‘Aqui na Vila as leis são diferentes’

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Uma noite, voltando pra casa, depois de uma festa no centro da cidade, eu e o Cabeça, fomos parados por uma viatura da Brigada (Polícia Militar). Dois policiais, muito educados, nos convidaram pra entrar na viatura. Achei melhor ir andando, eles não gostaram. Então o que tava dirigindo me disse: “- Entra nessa porra se quiser continuar andando, ô maloqueiro!”

O Cabeça ensaiou um movimento de arrancada, mas o outro policial puxou uma pistola e encostou na barriga dele. Ali percebemos que não chegaríamos cedo em casa.

Viatura da Brigada Militar. Foto: Reprodução/Google (Foto ilustrativa)

Nos levaram de volta ao centro. Numa praça um micro-ônibus com mais uns dez PMs. Estavam alegres. Entramos, nos mandaram sentar nos primeiros bancos. No fundo do bus, dois guris, brancos, de uns 15 anos, no máximo. Bem arrumados, aguardavam para averiguação. Um deles era só indignação: “- Aquele nego desgraçado pegou meu boné, levou minha carteira e ainda me deu um soco.”

O guri falava com muita raiva o outro ficou olhando pra gente com um ar de superioridade, como se nossas vidas dependessem da sua boa vontade. Quando o PM me chamou, percebi que talvez o guri tivesse razão. Um PM me levou até o fundo do micro-ônibus e me mostrou pra eles: “- Foi esse aqui?”

Um dos guris me olhou dos pés à cabeça, pediu pra tirar o boné. Automaticamente o boné saiu voando depois de um tapa na nuca. Depois de alguns segundos ele respondeu: “- Não sei, aquele bosta era negro, não era sujo, mas eram dois.”

O PM mandou um sorriso e me deu um tapa na cara, um soco na costela, mandou mostrar as mãos com as palmas pra baixo. Com o cassetete, bateu com tanta força que quase quebrou minhas mãos. Me levaram de volta e trouxeram o Cabeça: “- Foi esse?”

O guri ficou olhando pra ele: “- Acho que sim, o que tu acha Luís?”

O outro guri sem levantar a cabeça e disse: “- Acho que foi esse aí, sim.”

(…) só a gente sabe o gosto da injustiça. Só quem mora no lado abandonado da cidade sabe. Só quem já tomou um tapa na cara de polícia sabe. Só quem já passou fome sabe. Só quem é humilhando no paredão sabe

Pra eles “tanto faz”. Se era a gente ou não, eles não queriam justiça, queriam vingança. Não de quem os roubou, mas de qualquer um que lembrasse os caras. Foi o suficiente pro Cabeça tomar uns tapas. Levou um soco tão forte que caiu no chão. Levou mais uns chutes e uns bicos, foi arrastado de volta. Ele tentou argumentar com o policial, que não estava na mesma festa, que na hora que os guris falaram que foram assaltados a gente estava dentro do baile. Eu disse que não poderia ser a gente por “N” motivos, mas o fato do Cabeça ser “preto” e eu ser “sujo” era, pra eles, prova suficiente pra nos agredirem.

O micro-ônibus saiu do centro e desceu até uma praça no “Cinco Colônias”, um condomínio de gente metida a rica. A polícia sabia que não era a gente. Depois de uma sessão de tortura que durou umas duas horas, só para a diversão dos PMs, fomos liberados.

Ficamos revoltados. Chegamos em casa com o raiar do sol. Cabeça não queria ir pra casa. Estava em silêncio, dormiu na minha casa. Minha mãe, quando viu a gente, começou a chorar (mano, não existe nada mais triste que ver a nossa mãe chorando). Conversamos por um tempo e fomos dormir.

Na tarde seguinte, subimos pro centro de novo. Tinha uma pista de skate no Jardim do Lago e como a gente andava largamos pra lá. Andamos um pouco e o Cabeça me cutucou: “- Ali, Padeiro. Não é aquele FDP do guri que disse que era a gente que tinha roubado ele?”

Era o guri mesmo. Tava numa rodinha de amiguinhos, contando como tinha sido a noite passada. Eu e o Cabeça, no ódio. Lembrei das palavras da mãe, tentei me segurar… Mas, na boa, só a gente sabe o gosto da injustiça. Só quem mora no lado abandonado da cidade sabe. Só quem já tomou um tapa na cara de polícia sabe. Só quem já passou fome sabe. Só quem é humilhando no paredão sabe. Só quem é preto ou pobre sabe. Só quem mora na Vila sabe.

‘A Senzala é a favela’. Foto: Reprodução/Google

Como dizia aquela música: “aqui embaixo as leis são diferentes”. A lei não funciona. A justiça nunca foi igual. Qualquer morador de periferia é tratado como bandido. Nosso estereótipo está cadastrado no sistema como de gente que não presta. Isso tudo porque a gente não tem dinheiro. Como disse o Brown “dinheiro é puta e abre as portas”, mas isso faz parte do plano do sistema. Enquanto a gente servir aos bacanas, enquanto a gente for mão de obra barata pra eles, vão nos manter aqui, numa grande redoma de vidro teleguiada por mentiras, exploração e morte. Mas aí, é difícil abrir os olhos com a barriga vazia. Pra fome não existe justiça.

E foi nessa hora que o sangue esquentou. Mano, chegamos no arrebento. Chegamos chegando! Uma cabeçada no nariz (não era por acaso que o apelido dele era cabeça). A meleca correu. Os amigos do boy melaram a tanga. Largaram correndo, deixando pra trás skates, bonés, sons, mochilas. Os que não tinham nada com a história ficaram olhando a gente sem entender. “Os maloqueiros que não roubaram nada!”

Naquele momento a gente percebeu o que significa justiça. A nossa própria justiça. Se foi errado, não sei. É tudo ponto de vista, certo? Sempre que me perguntam sobre esse assunto (justiça) uso uma frase do Edi Rock pra responder: “Meu lugar é do lado dos irmãos, de correria ou não você é preto também ladrão”.

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