedades de quem mais precisa. Tem que ser humilde e ouvir com o coração. Isso eu aprendi com o hip-hop.

Bocada Forte: Em meados de 2003/2004, conversei com o jornalista André Caramante, que tinha uma coluna sobre hip hop e arte periférica no jornal Agora. Ele disse que se saísse do jornal, a coluna seria extinta, pois não havia uma preocupação em manter o espaço, algo que estava vivo por sua dedicação. Sua previsão estava certa, a coluna desapareceu após seu afastamento. Você acredita que há um descaso com os temas relacionados ao que rola na cultura de periferia?
Juca Guimarães:
A coluna Da Rua, que era publicada aos domingo na Revista da Hora no jornal Agora SP, foi onde eu tive a primeira oportunidade de escrever sobre periferia num jornal grande. Era essa coluna do André Caramante, que acabou quando ele saiu de lá. Eu escrevia nas férias dele ou quando tinha uma história boa e ele topava publicar. Somos grandes amigos até hoje e aprendo muito com ele. O André fazia as matérias de polícia, ele é o melhor repórter policial do Brasil, e se desdobrava em três para fazer a coluna. Era uma iniciativa dele.

Aconteceu a mesma coisa com o Alessandro Buzo na TV. A mídia tem um grave problema de audição quando se trata de cultura na periferia. São poucos os espaços. Eu também acho que se eu sair do Diário a minha coluna também vai acabar.

Leia a coluna do Jornalista Juca Guimarães
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Bocada Forte: Você tem um dos poucos espaços para divulgar o rap, hip hop e cultura periféria num grande jornal. Existe uma pressão interna por likes ou popularidade de suas matérias por parte dos editores? Qual a frequência das suas publicações?
Juca Guimarães: 
A coluna sai todo domingo no jornal impresso e diariamente eu tento postar alguma coisa no site. Eu sou responsável pelo conteúdo e escolha dos temas. Até hoje ninguém do jornal quis barrar ou reclamou de algo que foi publicado. Eu ouço sugestões e converso bastante com os funcionários da empresa que moram nas periferias, falo com o porteiro, com os motoristas do jornal, com as recepcionistas, com a galera da limpeza, todo mundo sabe da coluna e contribui como pode.

Eu tento deixar as coisas o mais livre possível. Quanto mais limite você impõe mais muros vão se formando e quando se dá conta vira uma caixinha. A ideia é que a coluna viva fora da caixinha. O próprio conceito de periferia para o que sai na coluna é aberto. Pra mim qualquer coisa que acontece na cidade a partir de um raio de 10 cm do marco zero da praça da Sé é periferia. Ou por ser feito por algum artista periférico, ou por ser na periferia mesmo ou então por ser de interesse de quem gosta de cultura e vive na periferia. Por isso eu falo tanto de literatura, teatro, sarau, Mães de Maio, desmilitarização da PM, educação, empreendedorismo, moeda social, jovem. São coisas importantes no universo periférico e que nem sempre estão no radar da imprensa tradicional.

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Juca Guimarães e o artista Sérgio Mamberti .(Foto: Clarissa Naomi Irie)

Bocada Forte: Você recebe muito material dos artistas, militantes e assessorias. Em tempos de explosão da informação e pouco tempo e espaço. Qual seu principal filtro para publicar algo? Qual conselho daria aos artistas que querem divulgar seu trabalho em canais que vão além da mídia alternativa do hip hop?
Juca Guimarães:
Eu recebo algumas coisas, mas gostaria de receber mais. Principalmente de coisas relacionadas ao break e ao grafite (fica a dica- risos). Eu sempre pergunto nas entrevistas o que os artistas estão ouvindo, lendo e vendo. Uso isso para conhecer artistas e tendências novas. Aprendi com o Emicida que manter a mente aberta e observar as coisas de um ponto de vista mais amplo é a melhor maneira para se entender o mundo ao nosso redor.

No jornal, eu escrevo sobre economia e faço, geralmente, a maioria das manchetes. Escrever sobre economia popular não é fácil. É um terreno extremamente competitivo e as informações não são fáceis de conseguir. Isso leva boa parte do meu tempo na redação. As ideias para a coluna sobre periferia surgem quando eu estou indo de ônibus para casa ou quando eu estou andando de skate. Ainda é a mesma coisa do tempo do André Caramante, eu tenho que me desdobrar para fazer a coluna virar.

Para os artistas de hip-hop, a minha dica é a dedicação e a preparação. Tem que ralar bastante e tem que estudar. O mais importante é saber que a cultura hip-hop é gigante e tem uma história consolidada cheia de bons exemplos. Tem que ser empreendedor, criativo e persistente. Sem perder jamais o foco na ideologia. Ninguém vai dar crédito para alguém que não tem uma base sólida de princípios.

Bocada Forte: Ainda tem gente que acha um exagero quando se fala em genocídio da juventude negra brasileira. Nossa história racista ajuda a explicar este fato? Fale um pouco sobre essa parada.
Juca Guimarães:
O racismo é a degradação da sociedade. Permitir que o racismo exista em qualquer parte do mundo é aceitar que fracassamos feio como humanidade. O combate sério ao racismo, com prisão mesmo, com editorial no jornal falando que é errado e apontando o dedo para os racistas é importante para a democracia. Se uma parte da sociedade não vive bem, vive sendo discriminada diariamente pela cor da pele, como é que essa sociedade pode ficar bem como um todo? Obviamente, o fim do racismo seria uma maravilha para os negros, mas quem iria ganhar mais com isso é o branco. Iria acabar essa falsa ideia de “superioridade natural ungida por Deus” que faz o branco médio racista achar que é melhor que todos os negros só porque é branco, ou que tem mais direitos por ser branco.

Recentemente, nos EUA, aconteceu um negócio emblemático para mim. Num desses protestos de grupos de extrema-direta racista um manifestante branco segurando um cartaz ofensivo contra negros passou mal depois de marchar um tempo embaixo do sol forte, era verão nos EUA. A pergunta que fica é: Cadê a raça superior? Que supremacia é essa? Só pode ser brincadeira. Não existe nenhuma diferença relevante entre negros e brancos, entre raça nenhuma no planeta e isso é fato. O que acontece é que os negros sofrem com o racismo e a exploração da força de trabalho há séculos e as oportunidades não são iguais. Desde que nasce e até o dia que morre, a sociedade impõe ao negro de forma direta ou indireta um tratamento de segunda classe. Isso muda com educação e reparação.

Quando o branco se tocar que ele não é melhor que ninguém e que vive numa sociedade que incentiva a segregação, ele vai lutar pela integração e por um futuro melhor para todos. É um barco só para todo mundo e a gente só vai para frente se todos remarem juntos.

1656353_827163493976168_1329946383_nBocada Forte: Novos artistas, novos estilos, novos temas. Falar sobre questões sociais incomoda muita gente e, agora, incomoda até parte do hip hop. Acha isso uma contradição?
Juca Guimarães:
O hip-hop é mais ou menos como o jazz. Ambos são fundamentados na liberdade e na mistura. Eu fiquei muito feliz e ainda fico quando ouço grupos de meninas fazendo rap, grupos de adolescentes fazendo rap, gays fazendo rap, religiosos fazendo rap.

É essa a graça da parada é um grande palco com o microfone aberto. Censurar um estilo ou um grupo é fazer o jogo dos conservadores. O rap precisa fugir dessa armadilha. É mais fácil ser conservador do
que ser liberal, pois ser liberal exige que se seja também tolerante e humilde. Abrir a cabeça e o coração para coisas novas. Espaço tem para todos.

Bocada Forte: Acredita que – em meio ao avanço da direita – é necessário o fortalecimento dos coletivos de periferia e suas conexões?
Juca Guimarães:
A direita está no jogo há muito tempo e escreveu a maioria das regras. A periferia está vindo forte, literalmente, pelas beiradas. Eu acho que o caminho é organizar e fortalecer ainda mais os coletivos. Fazer cultura é, fundamentalmente, mudar para melhor a vida das pessoas. É promover mudanças que a direita e boa parte da ala conservadora da sociedade não quer que aconteça. Para isso eu vejo dois caminhos. O primeiro são as iniciativas privadas. Criar coletivos, festivais, redes, encontros e grupos mudar aos poucos tudo aquilo que puder ser mudado. Vai desde montar uma biblioteca comunitária até fazer uma horta coletiva onde as pessoas possam passar um tempo juntas e economizar nas despesas com o supermercado, isso tudo é hip-hop.

O outro caminho é cobrar ações do poder público. O governo faz a gestão do dinheiro dos impostos e todo mundo paga imposto. A periferia paga muito imposto. Então esse dinheiro tem que voltar em forma de serviços de qualidade. A cultura, e aí o hip-hop também, precisa desse investimento. Eu defendo que o rap é um movimento das ruas, mas aqui em São Paulo ele precisa ter um endereço. Já passou da hora de ter uma Casa do Hip-Hop no centro com uma superestrutura para divulgar, registrar, conservar e viabilizar o hip-hop. Tem que ser num lugar amplo e de fácil acesso. Funcionando 24 horas por dia.

Bocada Forte: A sociedade ainda chancela e aplaude os assassinatos e chacinas na periferia? Os jovens têm consciência das cruéis conexões com o passado que podem mudar o futuro da molecada?
Juca Guimarães:
As chacinas e o genocídio da juventude negra, na minha opinião, tem um relação direta com o modelo de colonização do país, principalmente de São Paulo, e com o tratamento dado à segurança pública. Existe uma idolatria absurda à figura do bandeirante desbravador que conecta a ideia do desenvolvimento à violência. Na verdade, o bandeirante é um assassino ganancioso e perverso, mas cuja imagem distorcida é de visionário progressista. A sociedade, ou a maior parte dela, comprou essa ideia e defende a chacina, os programas de TV jogam mais combustível nisso. Eles buscam audiência incentivando o ódio e o medo.

É um erro achar que a violência vai resolver problemas sociais. Não vai. Existem duas polícias, uma delas militarizadas, que não têm a mínima de condição de investigar e prender os responsáveis pelas chacinas e muito menos impedir que novas chacinas aconteçam. O policial tem um treinamento muito deficitário, uma remuneração ruim e não é valorizado como profissional. Ele não pode fazer greve e sempre tem algum político espertalhão tirando proveito deles com uma falsa imagem de defensor da classe, mas na
verdade esses políticos não estão nem aí, querem a continuidade do caos, das chacinas e das corrupção.

Mas tem também o outro lado. É do interesse do crime organizado que o clima de conflito continue como está. Assim, eles conseguem manter o seu campo de influência fora das cadeias. Jogando a população periférica contra a polícia. É uma ingenuidade acreditar que os ideais do PCC são mesmo Justiça e Liberdade. É pura enganação, o fato é que eles querem dinheiro e poder. O dinheiro vem das drogas e o poder das brechas e da ineficiência do Estado.

A solução para acabar com o PCC seria o direito a liberdade dos presos, deixar que eles escolham seus representantes e que façam dentro da legalidade as reivindicações cabíveis. Isso seria importante até para a ressocialização deles. É isso que eu penso, com uma polícia melhor e o enfraquecimento do PCC as chacinas nas periferias iriam acabar. O clima de guerra e desolação iria acabar.

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