‘Machista, homofóbico e transfóbico no rap é mato’, diz Priscilla Feniks

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#RapBRASILEIRO #Entrevista
As máscaras podem até não cair fácil, pois as pessoas são cúmplices e se protegem, mas a rua cobra”, diz Priscilla Feniks, rapper que lançou recentemente a mix das canções “Flores” e “A Rua Vai Cobrá”.

Com 17 anos no Hip-Hop, Feniks acompanhou de perto a conquista de espaço das mulheres no Rap brasileiro, mas sabe que isso não foi resultado da ausência do preconceito e do machismo no centro do que chamamos de cena. “Machista, homofóbico, transfóbico no Rap é mato. Desonestidade, mau-caratismo também tá tendo. Sempre houve e não é de agora. Mas não podemos mais aceitar isso”, afirma a rapper.

Imagem de Divulgação

Além do Rap, Priscilla Feniks trabalha com projetos ligados aos trabalhos das minas no Rap e na periferia, como o Conectad@s, série de entrevistas com MCs e cantoras.

Bocada Forte: Por que você escolheu fazer uma mix? Foi difícil as músicas para entrar neste trabalho?
Priscilla Feniks: Acredito que a relação de apresentar uma mix possa trazer uma imersão aos ouvintes, com a proposta de contar uma narrativa através de várias faixas, em sequência. Então a ideia é que o público possa sentir o CD do início ao fim, pois todo o álbum será mixado, dividido em lado A e lado B.

Não é um trabalho fácil, pois da fase de criação até a fase de produção, muitas coisas mudam, até mesmo os sentidos vão propondo novas escolhas, e como temos a proposta de uma mix, uma música deve puxar a outra, e se uma muda todas mudam. Quanto a escolha das músicas, foi uma questão de fluxo, são as primeiras a integrarem o CD.

Bocada Forte: Então este trabalho precede um CD cheio?
Priscilla Feniks: Sim, virá um álbum com faixas sequenciais mixadas, divididas em lado A e lado B. Provavelmente com 10 faixas. Já estamos com 5 faixas prontas.

Bocada Forte: Como foi o lance da produção das músicas?
Priscilla Feniks: Fiz uma seleção de referências que queria para as faixas e apresentei pro E-Beilli [um dos produtores do disco]. Alguns detalhes e mesclagens de ritmos estavam na minha cabeça há muito tempo. Nesse tipo de construção, uma das minhas referências é Erykah Badu.

Depois fomos trabalhando no estúdio com o Duck Jam. E-Beilli e Duck Jam assinam a produção musical. É suave de trabalhar com eles, respeitam minhas decisões e ideias, mas é uma troca, também ouço muito a opinião deles. E vamos seguindo.

Temos que entender que tudo é política: inclusive o ato de amar e ser amado, ou até mesmo um corpo livre e vivo. Como diz Angela Davis, falar de todas as questões que circundam a realidade do jovem preto, seja repressão, medos, amor e até ascensão, é um ato político também, porque são histórias contadas por nós mesmos da nossa realidade.

Bocada Forte: Seu Rap, além de ter teor político, questiona posicionamentos e atitudes dentro do Rap brasileiro. Acha que a artificialidade domina parte da cena hoje?
Priscilla Feniks: Os questionamentos são aqueles que faço a todos, principalmente aqueles que lutam por uma causa, mas questionam a legitimidade de outras. Lutam contra uma opressão, mas oprimem outros grupos. Enfraquece. Temos que reavaliar sempre nossas atitudes enquanto um movimento/cultura que emergiu e expandiu com um ou sob um propósito.

Pelo histórico do Rap, e pela “magia” que fez com que, não só o Rap, mas os demais elementos tivessem um boom mundial, foi a identificação com as temáticas de cada jovem excluído- em maioria esmagadora até hoje preto e periférico- e a possibilidade de dar espaço para questões de forma direta que fez a música chamada de progressista pelos norte-americanos, ou de protesto, sempre estivesse presente em outros ritmos também. Acho que a mensagem papo reto e a possibilidade de se produzir com menos recursos possibilitou esse boom mundial. Não tem como negar. E isso fez o Rap ser o que é hoje.

Temos que entender que tudo é política: inclusive o ato de amar e ser amado, ou até mesmo um corpo livre e vivo. Como diz Angela Davis, falar de todas as questões que circundam a realidade do jovem preto, seja repressão, medos, amor e até ascensão, é um ato político também, porque são histórias contadas por nós mesmos da nossa realidade.

Acho que existe uma artificialidade do Rap hoje, mas eu acho que ainda não é maioria. Tem muita gente levando consciência, mas o destaque não é o mesmo. E como outras culturas, existe apropriação. E também estão chegando muitos jovens que não entendem sequer o que é Hip-Hop e o que ele representa.

Além disso, como o poder de mídia ainda está nas mãos dos mesmos, o que é potencializado é o que reproduz comportamentos que estamos tentando combater. E isso faz total diferença, pois desarticula o propósito e esvazia-se a cultura.

Então fico pasma quando ouço que Rap não tem nada a ver com política e que deve ser levado a “outro patamar”. Crescimento e estruturação profissional é uma coisa, deve existir, mas temos responsabilidade sobre o que é reproduzido e temos que saber que consciência ou senso crítico queremos despertar nos outros. A narrativa que criamos será o despertar ou a alienação dos que virão. Não só no Rap mas nas ações do dia a dia também.

Bocada Forte: O que você quer realmente dizer com “a rua vai cobrar você”?
Priscilla Feniks: Tudo o que você cria no universo…volta. A rua é nosso universo. Essa música fiz como parte dessa questão da responsabilidade que temos no Rap e a mensagem que queremos transmitir.

Só que a mensagem não é só transmitida por meio da nossa voz no microfone, é transmitida em nossas ações. Por exemplo: sua música fala de opressão e racismo, mensagem pertinente, mas nos bastidores oprime uma mina preta, ou um homem…ou uma mulher trans. Machista, homofóbico, transfóbico no Rap é mato. Desonestidade, mau-caratismo também tá tendo. Sempre houve e não é de agora. Mas não podemos mais aceitar isso. As máscaras podem até não cair fácil, pois as pessoas são cúmplices e se protegem, mas a rua cobra.

Bocada Forte: Acredita que a falta de preocupação com a política, aliada aos temas do Rap/trap mainstream possibilitou o apoio de alguns artistas do Rap aos políticos da ala direita e conservadora brasileira?
Priscila Feniks: Com certeza. A falta de construção política faz toda a diferença. E veja, não falo de construção partidária, falo de política mesmo. As pessoas confundem. Nós fazemos política o tempo todo, tudo que tem interferência do homem é política. O Rap e principalmente a maioria dos seus integrantes, que são pretos, sempre estiveram a margem e nunca foram prioridade nos planos de governo.

Sabemos que a manipulação da mídia e do estado é muito grande, e desarticula grande parte do nosso povo. A manipulação é massiva e não quer permitir que as pessoas tenham um senso crítico sobre a própria condição delas, ou da maioria.

Bocada Forte: Com 17 anos de carreira, você já viu idas e vindas, modismos e trabalhos que permaneceram sólidos, outros que até viraram clássicos. Como é sua luta no cotidiano independente? Você se sente só às vezes?
Priscilla Feniks: Uma questão: acho que o modismo em si não é problema, o problema é o que esse modismo quer trazer. Queria eu que a moda/modismo fosse relações de união e de respeito sobre o que o outro é, moda da oportunidade, da valorização…

No meu cotidiano, tenho que o tempo todo me afirmar e me “segurar” num mundo machista e racista. E cada vez mais você percebe as ações e mensagens subliminares, mas parece que você vai enlouquecer.

As mídias sociais reproduzem a doença social em que vivemos. As pessoas estão doentes. Aquelas que atacam e aquelas que se defendem. E aquelas que se defendem se defendem apenas pelo direito de existir.

Ao mesmo tempo, retomar o passado, construir o presente e pensar no futuro. E essa construção é mesmo individual, é solitária. E precisa ser. De alguma forma, acho que estou construindo redes e relações que me permitem estar em comunhão com outras mulheres, mesmo que a correria de cada uma leve pra outros lados. Estamos conectadas.

Imagem Divulgação

Bocada Forte: Fale um pouco sobre seu projeto Conectad@s.
Priscilla Feniks: Olha só. Falando em Conectadas. O trabalho que foi realizado teve essa proposta de trazer essa linha de conexão existente entre muitas mulheres. São muitas mulheres produzindo e, de alguma forma, todas estão conectadas. O programa tinha isso de ouvir a mulher artista para além de sua música e apresentar um ponto de conexão entre todas, apesar de sermos bem diversas. Foi uma ótima temporada de grande vivência.

E é ruim sempre ter que ficar lembrando a sua existência, porque sim, nós somos invisibilizadas, nos documentários etc…

Bocada Forte: Atualmente, muitos falam sobre uma abertura de espaço para o trabalho e a da mulher no Rap. Pra você isso é real? Hoje, quais os principais obstáculos que você acha que as minas continuam enfrentando?
Priscila Feniks: Sempre falamos disso, as que vieram antes de mim, e desde que eu conheci o Rap. Claro que nosso conhecimento vai ampliando, então antes algumas coisas que até passavam batido,mas hoje não passam mais.

Os recursos não são distribuídos da mesma forma, cachês e oportunidades são diferentes, até mesmo nas curadorias de políticas públicas, que deveriam promover equidade.

Também tem o boicote direto mesmo, despluga um fio durante show, mexe na mesa de som etc. E não é raro. E já teve muitas outras histórias cabulosas também. Muitas mulheres enfrentam problemas na produção de seus trampos, pois o empenho e responsabilidade não são os mesmos que com os “parça”.

E é ruim sempre ter que ficar lembrando a sua existência, porque sim, nós somos invisibilizadas, nos documentários etc

Imagem divulgação

Bocada Forte: Recentemente você mediou o diálogo “Entre Elas”. Como foi essa experiência?
Priscilla Feniks: Foi ótimo, esse universo em que podemos falar diretamente ao público é interessante. E poder ouvir e trocar outras experiências. Assim como no Conectad@s.

Bocada Forte: Como produtora cultural, você já fez ou faz algo relacionado às mulheres do Rap e da periferia?
Priscilla Feniks: Sim, quando iniciei uma atuação na produção com a Fenix Cultural, em Porto Alegre, tínhamos essa preocupação, atuando com o fortalecimento das mulheres no Hip-Hop e também em outros segmentos. Ações, rodas de conversa, promoção e divulgação, e até mesmo brigar por espaços junto com a Frente Nacional de Mulheres no Hip-Hop.

Bocada Forte: O feminicídio em nosso país tem uma taxa elevada, são centenas de reportagens que retratam este tipo de crime nestes últimos meses. Você tem alguma ideia de como isso pode mudar numa sociedade machista e patriarcal?
Priscila Feniks: Mudando essa sociedade machista e patriarcal. Do hoje pro amanhã, um amanhã bem distante, mas possível. Na forma com que podemos educar nossas crianças…É um processo lento, mas que não podemos deixar pro amanhã.

Essa sociedade já existente não acredito que mude não e, infelizmente, os racistas, misóginos, transfóbicos continuam educando suas crianças para serem iguais a eles, mas é preciso que eles deixem de ser maioria para serem minoria.

Ainda temos muito chão, tendo em vista que as políticas atuais estão legitimando o genocídio do povo preto, morte dos LGBT e o feminicídio.

Bocada Forte: O racismo precisa ser debatido de maneira mais profunda pelos artistas do Rap?
Priscilla Feniks: Acho que o racismo sempre esteve e continua sendo debatido pelo Rap, em maioria. Vejo sendo debatido de forma profunda, mas cada um também tem um jeito de levar isso pra arte. Mas não é o que será mais divulgado ou terá grande repercussão.

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