O melhor amigo do homem?

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Na vila quase todo mundo era parente. Os que não eram de sangue eram agregados, mas sempre tinha os que vieram depois. E nesses, ninguém confiava.

Na real, não existe santo. Todo mundo tinha alguma coisa pra esconder. Esconder do mundo lá fora, né? Porque na vila, tu sempre sabia quem era quem. A gente chamava as vizinhas de tia, os mais velhos de tiozão, os guris de mano, afinal de contas, pra sobreviver no caos tu precisava estar em sitônia com os teus aliados. Minha mãe já dizia “bom cabrito não berra e quando o berro canta é hora de dar o vazari ou termina cantando pra subir mais cedo”.

Seu Zé tinha duas amantes, o Milton Cachaça comprava coisas roubadas, Martina sustentava dois filhos se virando na noite, Jaime gostava dos guris e a Juliana era uma mulher do século XXI: tinha peitão, bundão e piroca. Mas na vila é cada um na sua. Tu respeita pra se respeitado. Só que tem certas coisas que nem a vila aceita e foi nessas que João Sem Braço morreu.

Foto ilustrativa. Reprodução/Google

Mas pra falar do João sem Braço, a gente precisa falar de uma das pessoas mais queridas da vila, a Tia Eva. Mulher foda. Criou quatro filhas sozinha. Depois de apanhar muito, foi abandonada pelo marido. Veio morar no morro há uns vinte anos. Conheceu toda a minha família. Vendia pastel e limonada na passarela do trem. Nunca mais confiou em ninguém. Principalmente nos homens. As filhas cresceram, casaram e foram embora da vila. A Tia resolveu ficar e assim criou raiz.

A solidão é cruel e por isso suas amigas diziam que ela precisava sair com alguém. Como andava muito sozinha e cabisbaixa foi pelos becos que viu pela primeira vez o João Sem Braço. Ele era fotógrafo e era uns dez anos mais novo que ela. Apareceu um dia na boca. Logo fez amizade com a rapaziada e nunca mais foi embora. Uns gostavam dele, outros desconfiavam. Uns diziam que perdeu um dos braços num acidente de carro, outros que ele tinha perdido o braço por castigo de Deus. Ele alugou uma casa de esquina e na frente fez o estúdio de fotografia. Todos na vila chamavam ele pra fotografar: aniversário, casamento, batizado e até pra documento. Foi num baile no Adão que eles se conheceram. Ele tinha fala mansa. Ela um riso frouxo. Não demorou pra que ficassem íntimos. Tia Eva, apesar dos pedidos, não foi morar na casa do João, manteve sua casa.

Um dia apareceu um maluco lá na rua contando histórias, fazendo graça. Pegou um pó com os linha de frente e ficou bebendo no bar do Casca. De repente ele parou de falar e logo em seguida foi embora. Gurizada não entendeu nada.

Nessa época havia sumido duas crianças num bairro perto do nosso. Uns falavam em ritual satânico, outros de venda de órgãos. Tia Eva, mãe de quatro meninas, ficou horrorizada com a notícia. Logo se juntou com outras mães e começaram a procurar. Colaram cartazes pelas ruas da vila. João Sem Braço fez os cartazes, até ampliou as fotos das crianças. Depois de alguns dias todos os bairros estavam em alerta.

Num domingo, João Sem Braço tinha que fazer as fotos dos aniversário do filho do Nelinho, mas, quando chegou, percebeu que tinha esquecido o flash. Pediu pra Tia buscar no estúdio. Ela foi.

Foto ilustrativa. Reprodução/Google

Quando entrou no pátio viu que o cachorro tava brincando com um pedaço de pano que estava enterrado. Chamou o cachorro, que não atendeu. Quando se aproximou, notou que parecia um tecido floreado. Desconfiada, correu o cachorro e puxou o pano da terra… Era um vestido de criança.

– Que diabo de roupa enterrada, é essa?

Mais tarde, já em casa, o casal jantava quando Tia Eva falou sobre a roupa de criança que o cachorro brincava. João, sorrindo e muito calmo, respondeu que o cachorro pegava roupa do varal dos vizinhos, rasgava no pátio e às vezes enterrava.

Na manhã seguinte, a Tia foi no bar do Casca e aproveitou pra passar os olhos no jornal. Quase não acreditou quando viu a foto das crianças desaparecidas. O tecido que o cachorro brincava era igual ao vestido da menina desaparecida. Trocou algumas palavras com o Casca e foi pra casa.

– Não pode ser, será que eu não conheço o João. Ficou pensando no caminho do armazém até a casa do João.

Em casa, ela não parava de pensar. Não confiava nem na sua sombra. Precisava descobrir a verdade. Abriu a gaveta, pegou uma faca, um rolo de fita e foi até o quarto. João dormia. Sem acordá-lo, o amarrou na cama. Quando acordou, João tinha fita até na sua boca. Com os olhos estalados viu Tia Eva nos pés da cama.

– Calma João, sei que tu ta assustado, mas eu nunca confiei em homem nenhum e tu não vai ser o primeiro. Só quero saber a verdade. Aquele vestido que o cachorro rasgou é igual ao da menina que sumiu. Esses dias Martina me disse que tinha um sujeito andando por aqui, mas que quando tu apareceu, ele foi embora. Hoje, o véio Casca me disse que tinha um polícia fazendo perguntas, se passando por noiado. Eu posso ser véia, mas não sou louca. Tu tem alguma coisa com isso?

João desesperado dizia que não com a cabeça. Então ela retrucou:

– Mas eu sei o que fazer. Já volto.

No quarto, ele esperneava. Ela queria a verdade. Ele não podia se defender. Ela não acreditava nos homens, ele não tinha como provar. Ela tinha sede de vingança. Ele não tinha como sair.

A Tia foi até o patio e com uma pá começou a cavar, na terceira pazada ela achou outra roupa de criança. Entrou no quarto e disse:

– Eu sabia, desgraçado! Na vida eu já vi quase tudo, mas um homem fazer o que tu fez com uma criança, não tem perdão. Cretino! Nojento!

Infelizmente, na vila era assim. Ele foi julgado e condenado. Crescemos sem saber o que é justiça. Não era de se esperar que João Sem Braço tivesse algum tipo de compaixão diante das supostas provas que a tia Eva tinha contra ele. Então ela seguiu falando:

– Eu vou chamar a polícia, mas não pra ti. Vou chamar pra que aquela pobre criança tenha um enterro. Pra que a mãe dela pare um pouco de sofrer, porque contigo a história é outra.

João urrava amarrado na cama. Tia Eva foi até a cozinha e voltou com uma garrafa de álcool.

– João, presta bem atenção no que eu vou te dizer… Pessoas que fazem o que tu fez não merecem ir pra cadeia. Teu lugar é nos quintos do inferno!

Enquanto falava, derramava álcool sobre a cama. João corria os olhos de um lado pro outro. Um desespero sem tamanho. Chorava, urrava, mas sua sentença já havia sido dada.
Ela riscou um palito de fósforo e saiu.

Foto ilustrativa. Reprodução/Google

Quando a polícia e os bombeiros chegaram no estúdio, o fogo já tinha destruído tudo, logo localizaram o corpo de um homem carbonizado. Se formou um reboliço na frente dos destroços da casa. A polícia conversou com alguns moradores e todos afirmaram a mesma coisa: desconfiavam do João Sem Braço, mas a Juliana foi taxativa e afirmou que ele era um bandido. Outros afirmavam que ele usava drogas. Uns diziam que ele já tinha cometido outros crimes na região. A polícia fez algumas perguntas:

– Ele não era casado?
– Não! Noiz achava ele bem estranho, sabe.
– Mas pelo que percebi pelos depoimento, aqui ninguém gostava dele.
– É verdade seu polícia! Aqui a gente não gosta de gente assim.
– Assim como?
– Assim, ué?! Bandido que faz mal pra crianças.
– Que crianças? Perguntou o policial.
– As do jornal. Respondeu o Casca.
– Mas esse casso já foi resolvido.
– É mesmo? Disse a Martina.

Enquanto os vizinhos falavam com a polícia, a mulher do Barbeiro, vizinha do fotógrafo, passava com uma vassoura correndo atrás do cachorro do João Sem Braço, que fugia com um vestido dela na boca.

7 COMENTÁRIOS

  1. Pobre do João… não teve chance de defesa, não pode dizer adeus a mulher que amava e ainda foi morto por ela. Na vida real isso seria resultaria em uma irreparável consciência pesada!

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