D’Ogum comenta faixa por faixa de ‘Do Banzo ao Orun’, seu EP de estréia

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#RapSP #RapBR | De São Bernardo (SP), D’Ogum tem ganhado cada vez mais destaque na cena rap underground especialmente como um dos membros do Projeto Preto, ao lado de AnarkaDenvinGabi Vibox.

Ao anunciar seu single “Na Fé dos Ancestrais“, se muitos de nós esperávamos mais uma pedrada cheia de verdade na cara e dedo na ferida, D’Ogum nos apresentou um trabalho igualmente surpreendente: sem deixar de contar suas vivências, o MC trouxe um trabalho enraizado na fé. E esse mesmo tema apareceu em seu EP de estréia, “Do Banzo ao Orun“.

Despertando muitas sensações diferentes no ouvinte, é certo que se já admirávamos a lírica politizada de D’Ogum, hoje o artista nos mostra melodias mais intimistas e letras mais subjetivas e que contam sua história, o que é explícito principalmente na faixa-título (“Do Banzo ao Orun“) e na belíssima “África“.

Em conversa exclusiva, falamos com D’Ogum sobre a construção de seu EP e um comentário faixa-por-faixa de seu trabalho. Confira:

A CONSTRUÇÃO DO EP

Esses últimos ciclos tem sido extremamente intensos. Vivi meus 21 anos novamente na madrugada de criação, no processo de execução e na finalização do meu primeiro EP, intitulado como “Do Banzo ao Orun”. Venho presenciando e sentindo essa dança constante e diária que acompanha nossos corpos a alguns anos juntamente a outras pessoas-irmãs-minhas de caminhada.

A presença desse disco e do Hip-Hop encruzilhado a minha existência e meus caminhos é de minha ciência desde meus 8 anos de idade. Confesso que dado o abismo identitário e a falta de referenciais históricos sobre a minha existência, enquanto uma pessoa preta e pobre,  por boa parte da minha vida fui levado a enxergar tudo como “loucura”, “esquizofrenia”, como “banzo”. Nem sempre assimilei como virtude, como axé, como meu Orun. O racismo faz isso com noiz, nos rouba o tempo e tudo nessa vida é intrinsecamente ligado ao mesmo.

A compreensão serena só me ocorreu após a minha volta pra casa, o meu reencontro com o ilê. E aqui, deixo frisado meu eterno agradecimento ao CEAS – Centro Espiritual Abençoada Seara, que tem total influencia energética em todo esse trabalho.

A maioria das faixas eu já tinha escrito, mas sempre me sentia inseguro em relação a expor para o mundo. Não era o momento. Tudo só se encaixou quando me perdoei e me desvencilhei de muita amargura do meu passado. Com ferro fui ferido e com ferro voltei. O ferro é o microfone, o ferro é Xoroque, o senhor da alquimia que me trouxe esse disco.

Como um presente dos Orixas e do Axé que sempre me circundou, 27/10 aconteceu o nascimento do novo que já nasceu velho.

 

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O EP: “DO BANZO AO ORUN”

Do Banzo ao Orun” é atemporal por transitar entre o passado, presente e o futuro sem ordem cronológica aparente. É a história de Lucas, e de incontáveis pessoas pretas, captada por D’Ogum, nome que  foi concedido a partir de seu reencontro com o Axé na força do Orixá Ogum, o senhor das guerras e demandas impossíveis, que mudou a sua vida e o presenteou com esse disco.

As faixas retratam essa dança secular sentida em nossas peles, que enfraquece e fortifica a nossa melanina diariamente. Sem pretensão de apontar respostas prontas, mas sim de ativar os sentidos adormecidos dentro dos nossos para que a reconexão do que já fomos, do que ainda somos e do que sempre seremos, seja novamente reestabelecida, de acordo com a subjetividade e complexidade da vida de cada um.

“Exú matou um pássaro hoje com a pedra que atirou ontem”. “Do Banzo ao Orun” poderia ser definido por essa frase.

O EP, que tem produção, direcionamento musical e uma sensibilidade minuciosa de Vibox, transita totalmente envolvido pela música preta tendo como seu pilar central o neo-soul e também passei do Riddin ao Afrobeat, do Trap Funk ao R&B. O direcionamento vocal é por conta de Vic Oliveira, que também assina junto ao Vibox como as únicas participação do disco

FAIXA A FAIXA

Fé dos Ancestrais: Nessa faixa conto como se desdobrou o meu primeiro contato com a música, com a espiritualidade e como todo aquele sofrimento em que vivia aos 8 anos e em minha adolescência ia fazer sentido no futuro, no completar dos 21. O futuro e o passado é retratado na música. Ambos dançam e se embaralham. É a minha chegada ainda enfermo até a preta velha e após os seus cuidados, o meu reencontro e firmamento com meus ancestrais na música através da música. Na “Fé dos Ancestrais” é uma forma de agradecer a essa Preta Velha por ter me mostrado que em meio ao Banzo existia o Orun e que em meio ao Orun existe o Banzo. Só a ancestralidade iria me ajudar a entender isso.

Xoroquê: Se interliga com o final da primeira faixa contextualizando o estado em que me encontrava quando encontrei a preta velha. É sobre minhas vivências que, infelizmente, é a sina da maioria das pessoas pretas: crescer em meio a inúmeras violências, ao estigma de ser um futuro criminoso, a falta de identidade, afeto, e principalmente, a falta de percepção de que somos seres humanos. Afinal, não nos vemos assim, não sabemos quem somos e tudo isso reflete em banzo. A faixa retrata o passado, mas também o futuro e o presente. É como me encontrava antes do meu reencontro com a espiritualidade, enfermo, doente, perdido. Mas retrata também o presságio para um futuro de afirmação , já que como me encontro atualmente, protegido e na guarda de Ogum Xoroquê.

Afirma: É uma afirmação de vida e retrata o reencontro ancestral com DenVin, Vibox, Anarka e Gabriela López, integrantes do grupo que faço parte, Projeto Preto. A linguagem e os elementos utilizados nesta música, normalmente são interpretados por um viés marginal e por tudo aquilo que é fortemente estereotipado a corpos negros. Quando falo “no corre acendo vela pra tragar sonho na boca” estou falando de vela para orixá. Uma vela Verde que tenho o costumo de acender humildemente para Oxóssi, pedindo sua força, sabedoria, para que só com única flecha, eu consiga atingir meus objetivos. Enquanto uma pessoa preta, me vejo diariamente com uma flecha só na mão e eu preciso acertar. Não posso errar. Não tenho esse direito. Em meio a correria da música estou pedindo para que Oxóssi me ajude a atingir meus objetivos e reconquistar a fartura em seus inúmeros sentidos para os nossos. A musica é uma celebração. Fala o tempo todo sobre raça, sobre auto-estima, sobre organização, sobre vida, além da sobrevivência. O ferro não é uma pistola, é o microfone. O cartucho, é cartucho de impressora pra imprimir os jornais que eu vendia no trem. Já foi mais de mil, é mil jornais. Agora eu to pró-cd. Mil cópias também. Lojinha é em referência a nossas marcas: Projeto Preto e Afrozika. É o nosso selo musical. Nossa estrutura. Quando digo é o primeiro, não é o PCC, é o nosso povo. O primeiro a pisar nessa terra. Inventor e criador de quase tudo que existe nesse mundo, o berço da humanidade, que infelizmente, não tem reconhecimento algum. Burro é o estado que desacredita, burra é a história que criminaliza.

Iyá Orí  (Mãe de Todas as  Cabeças): A mãe de todas as cabeças é Iemanjá. É ela quem nos da colo em meio ao sofrimento. Mantém a a esperança de que mesmo com as ondas turbulentas (banzo) precisamos ter paciência para a chegada da calmaria (orun). Ela é o nosso ponto de equilibrio entre o Banzo e o Orun. A representação do amor e da fé incondicional. A Mãe de Todas as Cabeças, além de Iemanjá, é também África. Sendo ela o princípio de toda a humanidade, o ventre que concebeu o mundo.

África – Música atemporal que explora o passado, o presente e o futuro. É a dualidade: Banzo e Orun em sua dança. Ao mesmo tempo que se encaixa em nossa volta para os braços de quem sempre sentimos saudade sem nunca ter conhecido, também retrata a dor e a realidade de sermos arrancados desses braços a qualquer momento. Assim como já aconteceu no passado, acontece no presente e provavelmente acontecerá no futuro. Nesse contexto dito a cima, falamos de África, de nossa ancestralidade e história. Ao mesmo tempo, também falo de como me sinto em relação a minha mãe, que se assemelha ao que sinto em relação a África: Uma hora tão perto, outrora tão distante, com saudade do que nunca vivemos, imaginando como poderia ser, como podia ter sido e como ainda pode ser as nossas vidas sem interferências externas. Sem ter nosso próprio tempo roubado.

Fé, Água e Ferro –  Retrata o meu primeiro encontro com a ancestralidade, com as religiões de matrizes africanas (Fé), sobre o encontro com uma preta (e com a música) numa extrema pureza e conexão ancestral (Água) e o (Ferro) é como me sinto: capaz de abrir qualquer caminho. É uma música em homenagem ao Ceas – Centro Espiritualista Abençoada Seasa, que me trouxe uma perspectiva afrocentrada pra vida. É uma homenagem a Seu Tranca Rua, Dona Maria Padilha e Maria Mulambo. E além de tudo isso, essa música é uma forma de agradecimento a Sara Donato e Issa Paz que olharam com cuidado pra mim quando ninguém mais olhava. Maria Mulambo me disse que encontraria duas moças formosas que me ajudariam a firmar meu caminhar. A energia de esù é mágica. Seis foram usadas sem nem saber e gerou isso tudo. Eu sou eternamente grato a vocês!

Na Pele Preta – Após a afrocentricidade e a energia de meus ancestrais envolver meus corpos por completo, muda-se a forma que me relaciono, muda-se minha concepção sobre sexo, sobre relação. Essa caixa fala sobre afetividade preta, sobre buscar, criar, incentivar e sentir o amor preto em seus mais amplos sentidos. Em meio às dores e alegrias, somos conectados ao ponto de nos transcender e nos transmutar.

Do Banzo ao Orun – Última faixa do disco que aborda diretamente esse transitar entre o Banzo a Orun. Aqui trago o elemento que existe e consegue dialogar com ambos estados de acordo com a vibração necessária: A Fé. Nessa faixa relato como o meu encontro com o Axé me proporcionou – e proporciona – um encontro direto comigo mesmo e com tudo aquilo que eu jamais imaginaria existir. É o que me mantém vivo, de pé, fazendo música. É a síntese de tudo que já foi dito ao longo do disco sem ter a necessidade de expressar uma solução pré-moldada ou em forma de receita. A vida é movimentação, a movimentação é complexa e subjetiva. Não da pra entender a mesma só pelo intelecto, pela razão – uma característica exclusivamente europeia, ocidental. É uma auto-aceitação e expressão do momento em que estou vivendo, com toda sinceridade, despido. Viic Oliveira finaliza o disco justamente falando sobre isso: a sensibilidade de absorver e expressar aquilo que se sente, aquilo que se é e aquilo que se vê, do Banzo ao Orun. A faixa também se relaciona com a primeira faixa, onde no refrão eu e a preta velha voltamos a conversar.

Curiosidade: O disco “Do Banzo ao Orun” forma uma frase: Na Fé dos Ancestrais, Xoroque afirma: Iyá Orí (Mãe de Todas as Cabeças) África é Fé, Água e Ferro na Pele Preta do Banzo ao Orun.

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